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segunda-feira, 21 de abril de 2014

Resenha nº 39 - A Partitura do Adeus, de Pascal Mercier

O autor de A Partitura do Adeus é o mesmo de Trem Noturno para Lisboa, já resenhado neste blog. Pascal Mercier é o pseudônimo de Peter Bieri, nascido em Berna, Suíça,  em 1944. Seu romance anterior vendeu, em todo o mundo, mais de 2 milhões de exemplares e foi traduzido para 15 idiomas, entre os quais o Português.

Martijn Van Vliet conhece, por acaso, Adrian Herzog. Era um dia frio, num café na Provence francesa e ambos são provenientes de Berna. Decidem então fazer a viagem de volta para casa juntos, o que cria entre eles uma intimidade que será fundamental para o desenrolar da história, como iremos ver.

Adrian Herzog era médico cirurgião, casado com Joanne; o casal tem uma filha, Leslie. Como Herzog nunca parava em casa, não dando muita atenção à família, Joanne se separa dele e vai para os EUA, levando Leslie e deixando-lhe uma contundente avaliação: “as a father, you’re failure” (como um pai, você falhou). O relacionamento com a filha tinha sido sempre distante.

Van Vliet era professor universitário e também fora casado, com Caroline; a filha se chamava Lea. A esposa adoecera e morrera precocemente. A filha fica sob sua responsabilidade e ambos têm de reaprender a vida sem Caroline. Lea e Martijn têm um relacionamento difícil. Ele tenta desastradamente manter uma conexão afetiva com a menina de 8 anos de idade, que se recolhe ao silêncio.

O professor e o ex-cirurgião (Adrian perdera totalmente sua autoconfiança como médico e se afastara do cargo) viajam juntos e isso possibilita a Van Vliet comentar sua própria vida. É por seu ponto de vista que tomamos conhecimento dos fatos.

O ponto de mudança da história se dá quando o pai e Lea caminham pelas ruas de Berna e encontram uma mulher, Loyola de Cólon,  tocando uma partitura de Bach ao violino. Lea como que ganha vida, desperta do seu mutismo e da falta de desejos e decide ter de aprender a tocar violino:

“Lea ficou parada. Nada nela tinha se alterado, seu transe se mantinha, e ainda era como se as pálpebras não conseguissem realizar sua tarefa pela impressão avassaladora do ocorrido. Havia algo infinitamente comovente em sua negação de acreditar que a apresentação tinha terminado. O desejo de que continuasse, continuasse para sempre, era tão forte que ela não acordou nem quando foi atropelada por alguns passageiros apressados. Lea continuou na nova posição com a segurança inconsciente de uma sonâmbula, o olhar imóvel dirigido a Loyola, como se a violinista fosse  uma marionete de seu olhar, que podia obrigá-la a continuar tocando. Nisso, na firmeza desse olhar, anunciava-se a extraordinária e, por fim, destruidora força de vontade de Lea, que se mostraria cada vez mais nos próximos anos.” (página 21)

Van Vliet compra um violino para a filha, matricula-a em aulas particulares do instrumento. A menina revela uma obstinação e um talento excepcionais e sob a orientação segura da professora Marie Pasteur e depois com a assessoria de um dos maiores violinistas da Suíça, David Lévy, Lea desabrocha e se torna uma musicista de primeiro time.

Entretanto, o pai não poderia adiantar as complicações daí advindas. Um trágico destino se inicia exatamente com aquela decisão de aprender violino. O sucesso de Lea aprofunda o abismo existente entre os dois. Parece a Martijn que, independente do que faça, há um destino implacável que controla a vida de pai e filha.

O romance é muito bem escrito, como o fora Trem Noturno Para Lisboa. Todavia, gostei muito mais do primeiro. Esta é uma narrativa trágica. Entre Adrian e Van Vliet não se estabelece propriamente uma amizade, mas uma aproximação de duas solidões irremediáveis. O professor realiza, durante a viagem de volta a Berna, uma enorme catarse com a qual também Adrian se identifica. Inicialmente, ele não deseja viajar com o atormentado pai de Lea, nem queria escutar sua história. Mas, pela solidão de ambos, Herzog termina por se constituir ouvinte de tudo.

Talvez o que tenha, definitivamente, feito com que eu não apreciasse tanto A Partitura do Adeus seja um motivo puramente subjetivo: não gosto do tema da inevitabilidade de um destino já traçado, pois não creio nisso. Mas está lá o estilo objetivo e conciso que tanto caracteriza Pascal Mercier.

À medida que vamos lendo muito, acredito irmos nos descolando de avaliações impressionistas do tipo “o livro é bom porque gostei dele”, “o livro não presta porque não gostei dele”. Esse tipo de julgamento seria extremamente injusto com o presente trabalho. É um bom livro, o texto é fluente, as informações que formam o enredo estão dispostas de maneira progressiva, de modo a levar o leitor a se interessar pela leitura até o fim. O drama dos personagens é bastante real – enfim, a história é verossímel.

Gostar ou não gostar, afinal, é já com o campo dos sentimentos e emoções e cada um de nós tem suas preferências em tudo. Isso faz com que sejamos seres individuais e livres.

MERCIER, Pascal. A Partitura do Adeus. Editora Record. Rio de Janeiro, RJ: 2013.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Resenha nº 38 - Holocausto Brasileiro, de Daniela Arbex

Daniela Arbex é uma jornalista premiada, repórter especial do jornal Tribuna de Minas há dezoito anos. Em seu currículo, conta com mais de vinte prêmios nacionais e internacionais; dentre esses, três prêmios Esso, o mais recente em 2012, com a série Holocausto Brasileiro, outros dois Vladimir Herzog (Mensão Honrosa) e o Knight International Journalism Award, entregue nos Estados Unidos (2010).

Holocausto Brasileiro é um livro-reportagem de leitura profundamente incômoda. Estarrecedora, porém, obrigatória para quem queira formar consciência social. Famosos pelos horrores contra os internos, os hospitais psiquiátricos são de triste memória, como o Galba Veloso, o Raul Soares. Entretanto, o Hospital Colônia, de Barbacena, conhecido pelo apelido dado pela equipe de reportagem da extinta revista O Cruzeiro, “sucursal do inferno” é o ícone maior dessa torrente de desmandos, de arbitrariedades desumanas.

Para o Colônia não eram mandados apenas os loucos, mas quaisquer pessoas que caíssem em desgraça de gente poderosa, como prostitutas, mulheres estupradas, mães solteiras indesejáveis, mendigos de rua, homossexuais, epilépticos, alcoólatras, esposas confinadas para que seus maridos pudessem morar com suas amantes, homens que ousavam se insurgir contra o poder militar dos Anos de Chumbo. Não havia necessidade de diagnóstico; impunha-se-lhes a mordaça do silêncio e os enviavam para Barbacena, no trem que originou a expressão “trem de doido”, criada pelo escritor João Guimarães Rosa.

Um campo de concentração, nos moldes daqueles, nazistas. Mais de 60 mil pessoas morreram naquela instituição maldita. Cerca de 70% nunca tiveram qualquer diagnóstico. Do total de internados, aproximadamente 33 eram crianças.

Os pacientes do Colônia dormiam em colchões recheados de feno, comiam uma comida de porcos, fedorenta e que provocava subnutrição, bebiam da única fonte de água: o esgoto a céu aberto. Pacientes nus, desvestidos de sua mínima dignidade, eram tratados como animais. Os mortos – e havia excesso deles – tinham seus corpos vendidos para as faculdades de medicina de várias partes do país, sem qualquer indagação ou apuração. Frequentemente, aqueles pacientes sãos tornavam-se completamente loucos pelos maus tratos a que eram submetidos. Praticava-se o choque elétrico para “acalmar” os mais agitados, ou então, a lobotomia, cirurgia nos lobos cerebrais para deixarem alguns internados completamente apáticos.

Tocantes casos de amor ao próximo também fazem parte desse relato corajoso:

“Mesmo desospitalizado, Adelino manteve o compromisso com a paciente, indo visitá-la todos os fins de semana que se seguiram. Levava roupas, guloseimas. Em troca, ganhava a atenção que precisava para se sentir seguro. Mas a liberdade sem Nilta não tinha o sabor que ele imaginava. Ela fazia falta em sua vida, e isso ele começou a perceber nos primeiros dias longe do Colônia. Assim, arquitetou um plano maluco: casar-se com ela. Seu desejo era arranjar um lugar onde os dois pudessem morar. Empolgou-se com a ideia, mas a responsabilidade de manter um lar era desafio que Adelino nunca havia enfrentado. Teria que usar o benefício que recebia do governo, um salário mínimo, para pagar aluguel, contas, despesas com alimentação. Mas como números eram seu forte, Adelino descobriu que somando o seu dinheiro com o dela, tudo ficaria mais fácil.(…) O casório foi marcado para o dia 2 de dezembro de 2005. Havia muito a ser preparado. Com o apoio da equipe técnica, eles viveram esse momento especial como qualquer casal, com direito a chá de panela, enxoval e até curso de noivos, exigência da Igreja Católica.” (páginas 138/139)

Não faltam depoimentos que nos enchem os olhos de lágrimas. O livro é apoiado por uma extensa pesquisa, com fotos obtidas de várias fontes, como a do fotógrafo de O Cruzeiro, Luiz Alfredo (trezentas fotos, cedidas ao Museu da Loucura).

Parte das dependências do Colônia foi erigida sobre terreno doado a Joaquim Silvério dos Reis. Sim, o nome está correto, é aquele mesmo Joaquim Silvério dos Reis, delator do movimento da Inconfidência Mineira e que ganhou as terras como recompensa pela delação.

A situação de completa desumanização dos internos do Colônia só começou a mudar a partir de 1980. Restam hoje menos de 200 sobreviventes desta verdadeira tragédia, em que mulheres grávidas tinham de untar o ventre crescido com seus próprios excrementos para salvarem o filho do aborto.

Daniela Arbex põe o dedo na ferida, na página 255:

“O fato é que a história do Colônia é nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil. Os campos de concentração vão além de Barbacena. Estão de volta nos hospitais públicos lotados que continuam a funcionar precariamente em muitas outras cidades brasileiras. Multiplicam-se nas prisões, nos centros de socioeducação para adolescentes em conflito com a lei, nas comunidades à mercê do tráfico. O descaso diante da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos. Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de mudar o final”.

O cineasta mineiro, Helvécio Ratton, filmou um documentário no qual denuncia as condições infernais da instituição de Barbacena: Em nome da razão. Ratton ligava sua câmara alugada logo no início da manhã e só a desligava quando as condições de luz não permitiam mais a filmagem. O curta acabou se convertendo no tiro de misericórdia no modelo de psiquiatria praticado até então, tendo sido exibido nos cinemas brasileiros e nos do exterior. Foi premiado em vários festivais.

Existe também um filme americano de 1975, dirigido por Milos Forman e com Jack Nicholson (Randle Patrick McMurphy) no papel principal, que recebeu o nome de Um estranho no ninho aqui no Brasil. Randle é um homem inteligente, que, internado num hospício, tenta instaurar uma revolta contra os desmandos da enfermeira-chefe Ratched.

Outro filme importante, mostrando a terrível realidade intramuros desses manicômios é a produção nacional Bicho de Sete Cabeças, com Rodrigo Santoro no papel de Neto. Direção de Laís Bodanzky e roteiro de Luiz Bolognesi. Neto é internado pelo pai porque ele descobre que o filho fuma um cigarro de maconha. A película foi premiada e ajudou a repensar a questão dos hospícios no Brasil.

Condição, aliás, criticada por Machado de Assis em seu excelente conto O Alienista, embora o foco dessa obra não tenha sido sobre o inferno dos internos, mas questionou a tirania da ciência do século XIX. Simão Bacamarte, o alienista da história, funda um hospício, a Casa Verde, interna cobaias humanas para suas experiências e termina sendo uma delas.

Há livros que se impõem pela trama magistral, a criação impressionante dos personagens, pelo suspense bem arquitetado, por todo um mundo ficcional criado. Há livros que, como esse, se impõem pelos horrores constatados, lembrados muito de perto por certas narrativas sobre os campos de concentração, Auschwvitz, por exemplo, ou o Recordações da Casa dos Mortos, no qual o escritor russo Fiódor Dostoiévski relata seu sofrimento durante sua prisão, na Sibéria . Têm de ser lidos, para que de uma vez por todas, nunca mais deixemos que tais coisas sejam perpetradas.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Geração Editorial Geração. São Paulo, SP: 2013

terça-feira, 15 de abril de 2014

Resenha nº 37 - Corações descontrolados, de Ana Beatriz Barbosa Silva

  • Este é um livro que pode ser enquadrado no campo da divulgação científica. Ana Beatriz Barbosa Silva, sua autora, é uma experiente médica graduada pela UFRJ, com pós-graduação em psiquiatria. Tornou-se referência nacional no tratamento de transtornos  mentais. É autora das obras Mentes Perigosas – O psicopata mora ao lado, Bullying – Mentes perigosas nas escolas, Mentes Inquietas – TDAH: desatenção, hiperatividade e impulsividade, Mentes e Manias – TOC: Transtorno Obssessivo-Compulsivo, Mentes Ansiosas – Medo e ansidedade além dos limites e Mundo Singular – Entenda o autismo (esse último em parceria com Mayara Bonifácio Gaiato e Leandro Thadeu Reveles).

Trata-se de um texto fácil de ler, apesar de abordar assunto tão complexo como o Transtorno de Personalidade Borderline – TPB. Os portadores desse tipo de transtorno têm sentimentos e emoções exarcebados sempre, numa espécie de ansiedade, angústia vital. Instabilidade de emoções talvez seja a expressão que melhor dê ideia a nós, público leigo, sobre a característica border.

Várias disfunções, didaticamente divididas em quatro aspectos – emocional, cognitivo, comportamental e pessoal – estão presentes nesta obra sobre o  transtorno abordado. Os borders sofrem de uma abismal baixa autoestima e têm problemas, principalmente, quando sofrem rejeição de algum tipo. Metem-se constantemente em relações amorosas “que todo mundo vê que não vai dar certo”. Tais rejeições são para eles um motivo de explosão incontrolável, após o que lhes advém o ódio, a ira e a vergonha em relação a si mesmos.

No filme Mulheres à beira de um ataque de nervos, de Pedro Almodóvar, a protagonista Peppa (Carmem Maura) é exagerada em suas emoções, impulsiva. Depois que seu amante Ivan encerra o relacionamento com ela, a instável e explosiva Peppa joga a mala de Ivan no lixo, põe fogo na cama do casal, numa reação típica dos portadores de Transtorno de Personalidade Borderline.

O TPB acomete, segundo Ana Beatriz, mais as mulheres do que os homens, justamente por ser a mulher mais envolvida com sentimentos; há, entretanto, muito mais homens psicopatas do que mulheres, pela maior propensão do masculino para a razão, a frieza.

O transtorno de que estamos falando é extremamente difícil de ser diagnosticado, tanto assim que pacientes só são diagnosticados corretamente após dez anos de perambulação por consultórios de psicólogos e de psiquiatras. Somente um terapeuta experimentado pode ajudar o border de uma maneira efetiva. Não existem remédios específicos para o mal, mas alguns psicotrópicos, normalmente receitados para outros tipos de transtornos podem ajudar. Todavia, a terapia é baseada na recuperação da autoestima.

O TPB, quando acontece, acaba por expor sua característica mais evidente, o descontrole emocional, a partir da adolescência, pois é nessa fase que os hormônios são abundantes e algo descontrolados, além de ser também o momento da vida em que o ser humano se inicia nas relações amorosas, ainda cheio de medos e incertezas – com possibilidades maiores de rejeição.

Ana Beatriz elenca várias personalidades, possivelmente portadoras de Transtorno de Personalidade Borderline, apesar de deixar claro serem apenas indicações, baseadas na sua experiência e na observação. Assim, temos Amy Winehouse – explosiva, encrenqueira e talentosa; Marilyn Monroe – bela, sexy e imortal; Tony Curtiss, Janis Joplin, Elizabeth Taylor, etc. Indiscutíveis talentos, famosos, personalidades difíceis e instáveis.

Conhecer um pouco do Ser Humano, capaz de loucuras abomináveis e realizações admiráveis é altamente instigante. Todos nós, assegura Ana Beatriz e eu acredito mesmo nisso, somos portadores de algum traço de transtorno. Quando nos apaixonamos, por exemplo, apresentamos um indício de transtorno borderline: vivemos um excesso de sensações, de sentimentos. O fim de um relacionamento pode atirar uma pessoa ao fundo de uma depressão. O problema do border típico é que esse estado não é episódico, e, junto a outras características, faz dele uma bomba pronta a explodir ao menor atrito.

Um livro muito elucidador, muito bom. Vários leitores poderão achar a leitura um tanto difícil de ser vencida, pois não se trata de uma narrativa (embora o livro tenha muitas delas). A autora teve o cuidado de providenciar a “tradução” de termos técnicos e procurou adaptar-se ao seu público-alvo. Para professores, penso que deveria ser leitura se não obrigatória, pelo menos fortemente recomendada.

BARBOSA Silva, Ana Beatriz. Corações descontrolados. Editora Fontanar. Rio de Janeiro, RJ: 2010

Resenha nº 36 - Todas As Histórias do Analista de Bagé, de Luís Fernando Verissimo

Se tu estás pê da vida com alguma coisa, se o tédio te visita com frequência, te abanque, índio velho, te aprochegue e marque uma consulta com o excelente analista de Bagé, no más! Lá estará, para receber-te, a Lindaura, recepcionista de comprovada eficiência, que, segundo palavras do próprio analista, “é como o trigo: lindo de se vê, mas só dá uma vez por ano.”

Todas as Histórias do Analista de Bagé, de Luis Fernando Verissimo é um pequeno grande livro sobre o personagem mais famoso do nosso cronista-humorista; sem dúvida, uma criação sua que caiu no gosto popular.

Profissional “levemente alucinado e com um repertório particular de expressões regionais”, prescreve tratamentos nada ortodoxos. Por exemplo, as angústias existenciais ele as cura com uma técnica peculiar: o joelhaço. Ele aguarda a distração do vivente e lhe aplica uma forte joelhada no saco escrotal, trazendo-o de volta à vida. Complexo de Édipo é com ele mesmo: acaba com o problema à base de goles de chimarrão; mania de perseguição é pura frescura. Já para os casos de frigidez feminina, o receituário prevê um bom amasso com o analista, de preferência no aconchego do pelego sobre o divã.

No começo de sua carreira, o analista de Bagé foi chamado no meio da noite para acudir um caso extremo: seu Vespasiano endoidara de vez e acreditava ser metade homem, metade cavalo. Tudo se resolveu numa inteligente argumentação: o analista revelou desconfiar que a parte de baixo do seu Vespasiano – a metade cavalo – lhe pertencia, era do cavalo castanho que lhe fugira.

- Quero ver a marca na anca. Se não tá marcado, é meu.

Seu Vespasiano recuperou a lucidez na hora.

Verissimo dispensa mais comentários. Dono de um texto leve, fluente, dominador do perfeito timing das piadas, é um autêntico sucesso e se enquadra no seleto grupo guindado à fama e reconhecimento praticando “apenas” textos curtos. Entretanto, saborosíssimos.

Pra lá de recomendado, conta até com um glossário das expressões originais, originalíssimas, do nosso querido analista. Na nota de número 22, temos a palavra “piguancha”. Seu significado? “Puta, mas no bom sentido”. Pode?

VERISSIMO, Luis Fernando. Todas as Histórias do Analista de Bagé. Editora Objetiva. Rio de Janeiro, RJ: 2002.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Resenha nº 35 - Cavalo de Troia 3 – Saidan, de J. J. Benítez

Neste volume, J. J. Benítez continua a saga do Major Jasão. São 144 páginas antes de entrar, propriamente, no diário. Benítez, como no volume 2 (já resenhado neste blog), deve decifrar outro enigma. São chaves criadas pelo Major para certificar-se da segurança dos seus documentos. Se eles caíssem em mãos erradas, a história poderia ser adulterada ou nem mesmo ser publicada.

O enigma leva nosso escritor por várias cidades, tentando atribuir significado às estranhas frases, pistas para o encontro desta terceira parte do relato. São várias peripécias, em que J. J. terá sua dedicação e acuidade mental posta à prova.

Por este terceiro volume se entende por que, afinal, a série Cavalo de Troia é abominada pela igreja católica. As revelações sobre Jesus são bombásticas, configurando-se contra os dogmas da grande religião do ocidente. Entretanto (ou, talvez, o que é pior, muito pior para os dogmatistas), a figura do mestre mostra uma profunda coerência, revela-se uma doce e segura harmonia, mesmo fora do que afirmam os evangelistas.

Como sempre, Jasão é que faz as incursões pelos tempos de Jesus, enquanto o fiel escudeiro Eliseu lhe dá suporte a partir do módulo de transporte. E o major constata não três aparições do mestre ressurrecto, mas várias. De algumas, ouve falar, não estando presente.  Pessoas comentam, os apóstolos anunciam o aparecimento dele em vários locais.

O livro tem trechos extremamente interessantes, mas os que mais me tocaram foram aqueles compreendidos entre as páginas 290 a 329 e entre 330 a 363. Mas é preciso antes uma explicação fundamental para as conclusões a que chega o cético Eliseu. Jasão conta com um equipamento de alta tecnologia, disfarçado em cajado, a que ele dá o nome de “Vara de Moisés”. O instrumento conta com câmara digital e emissor de ultrassom de altíssimos recursos. É com toda essa parafernália eletrônica que são feitas descobertas fantásticas a respeito do tal “Corpo Glorioso” do nazareno.

Entretanto, não são tais revelações que me sensibilizaram; as palavras do rabi, na conversa com Jasão (páginas 290 a 329) e, depois, com Eliseu (páginas 330 a 363) é que são de uma lógica e coerência instigante. Sim, pois dos evangelhos ecoam as palavras de Jesus Cristo: “eu não vim derrogar a lei”.

Às margens do Lago Tiberíades, Jasão deita-se para descansar. Entrementes, antes do amanhecer, ele percebe uma luz que se desloca no céu. Seus sentidos treinados lhe apontam tratar-se de um artefato voador; sua lógica não aceita tal fato, pois, em pleno século I, não seria possível haver aparelhos voadores, nem alguém com conhecimento e experiência suficiente para operá-los.

Percebe um vulto a caminhar pela praia. Aos poucos, o medo irracional toma conta do pobre major: reconhece a estatura, a figura do Mestre. Descontrola-se de pavor, termina preso numa rede de pesca. Quanto mais se debate para escapar dela, mais enredado fica. E o Mestre (é ele, sem dúvida) se aproxima, toma uma tocha e com ela queima as tramas da rede, libertando o nosso Jasão. O diálogo que têm assume tons de fantástico, vindo de um ser que o viajante do tempo vira morrer na ignomínia da crucifixação.

Deixemos alguns trechos falarem por si.

“- Antes da minha Encarnação na Terra os homens podia crer em um Deus colérico, sedento de justiça. Sua ignorância era perdoável. Agora revelei-lhes um Pai misericordioso que só conhece a palavra Amor. Crês, então, que um Pai pode desejar essa morte para um filho? Sua vontade era que eu permancesse em vosso mundo até o final e que esgotasse o cálice que todos os mortais, por sua natureza, têm bebido e beberão. Se eu compartilhei a morte foi para demonstrar-vos que a fé em Deus nunca é estéril. Sei que, apesar de minhas palavras, muitos deformarão o sentido de minha morte na cruz. Eu não vim ao mundo para saldar uma suposta velha conta dos homens para com Deus…

Detive-me. E Jesus, percebendo minha surpresa, acrescentou:

- Sei o que estás pensando. Estás enganado, como se enganam todos os que assim pensam. O Pai Celestial não pode conceber jamais a grave injustiça de condenar uma alma pelos erros dos seus antepassados.

- Então essas ideias dos cristãos sobre a redenção pela cruz…

O Mestre pousou suas mãos sobre meus ombros, transmitindo-me sua compreensão.

- A tendência ao vício pode ser hereditária. O pecado, ao contrário, não se transmite de pais a filhos. O pecado é um ato consciente e deliberado de rebeldia contra a vontade de nosso Pai Universal e contra as leis do Filho. Toda ideia de resgate ou expiação, portanto, é incompatível com o conceito de Deus. O amor infinito do nosso Pai ocupa o primeiro posto dentro da natureza divina. Em verdade te digo, Jasão, que o senso de salvação pelo sacrifício está arraigado no egoísmo. Eu tenho pregado que a vida de serviço é o conceito mais elevado de fraternidade entre os que creem. […]”

E a conversa entre o viajante do tempo e o Mestre prossegue, com o nazareno desmistificando uma enorme quantidade de coisas a seu respeito e a respeito de sua verdadeira missão. Quando Jesus lhe afirma que “a salvação humana é inegável e se baseia em dois únicos princípios: Deus é nosso Pai e, consequentemente, todos os homens são irmãos”, Jasão lhe indaga sobre quando a utopia de os homens se amarem como irmãos se dará, ouve a resposta:

“- Só há um caminho: o amor. O amor dissolve o pecado e as fraquezas. Ama teu semelhante, Jasão! Ama-o na penúria e na riqueza! Ama-o ainda quando creias que ele está errado! Ama-o, simplesmente!”

Mais tarde, conversam os três, Eliseu, Jasão e o Mestre. Frente ao ceticismo de Eliseu, o sublime rabi lhe indaga:

“- Por que credes que estais aqui?

A questão colocada pelo Mestre parecia óbvia. Sua interpretação, todavia, nem tanto.

- Digo-vos que nos universos do nosso Pai nada que diga respeito ao domínio do Espírito fica escravizado ao acaso. Tudo é obra do amor, da sabedoria e da misericórdia.

- Não te compreendemos, Senhor.

O Ressucitado marcou então com seus olhos a posição do “berço”. Eliseu e eu voltamos a olhar-nos, desarmados.

- … Quando fordes devolvidos ao mundo e ao momento de onde vindes, uma só realidade brilhará em vossos corações: ensinais a vossos semelhantes, a todos, o que haveis visto, ouvido e vivenciado a meu lado. Sei que, à vossa maneira, terminareis por confiar em mim. Sei também que não temeis os homens nem o que eles possam representar. E que proclamareis minha Verdade. E outros muitos, graças ao vosso esforço e sacrifício, receberão a luz de minha promessa.”

Mais tarde ainda, Eliseu, que havia deixado os aparelhos de rastreamento ligados, se espanta com a composição do “corpo glorioso” do Mestre: simplesmente, incompreensível para a ciência. Não há órgãos, nada que se pareça com o sistema circulatório convencional. Parece antes um corpo no qual circulam energias, administradas pela potência da mente do Mestre (outra pedra de escândalo da série Cavalo de Troia!).

A experiência de dedicar-me a ler uma série de nove livros (dez, na verdade, pois já tomei conhecimento da chegada à livraria do mais novo exemplar, “Dia do Relâmpago”) tem exigido de mim disciplina e fidelidade ao projeto de leitura. Mas vêm sendo altamente compensadoras, pois Cavalo de Troia é, sob todos os aspectos, um exercício intrigante. J. J. Benítez montou um edifício narrativo de cuja entrada não se sai impune.

Mexe com dogmas longamente construídos, propõe intensas asserções imaginativas, abala mitos. Não é pouco. A cada volume, tem me espantado a quantidade de informações detalhadas, o conhecimento das narrativas bíblicas (nem que seja para contradizê-las), a massiva informação técnica e histórica de pé de página.

BENÍTEZ, J. J. Cavalo de Troia 3 – Saidan. Edição revisada. Editora Planeta. São Paulo, SP: 2010.