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domingo, 18 de janeiro de 2015

resenha nº 47 - As intermitências da morte, de José Saramago

José Saramago é o único escritor de língua portuguesa agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Tal feito foi alcançado em 1998, embora sempre haja quem discorde do merecimento desse galardão. Afinal, não faltam bons escritores lusófonos, como por exemplo, e para citar um apenas, o António Lobo Antunes. Realmente, o Prêmio Nobel tem forte viés político, já o sabemos. O importante é que Saramago merece a distinção, pelo conjunto da obra extensa e solidamente conceituada.

Nosso escritor nasceu em 16/11/1922 e faleceu em 18/06/2010, em Lanzarote, em exílio autoimposto. Exerceu várias profissões na vida: serralheiro, desenhista,  funcionário público, jornalista e escritor tardio. Elaborou obras das mais importantes para o romance contemporâneo, como Ensaio sobre a cegueira, transformado em filme, O evangelho segundo Jesus Cristo, O dia da morte de Ricardo Reis, A caverna, O homem duplicado, A jangada de pedra. Como se vê, o leitor atento que desejar obter uma amostra do que de melhor se faz na literatura mundial hodierna não pode ignorar José Saramago.

Ateu por convicção, desagrada a muita gente. Seu estilo é inconfundível pelo uso da pontuação, um tanto personalizada, pelo uso perfeito do diálogo indireto livre e a construção de longos períodos, pelos seus temas e a forma quase sempre alegórica de abordar ironicamente a realidade. Sua escrita tem algo de barroco, de ritmo lento, cheia de “anotações à margem da história”, isto é, com várias passagens nas quais se manifestam seus comentários, suas reflexões.

Não é diferente com esse As intermitências da morte. A página que abre a obra já começa em media res, no meio das ações:

“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.” (página 11)

O leitor sofre o impacto do tema na abertura: a interrupção da ação da morte, configurada no romance como uma personagem – quem ler o livro até o fim descobrirá que ela, na verdade, é a personagem principal, sobre a qual se constrói o fio narrativo. O restante do texto passa a comentar as complicações religiosas, políticas e sociais advindas da “greve” da senhora morte. A metralhadora irônica de Saramago mira para todos e tudo; ninguém morre, aqueles já em agonia recuperam-se miraculosamente, os acidentes não matam mais. E tudo isso acontece num país pequeno, inominado pelo autor. A jurisdição da morte (escrita assim mesmo, com minúscula) se restringirá às fronteiras políticas do dito país. Além delas, tudo acontece como sempre aconteceu.

A religião entra em crise: de acordo com as palavras de nosso autor, toda religião é erigida sobre a motivação da morte. Falam da vida após ela, justificam-se por ela. Ora, faltando a motivação, o que será de todas as denominações religiosas? Eis aí o ateu Saramago divertindo-se em criar aporias, isto é, raciocínios sem solução:

“Quando os filósofos, divididos, como sempre, em pessimistas e optimistas, uns carrancudos, outros risonhos, se dispunham a recomeçar pela milésima vez a cediça disputa do copo que não se sabe se está meio cheio ou meio vazio, a qual disputa, transferida para a questão que ali os chamara, se reduziria no final, com toda a probabilidade, a um mero inventário das vantagens e desvantagens de estar morto ou de viver para sempre, os delegados das religiões apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual aspiravam a estabelecer o debate no único terreno dialéctico que lhes interessava, isto é, a aceitação explícita de que a morte era absolutamente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto, qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido.” (página 35)

O comércio dos funerais quase vai à falência, é necessário abrirem-se mais e mais hospitais, o Ministério da Saúde se vê às voltas com o crescente dispêndio de dinheiro para construí-los, as casas de assistência para as pessoas de terceira e “quarta” idades se espalham pelo país, as companhias de seguro quase vão à loucura.

E, para acrescentar uma pitada de veneno literário, o narrador, lá pelas páginas 45, deixa intrometer-se uma observação sobre o depoimento dele mesmo, narrador:

“Os actores do dramático lance que acaba de ser descrito com desusada minúcia num relato que até agora havia preferido oferecer ao leitor curioso, por assim dizer, uma visão panorâmica dos factos, foram, quando da sua inopinada entrada em cena, socialmente classificados como camponeses pobres. O erro, resultante de uma impressão precipitada do narrador, de um exame que não passou de superficial, deverá, por respeito à verdade, ser imediatamente rectificado.” (grifo nosso)

O que resulta de tal estratégia saramaguiana, dessa retificação? Todo o relato é colocado sob suspeita, pois o narrador transforma-se em não confiável. Tática também usada por Machado de Assis, quando centra a narrativa de Dom Casmurro num Bentinho como um narrador não confiável.

Outras tantas mirabolâncias são relatadas, quando órgãos do governo tentam resolver a situação nova, quando as igrejas (é nomeada a Igreja Católica, fato que deve ter gerado, suponho, o ódio dos seus praticantes mais dedicados) tentam uma nova interpretação para angariar a antiga validade diante de seus seguidores.

Como o Homem é um ser extremamente adaptável, outra não seria a explicação do seu domínio sobre a Terra, logo-logo criam-se mecanismos – digamos – não muito lícitos de resolver o problema da ausência da morte. Surge uma máphia, assim mesmo com “ph”, para a diferençar da outra, tradicional”, para tentar resolver o problema da falta de morte.

Um final absolutamente inesperado nos prende a atenção até o fim da leitura. O século XX e estes inícios do XXI têm produzido notáveis obras distópicas; pouca coisa escapa às análises demolidoras destes autores e autoras, críticos da sociedade na qual vivemos. Nem sempre o produto é a desesperança, diga-se de passagem.  Distópicas são obras como 1984, A revolução dos bichos, de George Orwell; A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, já resenhada neste blog. Uma boa parte dos filmes de ficção científica segue o mesmo filão: Os agentes do destino, com Matt Damon e Emily Blunt, baseado num conto de Philip K. Dick; A origem, com Leonardo Dicaprio, Ken Watanabe, Gordon-levitt, Michael Caine e outros; O preço do amanhã, com Amanda Seyfried e Justin Timberlake, além dos filmes do Batman, que mostram uma Gothan City gótica, escura e apodrecida por dentro.

A obra As intermitências da morte vale a pena ser lida. É um grande livro, uma análise contundente e irônica da sociedade em que vivemos. Mas atenção, leitor; nem sempre Saramago usa tons leves como neste livro. Ensaio sobre a cegueira, por exemplo, apesar de também ser alegórico, é uma leitura densa, pesada e incômoda.

SARAMAGO, José. As intermitências da morte. Companhia das letras. São Paulo, SP: 2005.

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