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quarta-feira, 29 de abril de 2015

Resenha nº 51 - O Guardião de Memórias, de Kim Edwards

Resultado de imagem para livro O Guardião de MemóriasKim Edwards é americana, nascida em Kileen, Texas, em 04/05/1958 e, além de escritora, é educadora. Seu primeiro livro recebeu o nome de The Memory Keeper’s Daughter (A Filha do Guardião de Memórias – título oficial O Guardião de Memórias, em publicação no Brasil pela Sextante, 2005). Por ele, a autora conquistou o Prêmio Popular de Ficção de Sainsbury e em 2008, o Prêmio Literário Inglês. Kim escreveu também uma coleção de contos com o título O Segredo de Um Rei de Fogo (The Secrets of A Fire King), com o qual também ganhou alguns prêmios. Seu romance mais recente é O Lago dos Sonhos, de 2011.

Norah e David têm uma vida que promete tudo de bom. Ele é um médico, bom homem e Norah é uma dona-de-casa. Casaram-se por amor e Norah está grávida. Durante uma terrível nevasca em 1964, Norah entra em trabalho de parto. David a leva para a clínica mais próxima, em que trabalha, mas não há médicos de plantão. Com a ajuda da enfermeira Caroline Gill, ele mesmo realiza o parto da esposa. Nasce Paul, uma criança perfeita e saudável. David tem uma decepção, porém: nasce também Phoebe, uma menina portadora da síndrome de Down.

David se lembra da irmã já falecida, portadora de uma malformação cardíaca. O médico, tentando preservar a esposa do sofrimento advindo de uma filha com problemas, comunica à mulher a morte da filha e entrega a menina a Caroline Gill, para que esta a leve para um orfanato.

Mas Caroline não tem coragem para fazer isso e resolve criá-la longe dali. Secretamente, Caroline nutre por David uma paixão não correspondida e vê no contato com Phoebe algo que a ligue ao médico.

David carrega a marca da presença da filha rejeitada, um segredo a envenenar sua vida. Norah carrega a ausência da filha, que a marca para sempre. Paul, filho do casal, sente o distanciamento dos pais motivado por alguma coisa obscura.

Este livro se caracteriza por um narrador onipresente. Os personagens centrais da história são redondos, isto é, evoluem com o desenrolar dos fatos: Paul, Phoebe, David, Norah e Caroline Gill. Temos, ainda, os seguintes personagens: Al Simpsom, caminhoneiro e casado com Caroline Gill; Rosemary, uma garota grávida encontrada na antiga casa de David, em Pittsburgh (mais tarde, levada por ele para morar na casa dele). Frederic, o novo marido de Norah. Jack, filho de Rosemary. Michelle, uma flautista e por um tempo, namorada de Paul. Bree, irmã de Norah, e com quem Norah melhor se entende. Duke Madison, amigo de Paul, pianista de talento, mas que abandona sua carreira. Dorothy e Trace, amigos de Caroline Gill (Dorothy se muda ao se casar e deixa a casa antiga para Caroline). Sandra, amiga de Caroline, mãe de Tim, outra criança portadora de síndrome de Down. Robert, o namorado de Phoebe. Howard e Sam, dois homens que se tornam “casos” na vida de Norah.

Assumo, caro leitor, tentei fazer essa resenha sem spoilers, mas não consegui e isso se deu por um fator extremamente incômodo: o enredo do livro é muitíssimo previsível. Não há como dar uma ideia da história sem se cair nos spoilers.

Esse é, aliás, um defeito muito criticado em muitos dos chamados Best-sellers: estruturas muito rígidas, engessadas, que se repetem indefinidamente. Pode ser por falta de criatividade do escritor ou, então, uma decisão proposital ( da editora ou do escritor) no sentido de tornar a história atrativa para um público não acostumado às leituras de grandes mergulhos. Basta nos lembrarmos daqueles livrinhos de banca de revista: muda-se o nome dos personagens, alguma cor local (dados da cultura, geografia) sem modificações mais profundas. E ficamos com a impressão do já-lido.

Estou entre os leitores insatisfeitos com a obra, embora a bela capa do livro traga a informação de ele ter figurado no “primeiro lugar na lista de mais vendidos do New York Times”. Creio poder dizer, sem ser injusto, as pessoas com mais vivência de leitura anteciparão, sem dificuldades, o final da história. Além do mais, Kim Edwards erra a mão na dosagem da desgraça. Todos os personagens têm suas tragédias, não há momentos felizes que temperem suas vidas infortunadas. Para quem tenha gostado do livro – e têm todo o direito a isso – digo, o meu parecer é exatamente isso: um parecer, não uma verdade absoluta.

EDWARDS, Kim. O Guardião de Memórias. Editora Sextante Ltda. Rio de Janeiro, RJ: 2005.

sábado, 4 de abril de 2015

Resenha nº 50 - Onde Andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu

Resultado de imagem para Grandes Escritores da Atualidade Onde andará dulce veiga?

Caio Fernando Loureiro Abreu nasceu na cidade de Santiago, Rio Grande do Sul, em 12/09/1948. Estudou Letras e Artes Cênicas na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo sido ali colega de outro escritor, João Gilberto Noll. Caio abandonou os dois cursos e trabalhou como jornalista nas revistas Nova, Manchete, Veja e alguns jornais. Em 1968, nos “Anos de Chumbo”, foi perseguido pelo famigerado DOPS – Departamento de Ordem Política e Social – tendo ficado escondido no sítio da escritora paulista, Hilda Hilst. Foi exilado em 1970, por um ano, na Europa; viveu na Espanha, na Suécia, nos Países Baixos, na Inglaterra e, por fim, na França. Fernando Abreu teve a coragem de se assumir homossexual em plena ditadura militar. Em 1994, descobriu ser portador do vírus HIV. Faleceu em 25/02/1996.

Conhecia o escritor Caio Fernando Abreu por ouvir comentários, ler algo sobre ele na internet, mas ainda não o havia lido, apesar de ter esse livro na minha biblioteca. Iniciei, desta forma, a leitura ontem, 03/04 e a terminei hoje, 04/04/2015, ansioso por resenhá-la.

Antes de tudo, o livro é sobre a questão da identidade; a palavra pentimento, de origem italiana, é abordada várias vezes durante a narrativa deste Onde Andará Dulce Veiga?. Pentimento é um conceito muito vinculado à pintura: significa uma pintura sobre um esboço anterior; em muitos casos, com o passar do tempo, a tinta da pintura final clareia e deixa ver o leve esboço de origem. O uso frequente do vocábulo tem tudo a ver com a falta de identidade, já que duas realidades, ainda que não completamente distintas entre si, causam uma espécie de lusco-fusco, uma sobreposição. Perpassa o livro uma amargura, um desencanto contido, que às vezes não consegue evitar o grito:

“- Há anos que você sempre quer me ajudar, e acaba atrapalhando tudo. Não foi você quem contou para Alberto que eu estava louca em Nova York? Me faz um favor: não tenta nunca mais me ajudar. Eu quero quebrar a cara sozinha, meu amor. Como quebrei, depois que Ícaro morreu.

De repente, sem ninguém esperar, Márcia jogou-se na cama e começou a chorar, o rosto enfiado nos lençóis encardidos. Em frente àquele morto-vivo travestido de outra morta-viva, como atores que não tivessem decorado o texto nem as marcas de um filme ou peça, talvez livro, de qualidade duvidosa, Patrícia e eu nos entreolhamos.”(página 155)

O narrador da história, também nomeado Caio, é um sujeito completamente perdido, numa cidade grande. Não sabe que rumo dar a sua vida. Não consegue se decidir sobre sua própria sexualidade. E tudo começa quando ele consegue um “trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo” (página 2). Ele se lembra da cantora Dulce Veiga, desaparecida há mais de vinte anos e comenta o caso com seu chefe, que é fã de carteirinha da artista desaparecida. Dá-lhe carta branca para pesquisar e fazer uma crônica saudosa. A publicação faz sucesso e assim ele começa o trabalho de detetive, atrás da cantora.

Dulce (que, a seu turno, também não sabia direito o que querer da vida)  tivera seus casos extraconjugais e acabou se envolvendo com quem não devia, num tempo de ditadura. Acabou desaparecendo de cena, não tendo tempo nem para comparecer ao show ao vivo já marcado. Os jornais da época fizeram um alvoroço, mas, depois, como tudo aliás, o caso foi caindo no esquecimento.

Uma banda de rock faz sucesso naquele momento, com o nome de Márcia Felásio e As Vaginas Dentatas. O narrador descobre que Márcia é filha de Dulce Veiga. Construindo seu percurso investigativo, nosso repórter avança por meio de fiapos de revelações a respeito da diva da música; nem sempre as pessoas estarão dispostas a colaborar com seus esforços. Há um momento em que ele quase desiste. Para não cometer lamentáveis spoilers, já que, num romance de trama policial o enredo tem grande importância, não vou mais falar das surpresas que aguardam o leitor.

Caio Fernando Abreu tem um estilo extremamente conciso e preciso, sua imaginação passeia pelas cenas como as lentes de uma câmara:

“Castillos bateu no ar um de seus cigarros. Desde que eu o conhecia, há uns vinte anos, fumava três ou quatro ao mesmo tempo. Alguns equilibravam-se na beira da mesa, o contorno metálico cheio de manchas escuras, outros espalhavam-se pelos cinzeiros perdidos entre pilhas de laudas, fotos, clips, pastas, envelopes, copos plásticos, adoçante artificial, tubos de cola, rolos de dinheiro, latas de coca-cola dietética e um boi nordestino de cerâmica, que eu conhecia de outras redações. Por trás dele, o ventilador soprou as cinzas contra os meus olhos. A sala acarpetada devia estar numa temperatura próxima de um forno crematório.”(página 14)

O aspecto amargo-irônico transparece em descrições como esta:

Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides, de braço dado, e tantos mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta.” (página 21)

Mas há espaço para o poético, como no trecho em que o autor descreve o cair da tarde:

“Ergui a cabeça para as manchas cada vez mais douradas do crepúsculo, e foi nesse momento que a vi, incendiada de prata, um pouco acima da faixa violeta sobre os edifícios mais altos, a primeira estrela, devia ser Vênus. Primeira estrela que vejo, lembrei, realiza o meu desejo, pulávamos amarelinha riscada com pedaços de tijolo pelas calçadas do Passo da Guanxuma, eu sempre queimava o limite do céu na hora de dar o giro de costas, num salto, olhos fechados, sete vezes repetir, olhos abertos presos na estrela até fazer o último pedido, depois não olhar mais para cima. Parado entre quatro esquinas, a primeira estrela à minha esquerda, o arco-íris à direita, de frente para a cidade, de costas para o parque, respirei fundo o ar lavado pela chuva e pedi. Pedi sete vezes em voz alta, não havia ninguém por perto para olhar e talvez rir, um homem não muito jovem, todo molhado, falando sozinho, pedindo não sei o quê.” (página 36)

O autor utiliza duas formas de ordenar o tempo, durante a narrativa: 1) tempo cronológico, para a sequência dos fatos que se seguirão até o desvendamento do mistério de Dulce Veiga; 2) tempo não cronológico, para tratar de suas lembranças, que progridem ou recuam na sequência, dependendo do que os fatos lhe evocam.

Várias referências a músicas, como  Nada Além, maior sucesso de Dulce Veiga e regravada pela filha, Márcia Felásio, se fazem presentes. Em outras passagens, é a referência literária que prevalece:

“Mais que de ti”, lembrei, “mais que de ti, lembro dos teus sapatos amarelos.” Há mais de dez anos aquele verso – seria um verso? – rondava na minha cabeça. Só isso, nunca soubera o que vinha depois. Haveria mesmo algo depois? Ai como eu estava entediado. Espiei o jornal, um filme novo de David Cronemberg, eu adorava A mosca, chegara a escrever um artigo comparando-o com Kafka: a-mesma-gênese-maldita-de-todos-os-ousiders-que-originou-A-metamorfose, qualquer coisa assim, pretensa. Claro, eu me identificava um pouco, afinal tinha meus aninhos de terapia: moscas, baratas, insetos. Estava fazendo o possível para ficar deprimido, e não consegui parar.” (página 53)

Este foi um feliz primeiro contato com Caio Fernando Abreu. Romance maduro, não diria autobiográfico (para afirmar isso sem ser leviano precisaria conhecer a fundo a biografia do autor). Entretanto, acredito que todo aquele que escreve adiciona à matéria do trabalho algo de suas experiências, nem que sejam revisitadas, reinterpretadas. Excelente obra, digna de toda a recomendação. Antes de terminar, apenas mais um parágrafo.

O volume que tenho é parte de uma coleção chamada de Grandes Escritores da Atualidade; saiu em banca de revistas, publicada pela Planeta DeAgostini. Os volumes são muito bem-cuidados, e os autores selecionados, de grande qualidade. Ela saiu em 2003, dizem alguns, para fazer concorrência à outra coleção da Abril, de Clássicos. Não obstante a qualidade visível e o cuidado na seleção, a dose não foi repetida. Perde-se assim uma oportunidade ótima de se divulgar autores pouco conhecidos do grande público.

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga?. Coleção Grandes Escritores da Atualidade. Editora Planeta DeAgostini. São Paulo, SP: 2003.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

A Escolha da Leitura

por Cleuber Marques da Silva

“Como você escolhe seus livros?” Essa é uma pergunta que me fazem com alguma frequência, ao saberem da minha paixão pela literatura. Não é propriamente um método, mas apenas um costume, uma rotina. Gosto muito de visitar livrarias de shoppings; aliás, enquanto minha esposa e minhas filhas vão olhar suas compras, fico quase sempre dentro de uma livraria, sabendo que disporei de bastante tempo para minhas consultas.

A capa é importante. Digamos, é o primeiro item da “atração física” pela obra. Leio a quarta capa, que contém já alguma informação sobre o produto. A orelha do livro, se for bem feita, será também imprescindível: ali estão mais dados. Um passeio pelo índice tem dado bons resultados; se ele for feito com competência, me dará uma planta baixa do que tenho em mãos, principalmente se for uma obra técnica, acadêmica. É o caso, também, de consultar a bibliografia em que se apóia; essa pesquisa é rápida e me adiantará a linha seguida pelo autor ou, pelo menos, se é uma pesquisa séria.

Os prefácios, as introduções, apesar de serem quase sempre relegadas ao descaso, contêm muitas vezes, apreciações, podem revelar algo sobre o autor, sobre a obra; fornecem, às vezes, comentários críticos, alguma antecipação (sem serem spoilers), depoimento do autor.

Apesar de todo esse cuidado, em muitos casos vai funcionar mesmo algo completamente irracional: o feeling, o famoso e impreciso feeling. Afinal, tem-se de apostar em escritores não tão conhecidos. Como controlo bastante as compras basicamente por impulso e – cada vez mais compro pela internet – leio resenhas feitas em alguns blogues, vejo alguma crítica. Fique claro, entretanto, todo esse aparato me orienta sobre o que comprar, mas não decide por mim. Essas providências não funcionam bem com aquele autor novo, ainda pouco ou nada resenhado.

No caso de autores de quem tenha lido alguma coisa boa, o nome tem seu peso. Não costumo ser tão detalhista com o Cristovão Tezza, com o Chico Buarque. São bons escritores e, apesar de estar plenamente consciente de mesmo os bons escritores não conseguirem produzir sempre excelentes textos, produzem trabalhos honestos (não tentam enganar seus leitores). Aqui, o critério da credibilidade e da referência bem postada.Resultado de imagem para leitores

Como último ato, folheio o livro, leio trechos diversos. Aqui funcionará a velha e boa intuição. Por aí o leitor vê que, mesmo comprando muito pelas livrarias virtuais, não deixo de ir a uma loja física, para ter um – digamos – contato mais íntimo com a obra em questão.

Sendo tão virginiano assim – leia-se perfeccionista – será que nunca me enganei? Claro que sim, entendo que isso faz parte da vida de qualquer leitor. Ao adquirir algo ruim ou desagradável, não me forço mais: despacho-o na primeira oportunidade. Se uma leitura não me pega nas primeiras vinte páginas, concedo um descanso ao livro; se, na próxima vez, também não conseguir desenvolver a leitura além das tais páginas, é hora de passá-lo adiante. Pode não ser ruim, apenas não me agradar. Não tenho obrigação alguma de gostar do que leio.

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Quando fazia minhas leituras durante o curso de letras, li muita coisa chata (nem todo texto, acadêmico ou não, de autor famoso ou não, é bem escrito) por necessidade – haveria prova – ou por disciplina. Agora, não. Alguns livros ainda leio por disciplina, sobretudo aqueles reconhecidos como uma formação importante, mas tenho lido muito mais por prazer…