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sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Resenha nº 56 - O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa

Resultado de imagem para o vendedor de passadosJosé Eduardo Agualusa é natural de Huambo, Angola. Nasceu em 13 de dezembro de 1960. Cursou agronomia e silvicultura na capital portuguesa, Lisboa. É jornalista. Vive entre Lisboa e Luanda, com incursões ao Brasil. Agualusa é apontado como um dos mais importantes autores da contemporaneidade, em Língua Portuguesa. Este O vendedor de passados ganhou o Prêmio Independent de ficção estrangeira. Aqui, no Blogue, já resenhei dele Teoria Geral do Esquecimento. O vendedor de passados deu um filme brasileiro, na verdade, o trabalho fílmico é levemente baseado no livro.

Se na obra Teoria Geral do Esquecimento a ambientação é quando estoura a guerra pela independência de Angola, neste presente trabalho o tempo cronológico já se deslocou, indo constuir o ambiente no período pós-guerra da independência angolana. O país está em reconstrução; prósperos empresários, políticos, generais, enfim, gente importante, mas sem um passado que os destaque, vão procurar Félix Ventura.

Félix tem uma profissão estranha: reconstroi e vende passados falsos para toda essa gente. Pesquisa no computador, vai de loja de antiguidades em loja de antiguidades, compra álbuns fotográficos antigos, vasculha referências. E, um detalhe importante, Félix Ventura é um albino, isto é, alguém que nasceu sem a melanina da pele e por isso é branco, com dificuldades de enxergar durante o dia (os albinos sofrem de fotofobia). E por que essa referência seria importante? Já-já explico. Um bom autor – e Agualusa é, com absoluta certeza um deles – jamais deixa “pontas desamarradas” nas histórias que cria.

A criação de um passado, pelo nosso personagem principal, não serve apenas àqueles que buscam notoriedade; serve também àqueles cujas ações pregressas precisam ser ocultadas. É o caso de crimes de guerra, violências, estupros, etc. O cliente define seu desejo e Félix executa o trabalho com eficiência.

Como se vê, Agualusa trabalha bem um dos aspectos relacionados na obra A Arte da Ficção, de David Lodge, o estranhamento, referido como

“…tradução consagrada de ostranenie (literalmente, “tornar estranho”), mais um daqueles termos críticos imprescindíveis cunhados pelos formalistas russos.” (página 61, op. cit.)

Em síntese, uma espécie de deslocamento na maneira de apresentar um dado da realidade, algo que chama a atenção do leitor exatamente por ser inusitado. E esse estranhamento se dá não só pela esquisita profissão de Félix Ventura, como também pela inesperada identidade do narrador: uma osga. Osga é lagartixa, e essa, que nos narra as venturas (desculpem-me o jogo de palavra, é irresistível) de Félix é uma osga-tigre, cheia de listras. Ela habita a mesma casa do protagonista e a tudo observa.

Certo dia, aparece na residência de Ventura um repórter fotográfico, encomendando a ele um passado:

“Explicou que pretendia fixar-se no país. Queria mais do que um passado decente, do que uma família numerosa, tios e tias, primos e primas, sobrinhos e sobrinhas, avós e avôs, inclusive duas ou três bessanganas, embora já todos mortos, naturalmente,  ou a viverem no exílio, queria mais do que retratos e relatos. Precisava de um novo nome, e de documentos nacionais, autênticos, que dessem testemunho dessa identidade.” (página 18)

O vendedor de passados faz um trabalho exemplar para o repórter. Batiza-o de José Buchmann, natural de São Pedro da Chibia, no sul do país,  filho de certo Mateus Buchmann e Eva Miller. Forjou para ele passaporte, bilhete de identidade, carta de condução. Havia também fotografias. E tão bem o trabalho é feito que o repórter-cliente, ao longo da história, vai pouco a pouco incorporando o personagem Buchmann.

Há 6 capítulos no livro que se constituem em sonhos. E sonhos de quem? Outro estranhamento! São sonhos da osga, que numa reencarnação passada, fora humana. A bem da verdade, está mais para a teoria da metempsicose. Expliquemos a diferença.

Reencarnação é uma definição espírita, definida por Allan Kardec como a possibilidade de uma alma (ou Espírito) envergar corpos diferentes em suas muitas vivências. A metempsicose também lida com a mesma ideia, mas a profunda diferença é que, enquanto naquela, existe uma completa impossibilidade de um espírito de ser humano retrogradar na escala evolutiva e encarnar em um ser inferior, nesta – metempsicose – isto é completamente possível. É a crença da religião do antigo Egito.

Explicação dada, a osga tem sonhos de quando era humana – e mesmo como osga mantém sua criticidade e racionalidade. Ela, portanto, funciona não só como elemento condutor da história, mas igualmente como elemento de flashback, indo ao passado e resgatando para nós, leitores, partes imprescindíveis da história dos personagens envolvidos, dando-lhes verossimilhança (conceito literário significando aquilo que tem aparência de realidade).

Além disso, em alguns dos sonhos da nossa narradora ela interage com Félix Ventura, numa espécie de telepatia (ela pensa alguma coisa, Félix a repete). Chega-se ao ponto de haver necessidade de nomear a osga e Ventura a chama de Eulálio, aludindo à facilidade verbal da lagartixa.

Há muita referência à literatura, tanto portuguesa como brasileira ou outras ainda; tudo tem a ver com o projeto literário do autor. Eça de Queirós é um dos autores mais citados, pois Félix conhece toda a obra do escritor português.

O vendedor de passados  gira em torno da questão da construção da memória, seus disfarces, seus equívocos, sua relatividade, enfim. Lá na página 132, aparece um diálogo que, a meu ver, é emblemático:

“José Buchmann avançou a rainha, ameaçando-me o cavalo do rei. Ofereci-lhe um peão. Ele olhou-o distraído:

- A verdade é improvável.

Sorriu num relâmpago:

- A mentira –, explicou, – está por toda a parte. A própria natureza mente. O que é a camuflagem, por exemplo, senão uma mentira? O camaleão disfarça-se de folha para iludir a pobre borboleta. Mente-lhe dizendo, fica tranquila, minha querida, não vês que sou apenas uma folha muito verde ondulando ao vento – e depois atira-lhe a língua, a uma velocidade de seiscentos e vinte e cinco centímetros por segundo, e come-a.”

Discorre-se, portanto, sobre o tênue limite que separa a realidade (que, às vezes é escamoteada) e a mentira (que, às vezes, faz parte de uma dada função social):

“Existem dezenas de profissões nas quais saber mentir é uma virtude. Estou a pensar nos diplomatas, nos estadistas, nos advogados, nos actores, nos escritores, nos jogadores de xadrez. Estou a pensar no nosso amigo em comum, Félix Ventura, sem o qual nós não nos teríamos conhecido. Indique-me agora uma profissão, uma única, que não se socorra de alguma mentira, e na qual um homem que apenas diga a verdade seja efectivamente apreciado?” (página 133)

O tom que perpassa o livro é o de uma sátira à identidade angolana, temperada com bom-humor e diversão.

A questão da identidade fugidia, do passado ilusório e artificial, do olhar desconfiado sobre a tão propalada realidade também aparece no final de A Relíquia, do citado Eça de Queirós, se bem que muito mais cínica:

“E tudo isto perdera! Por quê? Porque houve um momento em que me faltou esse “descarado heroísmo de afirmar”, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.”

Não é à-toa Félix saber de cor e salteado os textos do Eça, não é mesmo, leitor inteligente?

Félix Ventura é um africano albino, intolerante à luz reveladora (do sol), fato gerador de ambiguidade identitária; José Buchmann é um branco que deseja se passar por um africano negro (e lembrem-se, incorpora o personagem criado para ele); a osga narradora é um réptil que teve um passado humano. Por toda a obra, o passado criado transforma os clientes de Félix Ventura (e a ele próprio) em outro ser, diferente do que era antes.

Se você assistiu ao filme de Lula Buarque de Hollanda, homônimo do livro, esqueça. Não pode haver termos de comparação entre a magnífica estruturação e complexidade da obra literária e o que se vê na telona. O filme é apenas inspirado na obra de Agualusa, sem qualquer outro benefício. Sem dúvida, na minha opinião, O vendedor de passados é um dos melhores trabalhos literários já resenhados neste blogue.

Leia-o, leitor amigo; a história guarda supresas muito além das resenhadas aqui. Há outros personagens, situações dúbias, amorosas.

AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Editora Gryphus, 3ª edição. Rio de Janeiro, RJ: 2015

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