Constantin Virgil Gheorghiu não é um nome muito conhecido do grande público no Brasil. Assim, deixemos falar a biografia do autor, retirada diretamente da Wikipédia:
“Virgil Gheorghiu nasceu em Valea Alba, uma vila no Războieni Comuna, condado de Neamt, na Romênia, [em 15/09/1916]. Seu pai era um padre ortodoxo em Petricani . Um estudante dos mais brilhantes, ele cursou o ensino médio em Chişinău de 1928 a junho de 1936, após o que ele estudou filosofia e teologia na Universidade de Bucareste e no Universidade de Heidelberg .
Entre 1942 e 1943, durante o regime do general Ion Antonescu , atuou no Ministério dos Negócios Estrangeiros da Roménia como secretário da embaixada. Ele foi para o exílio quando tropas soviéticas entraram na Romênia em 1944. Preso no final da II Guerra Mundial pelas tropas americanas, ele finalmente se estabeleceu na França em 1948. Um ano depois, ele publicou o romance Ora 25 (em francês: La vingt-cinquième heure; em Inglês: A Vigésima Quinta Hora ), escrito durante seu cativeiro.
Gheorghiu foi ordenado sacerdote da Igreja Ortodoxa Romena em Paris, em 23 de maio de 1963. Em 1966, o Patriarca Justiniano concedeu-lhe a cruz do Patriarcado romeno por suas atividades litúrgicas e literárias. [Morreu em 22/06/1992, em Paris, França.] Ele está enterrado no Cemitério Passy , em Paris.”
Na verdade, tomei contato com este autor por intermédio do seu livro O Homem Que Viajou Sozinho, tendo também como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. E pelo menos por três motivos claros – primeiro, gosto do autor – segundo, amo a literatura – terceiro, O Homem Que Viajou Sozinho tem um valor fortemente sentimental para mim – vou falar um pouco sobre minha experiência com a obra citada acima.
Havia lido em minha adolescência um exemplar da obra, velho, desgastado, amarelado e sem capa, que me fora emprestado por uma colega de sala de aula. O drama do personagem Traian Matisi marcou-me profundamente, talvez por se passar dentro de um cenário de guerra mundial – não lera, ainda, livros cuja ação se desenrolasse nesse ambiente.
Muitos anos se passaram, mas quando vi numa vitrine de livraria, em uma capa verde, editada pela Betrand Brasil, exatamente aquela obra lida nos anos adolescentes, comprei-a imediatamente. Relê-la, passado tanto tempo, foi uma experiência nova, apesar de já conhecê-la. É que, livros compulsados nos recuos dos anos, quando revisitados em idade mais madura, resultam em visões diferentes do mesmo produto cultural. Portanto, eu tenho com o autor um “relacionamento” – diria – afetivo mesmo.
A Vigésima Quinta Hora é uma obra extraordinária. Costumo fazer notações a lápis na folha de rosto, enquanto vou lendo e a deste volume está muito anotada. Existem no livro personagens dos quais não nos esquecemos facilmente.
Iohann Moritz é um camponês romeno, cuja ingenuidade tem algo de pureza e, ao mesmo tempo, de estranheza diante de como o mundo funciona. Denunciado, certa feita, como judeu (sem o ser, verdadeiramente) por um gendarme local que lhe deseja a esposa, Suzanna, ele se vê enredado pela máquina de guerra, caindo em mãos nazistas. Inicia-se aí uma “peregrinação” por vários campos de concentração.
Foge para a Hungria, com outros detentos, é preso como espião romeno e torturado. Segue preso para a Alemanha, sob a condição de “trabalhador húngaro voluntário”. Não se esquece de Suzanna, de sua aldeia Fôntâna e da vida tranquila; nunca desejou muito, apenas uma casinha onde pudesse viver com sua família, umas terras em que trabalhar e se manter.
De modo completamente inesperado, é identificado pelo coronel Müller, estudioso das questões antropológicas (leia-se cientista influenciado pelos ideais de raça pura, de Hitler) como um exemplar de um grupo germânico valorizado:
“Pela conformação do crânio e o molde da ossatura frontal, nasal e facial, pela estrutura do esqueleto e, especialmente, da caixa torácica e a posição das clavículas, o indivíduo pertence a um grupo germânico que vive atualmente em pequeno número no vale do Reno, em Luxemburgo, na Transilvânia e na Austrália. (…) A “Família Heroica”, de que faz parte o rapaz que se encontra diante de seus olhos, demonstrou suficientemente a tenacidade do instinto de conservação de nossa raça.” (página 157)
Assim, Iohann passa de judeu a “trabalhador húngaro voluntário” e daí a um exemplar valorizado da “família heroica” sem entender, exatamente, o porquê disso tudo.
Outros personagens vão compor a história: Eleonora West, editora e dona do jornal mais importante da Romênia; Alexandru Koruga, um padre ortodoxo da aldeia de Fôntâna, combativo e extremamente íntegro; Traian Koruga, filho de Alexandru e intelectual. Aliás, Traian é romancista, amigo de Moritz e sua voz narra a história. Como foi dito na orelha do livro, “numa espécie de livro dentro do livro.”
Este é um romance com uma ideologia. Libelo não só contra o nazismo, mas contra qualquer forma de totalitarismo – seja ele de esquerda ou de direita, Gheorghiu instaura, por meio de sua obra dilacerada e dilacerante – o que ele classifica como “sociedade técnica”:
“[os americanos] jamais se darão conta de que existimos – diz Traian. – A civilização ocidental em sua última fase de progresso não tem mais consciência do indivíduo. E nada nos permite esperar que o faça algum dia. Essa Sociedade só conhece determinadas dimensões do indivíduo. O homem integral, tomado individualmente, não existe mais para ela. Você, Eleonora West, que continua na prisão, embora não seja culpada, eu e muitos outros, não existimos para eles. Pura e simplesmente, não somos. Existimos apenas como frações infinitesimais de uma categoria. Você, por exemplo, não passa de uma cidadã inimiga, presa em território alemão. É o máximo de informações características que a Sociedade Técnica ocidental é capaz de assimilar. Isso é tudo que pode representá-la aos seus olhos. Ela só a reconhece graças a esses traços distintivos e a trata, consequentemente, junto ao grupo ao qual você pertence, de acordo com as regras da multiplicação, da divisão ou da subtração. Você não passa de uma parte da Romênia. Essa fração está presa. O deslize, ou o crime, que é causa de sua prisão, pertence à categoria.” (página 220)
Extremamente atual, não é, leitor? Para a Sociedade Técnica nós, você, os outros, eu, somos meramente consumidores, uma categoria sem rostos ou identificações individuais. O tema é recorrente, basta nos lembrarmos de obras como O Videota, do polonês radicado nos Estados Unidos, Jerzy Kosinsky. O livro transformou-se em filme, roteirizado pelo próprio autor e se chamou, em português, Muito Além do Jardim, de 1979, com Peter Sellers no papel do personagem Chance. Ou, se quiser, pontos de contato com a série Matrix não são mera coincidência. E outra: você se lembra da fábula O Lobo e O Cordeiro, de Esopo? Ali também a culpa não é do indivíduo, mas da categoria cordeiro, presa do lobo predador.
E por que o estranho título do livro, A Vigésima Quinta Hora? Eis a explicação, dada por Traian Koruga, escritor do romance que é, ao mesmo tempo, título da obra de Virgil:
“- Pessoalmente, acredito que morreremos nos grilhões dos escravos técnicos. Meu romance acompanhará esse epílogo.
- Qual será o título?
- A 25ª Hora – disse Traian. – O momento em que toda tentativa de renovação é inútil. Nem o advento de um Messias resolveria alguma coisa. Não é sequer a última hora: é uma hora depois da última hora. O tempo preciso da Sociedade ocidental. É a hora atual. Exatamente agora.” (página 46)
Extraordinária obra, literatura de protesto, romance ideológico – escolha a classificação que melhor lhe aprouver, leitor, mas leia-o se puder. Evidentemente, é preciso ter estômago, pois, pouco a pouco nos sintonizamos com o personagem principal, Iohann Moritz, em sua completa incapacidade de entender o Absurdo Humano. Acompanhar as reflexões lúcidas colocadas na boca do intelectual Traian Koruga também não é nada digerível.
Entretanto, são livros assim – distópicos – que nos fazem tomar consciência do completo non sense em que vivemos e que, afinal, nós ajudamos a reproduzir.
GHEORGHIU, Constantin Virgil. A 25ª Hora. Editora Intrínseca, 1ª edição. Rio de Janeiro, RJ: 2014.