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sexta-feira, 12 de abril de 2024

Resenha nº 219 - Nêmesis, de Philip Roth

 




Título original: Nemesis

Autor: Philip Roth

Tradutor: Jorio Dauster

Editora: TAG/Companhia das Letras

Edição: s/n

Copyright: 2010

ISBN: 978-65-5921-027-5

Origem: EUA

Gênero Literário: Romance

 

Philip Roth, escritor norte-americano, nasceu na cidade de Newark, Nova Jersey, em 19/03/1933 e faleceu em 22/05/2018. Foi não só um dos maiores escritores dos Estados Unidos, como também elogiado pelo famoso crítico literário Harold Bloom, como “o maior contador de histórias americano depois de Faulkner”. Roth é um colecionador de prêmios literários ao longo de sua carreira.

Autor de obras como Pastoral Americana, O Animal Agonizante, O Complexo de Portnoy, Casei com Uma Comunista, Nêmesis, etc. sua temática aborda a questão do desejo sexual e sua autocompreensão – tema de forte presença em O Complexo de Portnoy. Creio não ser demais afirmar que a marca registrada de seu estilo é o monólogo interior.

Nêmesis tem como ambiência os anos da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente, a entrada dos Estados Unidos no referido conflito, quando a base americana no Oceano Pacífico, Pearl Harbour, é atacada pelos japoneses.

Mas esta referência permanece como um pano de fundo, pois o drama mais importante para o romance é a epidemia de poliomielite que, fora de controle, ataca a cidade de Newark. De repente, ainda sem a compreensão da sociedade, as pessoas começam a adoecer, apresentando febre, dor muscular pelo corpo todo e uma paralisia que pode levar à morte:

“O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal vespertino um artigo intitulado “Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite”, no qual o dr. William Kittell, superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a observarem de perto sus filhos e a contatarem um médico se qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça, garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas articulações ou febre.” (página 11)

O protagonista Buck Cantor é um professor de educação física e trabalha na escola da avenida Chancellor. Naquele ano, o sr. Cantor acumula, ainda a função de fiscal de pátio do recreio, ou seja, supervisiona os alunos durante o intervalo oficial das aulas. Buck tem seu próprio drama com que lidar.

Por conta da sua avançada miopia, não foi aceito para ir defender os Estados Unidos na guerra mundial. Também devido a sua baixa estatura, nunca foi aceito como atleta nas universidades americanas. Estas duas limitações são, para ele, motivos de autodepreciação.

E, sem avisos, após um entrevero com alguns italianos, enfrentados pelo sr. Cantor, dois dos seus alunos adoecem:

“Alguns dias mais tarde, não aparecera para jogar dois dos meninos que estava no pátio quando os italianos vieram. Pela manhã, ambos haviam acordado com febre alta e o pescoço enrijecido, e já na noite seguinte – tendo perdido gradualmente a força nos braços e pernas e respirando com dificuldade – foram levados às pressas de ambulância para o hospital.” (página 22)

Vários alunos adoecem repentinamente; alguns têm de ficar numa vida vegetativa em pulmões de aço – máquinas destinadas a aliviar o esforço de respiração.

O sr. Cantor mora com a avó e, como é muito correto em tudo o que faz, cuida muito bem da velhinha. A idosa tem problemas cardíacos, o que lhe rende dores no peito quando faz algum esforço.

Numa epidemia assim – basta nos lembrarmos da recente pandemia de COVID-19 – teorias sem qualquer fundamentação se espalham: são os italianos que levaram essa doença para os EUA, são os judeus, ela se transmite pelo toque, pela respiração, pelo calor tórrido que varre Newark, etc.

Buck tem uma namorada que trabalha em local afastado dali e usa de todos os recursos de convencimento para fazer com que o namorado saia de Newark e vá trabalhar no mesmo local que ela:

“Tenho uma coisa para te dizer. Uma notícia sensacional’, disse Márcia. “O Irv Schlanger foi convocado. Vai embora da colônia. Precisam de um substituto. Precisam desesperadamente de quem tome conta dos esportes aquáticos durante o resto das férias. Falei com o senhor Blomback sobre você, dei todas as suas credenciais e ele quer te contratar sem nem fazer uma entrevista.” (página 66)

Buck alega que já tem um emprego. Sente-se mal por “trair” seus alunos, abandonando-os ao aceitar o novo emprego. E ela, convincente:

“Você ia ser um diretor aquático sensacional. Todo mundo aqui ia te adorar. Você é um nadador excelente, um saltador excelente e um professor excelente. Ah, Bucky, é uma chance única na vida. E”, ela disse, baixando a voz, “poderíamos ficar sozinhos aqui. Há uma ilha no lago. Podíamos ir de canoa para lá à noite, depois que as luzes são apagadas. Não teríamos que nos preocupar com sua avó, com os meus pais ou com as minhas irmãs espionando pela casa. Poderíamos finalmente ficar sozinhos.”  (página 67)

Cantor acaba convencido e parte para a nova vida. A colônia de férias fica nas montanhas, o ar é saudável, o lugar é bonito. Entretanto, a consciência do protagonista nunca o deixa em paz. As coisas não saem como planeja o casal apaixonado, mas não posso dizer o que acontece, para não estragar sua leitura, meu caríssimo leitor ou leitora.

Nêmesis coloca um cenário de epidemia de poliomielite permeado por notícias da guerra na Europa, que chegam; de fato, foram concomitantes, o presidente dos EUA à época

Frank Delano Roosevelt, tornar-se a vítima mais famosa da pólio.

Quando um escritor do calibre de Philip Roth elabora uma trama dessas, suas escolhas não serão gratuitas ou só porque os fatos foram concomitantes; os homens morrem nas guerras em que se metem e, paralelamente, são mortos por uma epidemia que não planejaram.

E, o que serve a essa sincronicidade proposital do autor, o sr. Buck Cantor admite a existência de Deus, mas rebela-se contra ele. Como pode existir um Deus que mata seus próprios filhos? E, ainda mais, mata crianças de um modo indiscriminado? Certamente, não pode ser a divindade onisciente, onipresente e onipotente, toda amor, que lhe ensinaram nas aulas de catecismo.

A culpa sentida por Buck por abandonar seus alunos à própria sorte, como se sua presença pudesse mudar o rumo dos acontecimentos, suas autocondenações, fazem lembrar os atormentados personagens de Dostoiévski.

Nêmesis discute esta questão da culpa autoimposta. O sujeito que não se perdoa, e o que é pior – o sujeito que elabora uma culpa para si, quando ele é tão vítima quanto todos os outros –, este sujeito, qual futuro terá? A culpa carregada pelo resto da vida infelicita a própria vida. Pois, para Buck Cantor, ele se transformou num vetor da poliomielite, um elemento de contágio.

Na conversa com um de seus ex-alunos, que agora se tornou seu amigo, há interessantes digressões. A concepção de Deus, manifestada por Cantor é uma dessas:

“Para minha mente ateísta, propor um tal Deus sem dúvida não era mais ridículo do que dar crédito às divindades adoradas por bilhões de pessoas. Já a rebelião de Bucky contra Ele me parecia absurda simplesmente porque não era necessária. Bucky não conseguia aceitar que a epidemia que atingiu as crianças de Weequahic e as crianças de Indian Hill fora uma tragédia. Ele precisava converter a tragédia em culpa. Precisava encontrar uma necessidade para o que ocorria. Há uma epidemia e Bucky necessita de uma razão para ela.” (página 187)

Ao contrapor seu amigo Arnold Mesnikoff (curiosa a aproximação fonética deste sobrenome com Raskolnikof, não?), acometido pela doença, portador de sequelas, cadeirante, ao protagonista Buck Cantor, o autor nos coloca: a maneira de pensar do seu personagem principal não é a única válida. Há outras. Apesar das desgraças, você pode optar por vencê-las e construir uma vida tão feliz quanto possível, ou, ao contrário, deixar-se abater, fazer más escolhas em função da culpa, terminando por boicotar a felicidade ainda possível.

Recomendo de modo enfático este Nêmesis. Philip Roth é um baita romancista.

terça-feira, 26 de março de 2024

Resenha nº 218 - Casas Vazias, de Brenda Navarro




Título original: Casas Vacias

Autora: Brenda Navarro

Tradutora: Livia Deorsola

Editora: TAG/Dublinense

Edição: s/n

Copyright: 2018

ISBN: 978-65-5553-060-5

Origem: México

Gênero Literário: Romance

 

Brenda Navarro nasceu no México, no ano de 1982. Vive em Madri, Espanha. Formou-se em Sociologia e estudou Economia Feminista no México. Tem mestrado em Estudos de Gênero em Barcelona.

Além do engajamento em órgãos que lutem pelos chamados direitos humanos, Brenda é conhecida por seu envolvimento em projetos que buscam promover a escrita de mulheres; o Enjambre Literario foi fundado por ela. Tem como objetivo divulgar autoras na América Latina, publicando suas obras.

Brenda é autora de contos e poemas, tendo ganhado o prêmio Tigre Juan exatamente por este Casa Vazias – seu romance de estreia. Recentemente, publicou seu segundo romance, Cinzas na Boca.

Adianto, caro leitor, esta obra de Brenda Navarro me impressionou bastante. É uma obra bem escrita, com personagens interessantes – foco nas personagens femininas, como não podia deixar de ser. Casas Vazias é forte candidato a figurar entre os melhores romances lidos por mim, neste ano de 2024.

Estruturalmente, a obra se assenta em dois arcos narrativos: Fran, Nagore, Daniel e uma narradora, mãe de Daniel; no segundo arco, estão Rafael, Leonel e outra narradora, mãe de Leonel. Capítulo a capítulo, as duas narradoras se alternam, numa trama bastante eficiente.

Para completar, no primeiro arco, Nagore é filha de Amara e Xavi, mas que vive com a família da narradora. É informado que Xavi, numa crise conjugal, matou sua esposa Amara. Nagore é criada por Fran – irmão de Amara – e a narradora.

Os capítulos não obedecem a uma linha temporal, o que sempre exige uma atenção a mais do leitor, pois será seu o trabalho de “organizar” os fatos para a sequência da história.

O enredo não é difícil. Certo dia, a narradora – mãe de Daniel – está com o menino em um parque. Ela se distrai um breve momento, ao despedir-se do seu amante Vladimir. Daniel, que estava brincando, desaparece. A mãe o procura pelos quatro cantos do parque, mas nada. A partir daí, ela tem de lidar com o pouco interesse dos policiais em descobrir o paradeiro do menino. E tem um agravante: Daniel é autista.

“Preguei alguns cartazes perto de casa e do parque onde Daniel desapareceu. Não faltavam curiosos que irrompiam em meio à dor com que eu me desprendia da imagem do meu filho. Olhavam, mas não olhavam, nunca olham e, quando o fazem, é para reafirmar a eles mesmo que estão bem. A desgraça do outro é a obliquidade do nosso próprio eixo. Uma vez escutei que uma mulher enfatizava a condição autista de Daniel. Coitadinho, tomara que esteja morto, disse. E eu apertei os lábios e as mãos, porque suas palavras eram o eco de algo que eu não podia dizer.” (página 131)

O casal não tem boa condição financeira. A narradora não manifesta profundo desejo de ser mãe. Mesmo a sua relação com Nagore não é boa; passa por um casamento tumultuado com Fran.

“Tinha pena de mim mesma, me jogava no travesseiro resmungando contra a minha sorte em casa sem janelas por causa de vá saber que ideia arquitetônica. O calor e a umidade me asfixiavam e, quando ninguém estava me vendo, eu dava tapinhas em Daniel, que, do lado de dentro, toda hora me chutava. Era uma batalha campal da qual eu sempre saía perdendo. Nagore fazia barulho perto da única janela daquele edifício escuro no qual passamos o verão antes de voltarmos ao México; várias vezes eu a escutei falando em catalão com seu boneco, quando achava que ninguém estava escutando. Enquanto isso, Fran saía para enfrentar a burocracia como alguém que fareja, sussurra, examina um mundo que lhe é proibido habitar. Tínhamos problemas tão supérfluos que éramos imperceptíveis, até mesmo uns em relação aos outros. Já nesse momento tínhamos que ter concluído que nos regozijar em nossa miséria podia ter como consequência nos tornar miseráveis diante do mundo, porque por dentro já éramos.” (página 86)

O outro arco vai focar a outra narradora, seu filho Leonel e o marido, Rafael. Aqui, teremos outra realidade diferente: o casal tem ótima condição financeira, habita uma boa casa com piscina. Igualmente, o casal não vive um casamento harmonioso. A narradora tem verdadeira fascinação por ser mãe. E ficamos sabendo que esta mãe que não consegue engravidar é a pessoa que sequestrou Daniel no parque. Deu ao menino o nome de Leonel. Logo, a tão desejada maternidade se mostra um problema: o menino é de difícil relacionamento – é autista – e Rafael nunca desejou ter filhos.

“Queria ser mãe dos filhos de Rafael, que, naqueles dias, quem sabe o que aconteceu com ele tempos atrás, e mesmo que eu perguntasse ele não dizia nada, porque ele era assim, que porra ele tinha o quê, pois algo você tem, não diga que não, eu dizia, mas ele nunca falou olha, eu tenho isso, ou sinto que, sei lá, alguma coisa, ou olha, é que seu te contasse, mas nada, e acho que ainda que eu não aceite, sou dessas mulheres que preferem estar com um homem mesmo que ele não goste delas e que sempre dizem então amanhã será  outro dia, porque tem que se fazer alguma coisa para melhorar; muito otimista ou muito entusiasmada; por isso achei que Leonel ia chegar e deixar tudo melhor, mas não posso tapar o sol com uma peneira,  que está estragado está estragado, não tem jeito.” (página 41).

O leitor poderá perceber com facilidade a diferença de linguagem deste trecho, na comparação com aquele, em que a mãe de Daniel se manifesta. Aqui, é uma linguagem solta, apenas um período em que se penduram várias orações subordinadas, separadas por vírgulas, até serem contidas pelo ponto final.

Se o livro se dedicasse a discutir a questão da maternidade, já poderia ser bom. Mas, Casas Vazias vai além. Discute a questão central da maternidade, mas nos coloca que esta tem sido uma percepção composta por uma sociedade de predominância masculina. Será esta uma postura polêmica e Brenda Navarro tem coragem de pôr o dedo na ferida.

Se, de um lado temos uma mãe que não quer ser mãe, mas é levada a isso; se, de outro, temos uma mãe que o deseja ser, mas para quem a maternidade se torna um peso quase insustentável, temos aí um questionamento sério. Ser mãe – condição essencialmente da mulher – pode ser imposta, pode ser cobrada de qualquer mulher?

Toda mulher se realiza na maternidade? Ou não, há mulheres que não se realizem com tal condição? E, ainda, por que é concebido que nem todo homem nasceu para ser pai? No livro, nem Fran, nem Rafael se importam com seus dependentes. Afinal, Fran nunca quis ter filhos e Rafael só foi nessa onda diante do desejo de sua esposa em ser mãe – aspiração tão intensa que ela sequestra Daniel por não poder gerar seu próprio filho.

A revista que acompanha sempre as edições da TAG – Experiências Literárias tem um artigo de Tatiana Cruz, que acho interessante reproduzir:

“Narrado por duas vozes que se intercalam, capítulo por capítulo, em um fluxo de memórias sem ordem cronológica e sem o filtro da maternidade idealizada modulando as falas das personagens, o que vemos são duas mulheres desempenhando o papel de mãe em meio a um contexto de miséria emocional estruturado pela misoginia, marcado nas entranhas pela violência endêmica.” (Tatiana Cruz, in Dos Desparecimentos, revista da TAG)

Casas Vazias é um livro inquietante. Contém vários trechos de grande impacto, ao correr do texto. Mas nenhum me causou mais impacto do que aquele, dito pela narradora do primeiro arco, a mãe de Daniel:

“A lactância é o reflexo das mães que querem afogar os filhos diante da impossibilidade de comê-los. Oferecemos o peito a eles não só por instinto, mas também pelo desejo obliterado de acabar com a descendência antes que seja tarde demais. De todo modo, um erro crasso.” (páginas 86/87)

Não é que a gente tenha de concordar com o dito, mas é muito forte e, com adaptação para o feminino, navega no mito de Saturno devorando seus próprios filhos. Alertado por um oráculo, o deus do tempo – Saturno para os latinos, Cronos, para os gregos – de que ele seria morto por um de seus filhos que o sucederia no trono, resolve acabar com o problema.

Mas, e o final de Casas Vazias? Este, meu caro leitor, minha cara leitora, não te conto. Digo apenas que é um final muito inteligente, muito interativo. Sei, de antemão, nem todos irão gostar do desfecho, como de resto, acontece com qualquer final.

Outros livros, outras vozes abordam esta importante questão da maternidade colocada no centro de uma sociedade misógina são apontados na revista da TAG, e os transporto para cá na intenção de que, quem deseje aprofundar no tema possa contar com algum material: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020), Resta Um, Isabela Noronha (2015), Rebentar, de Rafael Gallo (2015), Mapas para Desaparecer, de Nara Vidal (2020), Canção de Ninar, de Leïla Slimani (2016), A Filha Perdida, de Elena Ferrante (2006) e Noites Azuis, de Joan Didion (2011). Acrescento As Alegrias da Maternidade, de Buchi Emecheta, resenhado neste blogue – um livraço, recomendo! Como recomendo, de modo enfático, o livro de Brenda Navarro! 

terça-feira, 19 de março de 2024

Resenha nº 217 - Voltar Para Casa, de Toni Morrison

 




Título original: Home

Autora: Toni Morrison

Tradutor: José Rubens Siqueira

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª – 1ª Reimpressão

Copyright: 2012

ISBN: 978-85-359-2712-2

Origem: Estados Unidos

Gênero literário: Romance

 

Toni Morrison (o nome verdadeiro é Chloe Antony Woford) nasceu 18/02/1931, em Lorain, Ohio, Estados Unidos. É a segunda dos quatro filhos de uma família de classe média baixa, profundamente afetada pela Grande Depressão. Morrison sempre fora uma leitora ávida e seus escritores prediletos eram Jane Austen e Liev Tólstoi. Do pai herdou o talento para contar histórias. Sempre as ouvia, envolvendo as questões entre negros e brancos. Consta que ela se converteu ao catolicismo aos 12 anos de idade; recebeu então o nome de batismo Anthony, que deu origem à sua designação literária, Toni.

Em 1958, Toni Morrison se casou com o arquiteto jamaicano Harold Morrison que também lecionava, como ela, na Universidade de Howard. Toni concluiu seu mestrado em inglês com a tese sobre o suicídio nos livros de William Faulkner e Virginia Woolf. Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1993.

A obra-prima desta autora é Amada (1987). Outras obras – romances – são  O Olho Mais Azul (1970), Sula (1974), Song of Solomon (1977), Tar Baby (1981), Jazz (1992), Paraíso (1999), Amor (2003), A Mercy (2008), Voltar Para Casa (2012), God Help The Child (2015). Ela escreveu ainda ensaios e tem publicação na área de literatura infantil. O Olho Mais Azul e Sula já foram resenhados neste blogue.

Creio que a melhor síntese para este livro é a constante da quarta capa, da autoria de Michiko Kakutani:

“Morrison encontrou uma nova voz e um estilo direto de narrar que revela domínio total sobre suas personagens. Violência, paixão e arrependimento se entrelaçam para mostrar como amor e dever podem redimir um passado maculado.”

De fato, se ainda subtemas como luta contra o racismo e a defesa da dignidade feminina dentro de uma sociedade machista cruzam a história montada por Morrison, este Voltar Para Casa é “uma história arquetípica de retorno à casa depois da guerra, reminiscente da Odisseia, sobre uma geração de veteranos e migrantes negros do Sul, ao longo de uma década supostamente tranquila que para eles foi tudo menos isso”. (New York Magazine)

O chamado “arco de redenção” acompanha o protagonista Frank Money, desde a guerra na Coreia do Norte até o seu retorno aos EUA. Profundamente tocado por acontecimentos brutais durante aquele conflito, Frank traz ainda suas próprias brutalidades de que agora se arrepende. O sofrimento transforma, entretanto.

E Frank, atormentado por seus fantasmas, recupera sua dedicação à irmã Ci (Ycidra), salvando a vida desta. Negros que são, ainda vivem imersos numa sociedade racista do sul dos Estados Unidos, onde as chances de sobrevivência dele e de Ci revelam-se pequenas.

A estrutura do romance tem dezessete capítulos. Os de números 1, 3, 5, 7, 9, 11, 14 e 17 trazem diálogos internos ou monólogos – quando o personagem fala de si para consigo – de Frank. É por esta estratégia que adentramos os dramas pessoais do protagonista:

“Os cascos erguidos batendo com estrondo, as crinas sacudindo por cima dos olhos brancos enlouquecidos. Eles se mordiam feito cachorros, mas quando levantavam, erguidos nas patas de trás, as da frente em volta do cangote um do outro, a gente ficava sem ar de emoção. Um era cor de ferrugem o outro muito preto, os dois brilhando de suor. Os relinchos não assustavam tanto quanto o silêncio depois de um coice na boca do oponente. Ali perto, os potros e as éguas, indiferentes, mascavam a grama, olhavam pro outro lado. Então eles pararam. O cor de ferrugem baixou a cabeça e bateu o casco no chão, enquanto o vencedor saiu trotando num arco, empurrando as éguas na frente dele.” (capítulo 1, página 10)

Esta descrição inicial, do menino Frank ao observar o combate entre dois cavalos nos lembra que, basicamente, temos duas pulsões: a de permanência do indivíduo e a da perpetuação da espécie. Numa visão que beira a erotização do combate, o narrador parece nos dizer que a violência é inerente à luta pela vida. E, se é assim na natureza (alguém aí tem dúvidas de que a natureza é selvagem?) muito mais o será o homem, dono de recursos imaginativos.

Mas o livro não é uma apologia à violência. Ao contrário, ele demostra o esforço do protagonista em vencer suas próprias tendências e cuidar do outro – no caso, a irmã Ci.

Frank, então, é um soldado que retornou da guerra da Coreia. Em estado de profunda depressão, o protagonista nos diz:

“Respirar. Como fazer isso de um jeito que ninguém ficasse sabendo que ele estava acordado? Fingir um ronco ritmado, profundo, deixar pender o lábio inferior. O mais importante: as pálpebras não podem se mexer, e tem de deixar o coração bater de um jeito regular e as mãos moles. Às duas da manhã, quando eles conferissem para ver se ele precisava de outra injeção imobilizadora, veria o paciente do segundo andar, quarto 17, mergulhado num sono de morfina. Se ficassem convencidos, podiam pular a injeção e soltar os pulsos, de forma que ele sentisse algum sangue nas mãos. O truque de imitar um semicoma, igual a se fingir de morto de cara para baixo na lama de um campo de batalha, era se concentrar só num objeto neutro. Uma coisa que encobrisse qualquer sinal fortuito de vida.” (página 11) 

Existem pessoas que nos fazem acreditar que a humanidade, apesar de tudo, pode ter esperança, demonstrada pela iniciativa bondosa de alguns, como nesta passagem abaixo, em que Frank encontra o reverendo Locke:

“Não importa”, disse Locke. “Você vai agradecer cada trocado, já que não vai sentar em nenhum bar das paradas do ônibus. Escute aqui, você é da Geórgia, estava num Exército desagregado e talvez ache que lá no Norte é diferente do Sul. Não pense nisso e não conte com isso. O costume é tão verdadeiro com a lei e pode ser tão perigoso quanto ela. Agora vamos. Eu e levo de carro.” (página 21)

Lily encontra Frank quando ele entra no estabelecimento comercial em que ela trabalha. De alguma forma, aquele ar distante dele – ela o entende como tranquilo – a faz querer ficar com ele. Frank, entretanto, ainda não está preparado para uma vida comum, atormentado que está, pelos seus fantasmas:

“Viver com Frank tinha sido glorioso no começo. O rompimento foi mais um gaguejar que uma única erupção. Ela começou a ficar incomodada mais que alarmada, quando voltava para casa e o encontrava sentado no sofá, olhando para o chão. Um pé de meia calçado, a outra meia na mão.” (página 70)

A vida da irmã Ci (Ycidra) também não é nada fácil. Havia se casado, mas fora abandonada sem explicações. Lutando para se manter – era uma mulher negra sem companheiro numa sociedade racista – aceitara trabalhar para um médico. Seria uma espécie de ajudante nas experiências do profissional e fora introduzida na casa do doutor por Sarah, que já trabalhava ali.

Quando Ci adoeceu, foi Sarah que avisou Frank, o único parente de Ci cujas referências ela possuía. Ele apareceu, certo dia, para resgatar a irmã:

“Enquanto isso, Frank entrou no quarto onde sua irmã estava deitada imóvel e pequena, com o uniforme branco. Dormindo? Ele sentiu seu pulso. Leve ou nada? Inclinou-se para ouvir a respiração ou não respiração. Ela estava fria ao toque, nada do calor da morte recente. Frank conhecia a morte e aquilo não era ela – por enquanto.” (página 104)

Voltar Para Casa é um romance de 136 páginas. Apesar de o texto muito direto estar ali, como em outros livros de Toni Morrison, ela conseguiu dar um tom um pouco mais lírico que em seus trabalhos anteriores. O livro é de 2012 e Toni Morrison faleceu em 2019. Esta obra foi o adeus da escritora. Esta correlação me dá vontade de fazer uma especulação, caro leitor. Pura especulação, já vou dizendo.

Como se, após anos de engajamento, Morrison tivesse abarcado as características humanas; somos capazes de grandes gestos de amor e de grandes vilanias. Sinto este Voltar Para Casa como um gesto de amor pelos homens e mulheres que compõem a sociedade, com suas virtudes e defeitos. Um olhar tristemente amoroso sobre o filho que, tendo boas intenções, insiste em fazer as piores escolhas.

Esta não é só uma história arquetípica do anti-herói que retorna da guerra despedaçado por esta experiência, tendo se transformado em um monstro (situação somente revelada no final do romance) ao dar vazão a seus próprios instintos. Este livro não é só o arco de um protagonista em redenção, em apaziguamento com sua própria consciência acusadora.

Voltar Para Casa recria, à sua maneira, a história bíblica do Filho Pródigo. A autora selecionou o filho que volta. Nem por isso a narrativa perdeu seu impacto, pois ela ateve-se ao elemento mais dramático da parábola. Ao contrário, quando o narrador em terceira pessoa se cola em Frank, sem acusá-lo de nada, pois que sua vida já é dura ao extremo, a culpa do personagem o martiriza, enfatiza sua jornada rumo à redenção.

Do modo mais neutro possível, o narrador deixa que Frank expresse seu drama. As tendências à violência estavam presentes na alma dele, como ficou claro na cena inicial, em que Frank – ainda um menino – se embevece com a luta dos cavalos.

Penso estar evidente, meu caro leitor, que gostei muito deste romance. É uma leitura pesada, ainda mais nos tempos de clubes de ódio em que vivemos. Leitura necessária. Toni Morrison se transforma, leitura a leitura, numa das minhas autoras queridinhas.

                                                                                                         

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Resenha nº 216 - É A Ales, de Jon Fosse




Título original: Det Er Ales

Autor: Jon Olav Fosse

Tradutor: Guilherme da Silva Braga

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª – 1ª Reimpressão

Copyright:  2003

ISBN: 978-85-359-3542-4

Origem: Noruega

Gênero: Romance

 

Jon Olav Fosse, mais conhecido por Jon Fosse, nasceu em Haugesund, Noruega, em 29/09/1959. Seus principais trabalhos são na área de dramaturgia, embora ele também se dedique ao romance.

Desde 2011 foi concedida a ele uma “residência honorária”, pertencente ao governo norueguês, por suas contribuições à cultura e artes da Noruega. Jon Fosse foi laureado com o Prêmio Nobel de 2023. A justificativa para o prêmio cita “por suas peças e prosa inovadoras, que dão voz ao indizível”.

Fosse declarou-se ateu quando jovem, mas em 2013 converteu-se ao catolicismo. Durante a juventude, tocou guitarra no grupo Rocking Chair – atividade que ele abandonou, ao converter-se.

É autor de várias obras – principalmente na dramaturgia, como dito acima – no Brasil, temos É A Ales, Brancura, Trilogia, A Casa dos Barcos, Manhã e Noite. Jon Fosse é constantemente comparado ao escritor irlandês Samuel Beckett. Para quem não se recorda, Beckett é o autor da famosa peça Procurando Godot.

Então, li É A Ales. Não posso dizer que o livro tenha me conquistado de primeira. Ao contrário, não foi uma primeira vez fácil. Tive de esquecer-me do conceito de concisão literária. Caracterizado, com frequência, como possuidor de um estilo hipnotizante, isto corre muito pelas constantes repetições de termos, de verbos discendi (disse, falou, observou, etc). além do mais, o estilo de Fosse é bastante experimental; desobedece as normas de pontuação – como Saramago o faz –, abusa dos polissíndetos, que são as repetições de conjunções, normalmente coordenativas.

Entretanto, É A Ales me despertou o interesse – se não o da empatia, pelo menos o racional, de vez que certos recursos encontrados no pequeno livro são intencionais – e me decidi por uma segunda leitura. Nada melhor; mudei minhas impressões sobre a obra.

Escrever um romance de tão poucas páginas (esta edição tem 108) e de tanta complexidade narrativa não é para qualquer autor. O enredo não é complicado, a grandiosidade do livro vai para o que Jon Fosse consegue extrair da trama, do conflito.

Vamos lá, caro leitor.

“Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde, ela olha para essas coisas sem ver, e tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui, os dias chegam, os dias passam, as noites chegam, as noites passam e ela os acompanha, sempre com movimentos vagarosos, sem permitir que nada deixe grandes marcas ou faça grande diferença...” (página 9)

Pontos para o autor, já no parágrafo de abertura ele nos entrega o conflito: a tal Signe está deitada no banco da sala, e pensa sobre alguém desaparecido. Neste parágrafo inicial, o leitor pode perceber a repetição de termos, de expressões, que vão perpassar o livro todo.

Esta Signe espera o marido, Asle, que, no fim de novembro de 1979, sai de barco por um dos muitos fiordes noruegueses e desaparece. Encontram apenas o barco. Este enredo se aproxima muito da peça de Samuel Beckett, citada acima. Em Esperando Godot, há um grupo de personagens à espera do tal Godot, como nos informa o título. Godot não aparece. A peça se desenrola, a peça termina e nada de Godot. A tempo: Beckett se enquadra no chamado teatro do absurdo.

O narrador de Fosse observa Signe, nos revela o que ela pensa e sente. Informa-nos que ela se desloca de si própria, como se parte de sua consciência ficasse no corpo e parte se projetasse à sua frente. Signe se observa:

“...ela está em pé defronte a janela, e se vê deitada no banco, e ela parece estar muito velha, muito cansada, e os cabelos dela estão bastante grisalhos, mas ainda compridos, e imagine estar em pé defronte a janela olhando para fora e depois olhar para o banco e se ver deitada velha e grisalha, ela pensa enquanto olha para estufa e lá, lá na cadeira ao lado da estufa ela se vê sentada, mais essa!...” (página 33)

O Fiorde (recorrendo à Wikipedia, Fiorde é uma grande invasão de mar entre montanhas rochosas, originada por erosão) é uma presença em todo o texto do livro. É um acidente geográfico que une o passado ao presente.

E logo ficamos sabendo, houve outro acidente ali, naquele Fiorde. Aos sete anos, um menino morreu afogado ali. O nome do menino: Asle.

“O Asle morreu, diz Kristoffer

ele completou sete anos e morreu, ele diz

não, ele está vivo, diz Brita

você não vê, ele morreu, diz Kristoffer

e Brita fica lá com Asle nos braços e os braços de Asle estão aberto e vazios...” (página 81)

O nome Asle, então, designa dois seres: aquele menino morto aos sete anos por afogamento, e o marido de Signe, desaparecido no Fiorde. E há também a velha Ales, que observa consternada a cena:

“E então a velha Ales endireita o corpo, no patamar de pedra onde está, e lentamente se vira e entra na Antiga Casa. Na casa dela, a Velha Ales está entrando na casa dela, ela pensa. E no pátio em frente à antiga Casa onde mora Brita segura Asle nos braços. E então Kristoffer se aproxima de Brita e pega Asle nos braços.”  (página 86)

O tempo se embolou na cabeça de Signe. Os dois fatos – a morte do pequeno e o desparecimento do marido, ambos de certa forma ligados pelas semelhanças dos nomes – perdem a separação nítida de passado e presente. E Ales, a Velha Ales e Signe têm coisas em comum: ambas perderam entes queridos. Com a diferença: para a Velha Ales, a constatação da morte encerrou o caso, pôs um limite, ainda que doloroso.

Para Signe, diante do desaparecimento, o caso não teve e não tem um fim – um corpo sobre o qual chorar –, mas que também estabelece um limite. E ela vegeta, a certa altura do texto torna-se gritante o seu estado depressivo:

“... e ela não pode simplesmente ficar deitada lá, ela pensa, porque ela precisa se levantar, se pôr de pé, ela precisa fazer alguma coisa, não pode ficar simplesmente deitada no banco, ela pensa, e então se vê parada no cômodo olhando em frente para o nada e então se vê ir até a porta que dá para o corredor e se vê pôr a mão na maçaneta e se vê lá com a mão na maçaneta e pensa, enquanto segura a maçaneta, por que ele não vem?, e sempre aquilo, esperar, esperar...” (página 70)

É A Ales é um romance que, ao ler, não há necessidade de nos preocuparmos com spoilers. Não é o que acontece, o que importa; é como os personagens lidam com seus sofrimentos, com seus fantasmas do passado. A força da natureza, representada aqui pelos Fiordes traiçoeiros, se impõe. Os acontecimentos tiram a vida de pessoas queridas, leva-as para longe, deixando no lugar apenas dor, saudade, depressão.

Gostei da releitura do livro, mas não sei se o recomendo, caro leitor. É poeticamente amargo, Fosse parece querer assinalar – pelo menos neste texto – o absurdo de viver neste mundo. E este é outro quesito que o aproxima de Samuel Beckett e do absurdo de Esperando Godot. 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Resenha nº 215 - As Maravilhas, de Elena Medel



Título original: Las Maravillas

Autora: Elena Medel

Tradutora: Rubia Goldoni

Editora: Todavia/TAG Livros

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5692-335-2

Gênero literário: Romance

Origem: Literatura espanhola

 

Elena Medel é escritora espanhola, nascida na cidade de Córdoba, em 29/04/1985. Estudou Filologia Hispânica na Universidade que leva o nome da cidade. Dirige a revista de poesia La Bella Varsovia. Tem trabalhos de poesia, conto, romance e ensaio publicados.

Com obras traduzidas para vários idiomas, é uma escritora em ascenção, tendo recebido o prêmio Fundación Princesa de Girona (2016). Seu único romance, por enquanto, é este As Maravilhas, publicado no Brasil pela editora Todavia e, neste caso, com edição exclusiva pela TAG – Experiências Literárias.

Duas mulheres fazem parte da história contada por Medel: María e Alícia. Outra mulher – Carmen – da qual pouco se fala, é filha de María e mãe de Alícia. María veio viver em Madri, pois precisava de um emprego e, por isso, abandona a casa dos pais, deixando para trás, também, sua filha Carmen:

“O bebê cheira a cigarro. A primeira coisa que chama a atenção de María quando pega Carmen no colo é seu cheiro, tão diferente do de outros bebês. A filha da vizinha dos seus tios às vezes cheira a cebola, por mais que a mãe passe colônia nela para disfarçar; já o menino da casa – da casa em que ela trabalha, corrige-se María; não de sua casa, que não existe –, porque não conhecia nada parecido, mas agora o reconhece nas lojas, nos cafés. A filha da vizinha brinca com as anelas à tarde, e o menino vive entre o berço e o moisés na sala; Carmen também percorre a casa a seu modo, entre o quarto e o colo da avó, sentada à mesa grande. María percebe que talvez o cheiro de cigarro tenha a ver com sua família. Sua mãe fuma na cozinha, seu pai fuma o tempo todo, e ela suspeita que seu irmão Chico começou a fumar no quarto, pensando que ali ninguém o descobriria. Carmen cheira a cigarro; talvez María pense que a filha tenha o cheiro da casa de dois quartos, ou talvez pense apenas em como é estranho estar dormindo ali, com ela.” (página 19)

Deste parágrafo selecionado podemos retirar algumas informações sobre María. Ela é pobre, precisa trabalhar na casa dos outros, não tem uma casa sua. Possui um irmão, Chico além da mencionada filha, Carmen. Este fato acontece no ano de 1960.

O livro se inicia com o arco narrativo focado em Alícia:

“Com uma única nota no bolso, Alicia observa a praça quase deserta, os poucos carros e os poucos pedestres. Mais alguns minutos, e o dia vai clarear. Quando pode escolher, Alicia sempre prefere trabalhar de tarde: não precisa acordar cedo, pode passar a tarde na loja e voltar direto para casa. Nando reclama nessas semanas, na verdade, em quase todas; ela se desculpa dizendo que foi uma colega que pediu: tem dois filhos pequenos e para ela o turno da manhã é melhor. Assim fica livre nas primeiras horas do dia e evita as tardes no bar com os amigos dele – que também são os dela, por força da rotina – as tapas baratas, os bebês entre guardanapos sujos. Alicia achava que a maternidade alheia acabaria com esse hábito, mas as mães se ausentam do bar até as crianças pegarem no sono, às vezes volta se têm certeza de que dormem profundamente, e Nando se aborrece se ela tenta pular o ritual.” (páginas 9/10)  

A narrativa coloca em cena uma Alicia que precisa contar os centavos; ela tem de fazer uma retirada num dos caixas eletrônicos da estação Atocha. É uma trajetória financeira descendente, pois esta mesma Alicia, quando ainda em idade escolar, é descrita da seguinte maneira:

“No caso de Alicia, ainda não tinham conseguido montar nenhuma história. Tudo nela as desnorteava; escrevia sem erros de ortografia; sabia de cor datas e nomes de personagens históricas, não bocejava na aula. Não entenderam como podia ter repetido de ano, mas o que mais as desnorteava era o que s passava fora de sua cabeça: quer usasse um par de tênis diferente a cada dia da semana, quer fizesse questão de exibir a marca do seu jeans.” (página 38)

As maravilhas, aludidas pelo título do romance, fazem referência às coisas maravilhosas observadas pelas colegas Celia e Inma, quando vão à casa de Alicia, fazer um trabalho escolar. Claramente, a anfitriã tem uma condição de vida muito melhor do que as convidadas.

O que teria acontecido, tanto no caso de Maria – avó de Alícia – como no da própria Alícia, empobrecida, depois?

O pano de fundo é a situação sociopolítica da Espanha. Como veremos, este país é sacudido por periódicos conflitos, quer no âmbito político – no embate entre esquerda e direita por permanência no poder –, quer por problemas sociais.

Há uma guerra civil, compreendida entre 1936 e 1939. A Espanha era então uma república parlamentarista, com a maioria dos parlamentares escolhidos de esquerda, com um primeiro-ministro socialista.  Acontece um golpe de estado, liderado pelo general Franco. Os golpistas tomam o poder em 1939, iniciando a ditadura franquista.

Exercendo um fascismo de direita, sob o regime de Franco a Espanha tem de conviver com um cardápio de arbitrariedades, terror violento. Os opositores do ditador são executados. Para vencer a guerra civil, Franco tem de contar com a ajuda – que mais tarde será temerária – de Hitler e de Mussolini. Portanto, quando explode a Segunda Guerra Mundial, Franco compromete seu apoio aos fascistas.

Ao terminar o conflito mundial, em plena época da chamada guerra fria, a Espanha está diante de um complexo cenário no mundo: o antigo inimigo, os Estados Unidos, tornam-se, agora, aliados do país ibérico. A Espanha era fascista sob o jugo de Franco, mas era também anticomunista. Os EUA desenvolviam alianças que evitassem o perigo comunista na Europa. A ditadura franquista só termina com a morte do seu líder, em 1975.

Na revista que acompanha a edição da TAG, em um texto informativo assinado por Paula Sperb, há um esclarecimento:

“Em As Maravilhas, aparecem as históricas eleições gerais de 1982, que consagram o socialista Felipe González, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), como presidente. Maria participa de uma celebração com seus companheiros do grupo de bairro. Nos anos 1990, no entanto, o país voltou a ser governado por partidos de direita.”

A Espanha mergulha numa crise econômica, que vem de 1990 e dura até os dias atuais. No romance, a perda de emprego, o empobrecimento das classes sociais é o pano de fundo da narrativa, o motivo pelo qual Alicia, que inicialmente é de uma classe mais abastada, termina na estação Atocha de maneira precária.

“Alicia custa a atravessar as catracas: não é que os trens para o centro passem cheios, mas é tanta gente descendo na estação Atocha Renfe que ela custa a alcançar o vagão. Amaldiçoa a colega que lhe pediu para cobrir seu horário por um tempo – primeiro por uma hora, depois duas ou três –, porque a amiga que olhava seus filhos não tinha aparecido e obrigou Alicia a sair do trabalho mais tarde que o normal. Ela sabia da manifestação, tinha visto de manhã as mulheres na Cuesta de Moyano, mas não imaginava que tivesse algo a ver com ela: só quer voltar logo para casa, comprar alguma coisa no mercado para jantar, e que ninguém a incomode.” (página 181)

Esta movimentação, que apanha Alicia em meio ao seu dia de trabalho, é a Greve das Mulheres, em 2018. Deixemos Paula Sperb, no mesmo artigo contextualizador da Revista da TAG, nos explicar:

“No romance, o Dia Internacional da Mulher marca um dos momentos mais importantes da trama. As manifestações de mulheres ocorreram em escala global naquele ano. Na Espanha, porém, elas reivindicaram também respostas aos problemas econômicos. “No contexto espanhol, a data adquire um caráter singular porque é convocada uma greve geral de trabalhadores e essa greve é convocada pelas mulheres. Promover a greve naquele momento tinha dois sentidos: o primeiro é o de afirmação de gênero e luta por igualdade: o segundo, o de combate à precarização do trabalho, que afeta todos, mas especialmente as mulheres”, explica Fraga.”

Em As Maravilhas, Alicia não é uma alienada; igualmente, María não era uma alienada. Ambas, em momentos diferentes da história contada, não participam diretamente dos movimentos os quais lhes são contemporâneos e do interesse delas. É que estão ocupadas, dirigem toda a sua força em sobreviver. Lutam a cada dia pelo prato de comida e por isso, não podem participar de greves, por mais importante sejam elas.

Se forem mandadas embora por ausência ao trabalho, será muito pior para elas. Têm dependentes, têm filhos a quem alimentar. Esta é a dura realidade de que se esquecem os militantes de diversas greves – mesmo as mais justas – há pessoas a quem falta tudo, até o sustento para se ter a possibilidade de lutar por aquilo em que se acredita.

As Maravilhas é o tipo de leitura que necessita fortemente de contextualização, para que possa ser entendido em profundidade. O pano de fundo da história recente da Espanha não pode ser descartado. Ajunte-se a isto a questão do direito feminino de escolha: cuidar ou não cuidar dos outros; porque, via de regra, esta é uma “função social” imposta às mulheres. Faz parte da cultura de “toda mulher nascer para ser mãe”.

Frequentemente, penso eu, desconsidera-se a individualidade, em favor de uma construção histórica. Existem mulheres que não têm a menor inclinação para a maternidade, como existem homens que não têm a menor inclinação para a paternidade. E as construções históricas, não esqueçamos, são feitas pelos dominantes. E quem são os dominantes, nesta questão? Os homens.

Se você, meu caro leitor, gosta de romances com forte contextualização política e histórica, leia este livro. Elena Medel pode ser uma romancista iniciante, mas este seu As Maravilhas é uma grata constatação. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Resenha nº 214 - Paixão Simples, de Annie Ernaux

 




Título original: Passion Simple

Autora: Annie Ernaux

Tradutora: Marília Garcia

Editora: Fósforo

Edição: 1ª

Copyright: 1991

ISBN: 978-65-84568-29-7

Gênero literário: romance (autoficção)

Origem: Literatura francesa

 

Annie Ernaux (nome de batismo, Annie Duchesne) nasceu em Lillebonne, em 01/09/1940. Escritora e professora francesa, foi distinguida com o Prêmio Nobel de 2022; aliás, prêmios são o que não faltaram em sua carreira: Prix d'Honneur du roman 1977, Prix Renaudot 1984, Prix Marguerite-Duras 2008, Prix François-Mauriac 2008, Prix de la langue française 2008, Docteur honoris causa de université de Cergy-Pontoise 2014, Prix Strega européen 2016, Prix Marguerite-Yourcenar 2017, Premio Hemingway per la letteratura 2018.

Seus livros vêm sendo publicados no Brasil pela Editora Fósforo: O Lugar, Paixão Simples, A Vergonha, O Acontecimento, Os Anos, O Jovem, A Outra Filha, A Escrita Como Faca e Outros Textos.

Ao invés de começar por O Lugar ou por Os Anos, mais conhecidos, talvez, ou, pelo menos, lançados primeiro aqui no Brasil, iniciei meu contato com a literatura de Ernaux por este Paixão Simples. Não sem motivo: assisti ao filme Pura Paixão, na rede de streaming Netflix – direção, Danielle Arbid; atores, Laetitia Dosch (Hélène) e Sergei Polunin (Alexandr) – e não gostei do filme. Apesar de haver cenas de nus frontais, não entendi o filme como erótico.

Não costumo cotejar filmes derivados de livros com suas origens, neste blog, simplesmente por achar que estas duas linguagens – cinema e literatura – possuem suas especificidades, sendo, a meu ver, bobagem ficar analisando “se o filme é melhor que o livro”, se “o livro resultou melhor que o filme”. Mas, abramos uma exceção: a literatura de Annie Ernaux é mesmo difícil de ser adaptada para cinema, dadas as peculiaridades com que seus livros são construídos.

Livro lido, o filme me pareceu mais chocho ainda. A obra escrita não tem propriamente um enredo; a narração se dá em ritmo de memória e a autora tenta, através do que se convencionou chamar de autoficção, entender o que aconteceu, quais os processos envolvidos numa paixão avassaladora. Seu olhar de autora não se lança tanto sobre o russo Alexandr, pelo qual Hélène se apaixona. O livro discorre sobre a paixão. Tenta nos dar uma ideia do que viveu – e na minha opinião, o consegue.

O filme ficou morno. Sem enredo, se perde como divertimento. Aquela mulher, Hélène, mesmo em cenas de alcova, padece do vazio emocional. Mãe, larga seu filho para viver sua paixão, mas não percebemos qualquer conflito. Não havendo enredo, inexistindo conflitos, inexiste plot twist.

Pura Paixão não se debruça sobre a própria paixão, numa tentativa de tentar entendê-la, como o faz o livro.  Portanto, como análise, se perde o filme, nesta linha de raciocínio. Há, naturalmente, que faça outra leitura do que se vê na tela.

“Neste verão, assisti pela primeira vez a um filme pornográfico no Canal +. Como minha TV não tem antena, as imagens na tela apareciam desfocadas e as palavras eram substituídas por uma sonoplastia estranha, um crepitar, um murmúrio, um tipo de linguagem diferente, doce e ininterrupta. Dava para distinguir o corpo de uma mulher, de espartilho e meia-calça, um homem. O enredo era incompreensível, sendo impossível prever gestos ou ações. O homem se aproximou da mulher. Houve um close no sexo da mulher, bem nítido em meio às cintilações da tela, e em seguida o sexo do homem, com uma ereção, entrou no da mulher.” (página 7)

E, mais adiante, a narradora completa:

“Eu achava que a escrita deveria se aproximar dessa impressão provocada pela cena do ato sexual, desse sentimento de angústia e estupor, da suspensão do julgamento moral.” (página 8)

Anotem, por favor, sentimento de angústia e estupor.

O sentimento que perpassa o livro, mesmo sob a forte camada de fria análise que Annie Ernaux nos proporciona, é o deste sentimento de angústia e estupor:

“O único futuro que me aguardava era o próximo telefonema dele marcando um horário. Eu tentava sair o menos possível, salvo para os compromissos de trabalho – cujos horários ele conhecia – sempre temendo perder uma ligação dele durante minha ausência. Também evitava usar o aspirador ou o secador de cabelo, pois poderiam me impedir de ouvir o toque do telefone. E quando ele tocava, me tomava de assalto uma esperança que, no geral, durava apenas o tempo de pegar lentamente o aparelho e dizer “alô”. Ao descobrir que não era ele, a frustração era tão intensa que na mesma hora eu passava a detestar a pessoa do outro lado da linha.” (página 11)

Para algo tão intenso assim, toda a vida se resume à presença do elemento que desencadeia a paixão; a noção de tempo se perde, se embota:

“Não estou contando a narrativa de um relacionamento, nem uma história (que me escapa pela metade) com uma cronologia precisa – “ele veio no dia 11 de novembro – ou aproximada – “as semanas passaram”. Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência. Estou apenas acumulando as manifestações de uma paixão que oscila o tempo todo entre “sempre” e “um dia”, como se este inventário pudesse me dar acesso à realidade dessa paixão.” (página 23)

E o sentimento de angústia e estupor voltam a ser textualizados:

“O tempo todo eu avaliava quão imprecisas eram nossas conversas, observando a leve diferença entre o francês falado por ele e o uso padrão da língua, ou minhas dúvidas a respeito do sentido atribuído por ele a uma palavra. Eu tivera o privilégio de viver desde o começo, de modo constante e em plena consciência, aquilo que depois sempre acabamos descobrindo, imersos em estupor e angústia: que o homem que amamos é um completo estranho.” (página 27)

Outra característica apontada pela narradora: a perda de qualquer senso crítico do praticante desta paixão. Perdeu-se a noção do tempo, como se disse acima, e perde-se igualmente a noção de dignidade:

“Perguntar se ele mereceu” ou não isso não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha quanto se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado.

Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo.

Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo.” (página 60)

E, ao final da leitura desta obra tão curta, a gente se pergunta: como pode este texto ser tão potente? Como pode falar tão de perto à nossa humanidade? Que mistérios – apesar de a psicologia moderna estar tão adiantada –, que mistérios ainda perduram no fundo de nossas almas?

Digno de nota, o livro não caracteriza Alexandr como machista, dominador ou manipulador. Simplesmente, a paixão aconteceu. O próprio Alexandr diz, a certa altura, que dirigia feito um louco só para se encontrar com Hélène.

Paixão Simples é uma das obras impactantes que já li – e não é por abordar o tema da paixão. Afinal, outras obras narraram paixões candentes, amores impossíveis. Ana Kariênina, de Léon Tolstói, inclusive, é citada no texto de Ernaux.

Faz-nos lembrar este livro aquele famoso soneto de Luís Vaz de Camões:

“Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela.

Mas não servia ao pai, servia a ela,

Que a ela só por prêmio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia

Passava, contentando-se com vê-la.

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assim negada sua pastora

Como se a não tivera merecida

 

Começa de servir outros sete anos

Dizendo: “Mais servira se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!”