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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Resenha nº 54 - A Travessia de Eva, de Pierre Péju

Resultado de imagem para livro A travessia de EvaDescendente de uma família de livreiros de origem lionesa, Pierre Péju fez seus estudos de filosofia na Universidade de Sorbonne, Paris. Estudante apaixonado pelas manifestações de Maio de 1968, ele escreve, desde 1971, para diversos jornais e revistas.
Professor do liceu Champollion e, posteriormente, do liceu internacional Stendhal, em Grenoble, e diretor do programa do Collège International de Philosophie, ele é também autor de muitos ensaios, romances, contos e novelas. Especialista em Romantismo alemão, ele editou várias obras da coleção Românticos, Coleção Corti.
Recebeu os prêmios Prix du Livre Inter, 2003, e Prix Rosine Perrier, 2003, por La Petite Chartreuse (A Travessia de Eva, em português); Prêmio de Romance Fnac, 2005, por Le Rire de l’ogre (O Escárnio do Ogro – tradução livre do título, de minha autoria).
Travei contato com o livro A Travessia de Eva e com seu autor, Pierre Péju num saldão de livros à venda em um shopping. Nunca ouvira falar da obra e autor, ignorância confessa. Como sempre faço, folheei o pequeno volume, li as informações contidas nas orelhas e na quarta capa. Observei cuidadosamente a capa: a chuva caindo sobre vários guarda-chuvas negros. As gotas em pequeno relevo, traçando linhas plastificadas. O nome, escrito em branco, manuscrito. Tinha tempo; li trechos aqui e ali, pinçados a esmo, e gostei do conjunto. Você certamente já ouviu dizer que, no relacionamento entre pessoas, há uma química. Pois bem, entre leitor contumaz e o objeto do seu desejo também deve haver uma química. Se da mesma ordem, não sei; quem o souber, que me ajude.
Thérèse Blonchart, certo dia, chega muito atrasada à porta da escola em que estuda sua filha, a pequena Eva. A menina não está mais à sua espera; dizem-lhe que a viram ir embora sozinha. A mãe se preocupa: com certeza, a filha não saberá encontrar o apartamento onde moram. E, ao atravessar apressadamente uma avenida, Eva é colhida pela camionete de Étienne Vollard. Esse é o drama sobre o qual o autor constrói sua obra.
Étienne sempre fora um menino grandalhão, desajustado no contato com as pessoas, apenas aluno mediano, mas com uma memória fantástica para os muitos livros que lia. Sabia de cor trechos e trechos de muitos, vários autores. No entanto, era um incapaz de relacionamentos sociais. Vollard trabalha com aquilo de que mais gosta: livros. É dono de um sebo, chamado O Verbo Ser.
Thérèse é muito jovem, sem nenhuma aptidão para ser mãe. Ela tenta, mas não consegue. Mulher extremamente solitária, tem de trabalhar para se manter e à filha. Particularmente, não é chegada a leituras; simplesmente vive e trabalha e isto é tudo.
Não é difícil imaginar que essa condição também vai influenciar Eva. Na escola, não tem amiguinhas, tão comuns nesta época da vida. Criança igualmente sozinha, quieta, calada em seu canto.
O acidente sofrido pela menina aproxima os dois outros personagens, Étienne e Thérèse. Um homem profundamente solitário e uma mulher jovem, de igual condição. Vollard vai visitar Eva no hospital, movido pelo sentimento de culpa. A pequena tinha surgido na frente do seu veículo, lotado de livros, estava chovendo e ele não conseguira evitar a colisão. A vítima está em coma, muito machucada.
Enquanto Vollard visita sistematicamente a menina, a mãe pouco a pouco se afasta. Afinal, não há nada a fazer. Étienne também não sabe como proceder; sem saber direito o que faz, recita trechos dos livros lidos para ela ouvir. Mas a criança não responde. A evolução do caso, se houver, será muito lenta e, provavelmente, com sérias sequelas.
Pierre Péju traça, neste A Travessia de Eva – narrativa de 160 páginas, um quadro terrivelmente comum, mas não menos pungente: pessoas sozinhas, em suas vidas monótonas, sem força e sem vontade de serem protagonistas de si mesmas. Formatadas pelos seus estreitos horizontes e a eles conformadas. O que move Vollard não é compaixão pela vítima do acidente, apenas culpa. Ele não vislumbra a possibilidade de evolução do caso, como, aliás, igualmente não tem perspectiva de modificação para sua própria vida.
Thérèse vive nesse mesmo marasmo. Não cuida bem de Eva, não porque não o queira, mas por não ter essa capacidade. Nela, o instinto materno é nulo. Péju não nos diz algo sobre o passado dessa personagem, deixando a nós – leitores – uma sensação de ausência de informações. Ela é daquelas personagens que, por si sós, mereceriam uma história, um passado. Por que ela é assim? Como engravidou? Amou alguém?
Entretanto, tal economia de dados só realça a contundência narrativa. E, creio, foi uma questão de escolha do autor. Mesmo quando ele constrói um passado para Étienne Vollard, não o faz para explicar o porquê de ele ser assim, tão solitário. Não. O personagem já nos é apresentado assim, solitário, recolhido a si mesmo.
O estilo é propositalmente seco, enxuto. Na orelha do livro, Paulo Bentancur nos lembra que
“A narrativa lembra muito a de autores como Albert Camus: embotada, cortada, onde as ilusões, se é que algum dia existiram, foram-se há muito tempo”
Entretanto, tal característica estilística não impede algumas passagens de incômoda e triste beleza:
“Foi-lhe difícil recuperar a respiração normal. Tinha as narinas, olhos e cabelos cheios de vômito. Sim, tinha vomitado um pouco, vomitara vagamente a si mesmo, Édipo deficiente, sem destino nem complexo, pendurado num imenso cordão umbilical de borracha. Mas sentia que as frases, as frases dos livros, permaneciam solidamente fixadas em seus cérebro.” (página 130)
Ou, nessa passagem:
Os olhos negros de Eva pareciam aguardar os “plufs” sucessivos, como se começasse a encontrar nesse jogo um tênue prazer. Apesar do mutismo e da ausência de qualquer expressão feliz, Vollard acreditava nela entrever uma satisfação infantil, vinda de uma infância distante e completamente anônima. Ele próprio sentia a comichão de uma alegria ao mesmo tempo velha e imediata. Lançar uma pedra à água. Mirar e atirar. Fazer saltar. Buraco de círculos dentro d’água. Diante do olhar de Eva, ele se pôs a lançar pedras cada vez mais pesadas para produzir ruídos cada vez mais fortes.” (página 136)
Sentir a comichão de uma alegria, algo completamente vago, sem foco.
E lá na página 154, num assomo de consciência, Thérèse se diagnostica:
“- Tive notícias com mais frequência que o senhor pensa. E o senhor se lembra, quando ela estava no hospital, fiz o que pude. Falar com ela? O que eu poderia lhe dizer? Não sou como o senhor: tenho dificuldade com as palavras, com as frases… Embora, no fundo, goste delas. Aliás, costumo anotar num caderno coisas que me agradam… Não tenho nada de alegre a dizer. Já andei muito por aí. Escrevi isso, veja só: “Toda a minha vida é deslocada como uma fotografia fora de foco.” É, senhor Vollard, não é feia a minha vida, mas fora de foco, completamente fora de foco. Muitos lugares, muita gente, muitos homens. Todos iguais!”
Não há, leitor, uma beleza melancólica em passagens como as apontadas acima? E nesta última, no momento mesmo em que escrevo essa resenha, me vêm à mente os versos de Drummond, nosso poeta maior: “Ó solidão do boi no campo/Ó solidão do homem na rua”
Na cidade grande, em meio à multidão em constante movimento, somos seres sem rosto, sem vida; somos títeres que se movimentam segundo os comandos que nos chegam pelos fios que nos movem.
O livro está cheio de referências literárias, pois Étienne Vollard as cita várias vezes. Por isso, não são chatas ou mero exibicionismo intelectual do autor; elas são perfeitamente coerentes com a construção do personagem. Podem vir destacadas e mostradas, em itálicos, ou vir mais “secretamente”, como no trecho da página 120:
“O centro, assim como outros estabelecimentos médicos, erguia-se acima do povoado, sobre um estreito terraço montanhoso, abrigado do vento norte por uma comprida falésia e por um bosque de carvalhos, seguido de um de abetos. Lugar retirado, protegido. Esses estabelecimentos haviam sido sanatórios por muito tempo. Tosses roucas, febre e escarros no ar puro da montanha mágica. Mas agora, lá embaixo, nos vales a tosse deixara de ser mortal. Os sanatórios não tinham mais razão de existir.”
Citação grifada por nós, a qual nos remete imediatamente à obra A Montanha Mágica, do escritor alemão Thomas Mann. Nesse clássico, não só da literatura alemã, mas um clássico da literatura universal, o personagem Hans Castorp sofre de tuberculose pulmonar e se interna num sanatório em uma montanha, daí o nome da obra.
A Travessia de Eva é um excelente livro; triste, mas escrito com extrema competência literária. Incomoda-nos, é verdade. É um lembrete, uma denúncia, um protesto, como quiserem. Sejamos protagonistas. A falta de foco – ou de sentimentos, ou ainda, de engajamento – nos torna “coisas”. Seres sem alma. Portanto, sem importância. Recomendo a leitura dessa obra com veemência!
PÉJU, Pierre. A Travessia de Eva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005