Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Blog Em Perspectiva


Este blog foi criado em 2007, como parte de um projeto de aplicação tecnológica à educação. Como professor, estava terminando um curso presencial sobre este tipo de intervenção com fins educativos e a ferramenta começou a ser usada sem muita pretensão. Funcionou como, por exemplo, um TCC – Trabalho de Conclusão de Curso.

À medida que aprendia os rudimentos da tecnologia, vislumbrei as possibilidades de usá-la a meu próprio benefício. Ainda não tinha um direcionamento, postava alguns tópicos gramaticais, dificuldades da língua portuguesa, esporadicamente. Não era bem aquilo que gostaria de fazer.

Se você, leitor, se der o trabalho de ver as postagens iniciais, perceberá a completa falta de foco inicial; em 2007, houve apenas duas postagens, nada sobre livros. 2008 se iniciou e foram acrescentadas mais três entradas, sobre assuntos diversos; em 2009, apenas uma publicação, sobre a área de educação. Em 2010, três postagens e em 2011, apenas uma. Era o momento de definição.

A clareza sobre os meus propósitos veio em 2012, com um salto de trinta e duas postagens no blog. Havia encontrado o que mais gostaria de fazer: resenhar livros. Sempre gostei de ler e, num determinado momento, me perguntei: por que não unir minha paixão a uma utilidade? Por que não compartilhar o que lia com um público maior?

Foram, até o apagar das luzes desse 2015, nada menos que 63 livros. Nada mal, para quem passou tanto tempo sem um foco preciso. Achar o devido tom das resenhas foi outro aprendizado, mas desde início não desejava algo muito técnico, com uma linguagem acadêmica.

Bom, mas o que almejo mesmo nesta pequena retrospectiva, é elaborar uma lista dos melhores livros resenhados aqui no blog. É pessoal, polêmica como qualquer seleção em qualquer área. Sempre haverá pessoas que elegerão outras obras, escolherão outros autores. Mas todos nós temos uma quedinha por listas. Então, aí vai.

Os 12 melhores livros já resenhados neste blog:
  1. As Intermitências da Morte, de José Saramago    
  2. Educação, Escola, Docência, de Mario Sérgio Cortella
  3. A Bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe
  4.   A Menina Que Roubava Livros, de Markus Zuzak
  5.    O Vendedor de Passados, de José Eduardo Agualusa
  6.    Stoner, de John Williams
  7.    A Elegância do Ouriço, de Muriel Barberi
  8.    A Biblioteca À Noite, de Alberto Manguel
  9.    Arroz de Palma, de Francisco Azevedo
  10.  Trem Noturno Para Lisboa, de Pascal Mercier
  11.  Holocausto Brasileiro, de Paula Arbex
  12.  Onde Andará Dulce Veiga, de Caio Fernando Abreu



quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Resenha nº 63 - Quase Memória, de Carlos Heitor Cony

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1926. Segundo relata, desde criança teve problemas de dicção, somente superados em 1941, após cirurgia. Decidiu ser padre aos 11 anos, para o que ingressou no Seminário Arquidiocesano de São José. Entretanto, abandonou o projeto em 1945, para iniciar seus estudos de Filosofia na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil – hoje conhecida como Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Cony foi funcionário da Câmara Municipal do Rio, na década de 50, época em que começou também a trabalhar como redator no Jornal do Brasil. Teve problemas com a censura dos ditos Anos de Chumbo (Ditadura Militar), morou em Cuba em 1967 e, ao retornar ao Brasil, foi preso.

Em 1966 recebeu o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Quase Memória levou o Prêmio Jabuti como melhor livro de ficção no mesmo ano. Em 1998, voltou a receber o mesmo prêmio com A Casa do Poeta Trágico; foi condecorado pelo governo francês com a comanda da Ordre des Arts et des Lettres. Publicou Romance Sem Palavras em 1999 e no ano seguinte, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Atualmente, Carlos Heitor Cony é colaborador do jornal Folha de São Paulo.

Antes propriamente de iniciar esta resenha, devo dizer que este Quase Memória é o primeiro livro do autor lido por mim. O exemplar em mãos é o da Biblioteca Folha de São Paulo, coleção esta coeditada com o jornal O Globo, mudando-se somente o projeto da sobrecapa que acompanha o volume. E eis exatamente aí um problema: não sei o que aconteceu exatamente, mas a foto estampada na sobrecapa não tem qualquer nexo com a obra em si. É a foto de um rosto feminino, entrevisto por detrás de uma espécie de vegetação seca. Creio que a foto da versão da Folha de São Paulo (veja a imagem acima) é bem mais adequada, pois nos mostra uma cena antiga da cidade do Rio de Janeiro.

Assumido pelo próprio autor, esta é uma obra mista, sendo

“... ‘quase-romance’ – que de fato o é. Além da linguagem, os personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente, e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes do registro civil. Uns e outros são fictícios. Repetindo o anti-herói da história, não existem coincidências, logo, as semelhanças, por serem coincidências, também não existem.
No quase-quase de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas.” (página 7)

O narrador recebeu um volume, caprichosamente confeccionado, que lhe fora entregue pelo porteiro do hotel no qual estava:

“Não cheguei a ouvir o meu nome. Foi a secretária que me avisou: um dos porteiros, de cabelos brancos, óculos de aros grossos, queria falar comigo. E sabia o meu nome – eu que nunca fora hóspede do hotel, apenas um frequentador mais ou menos regular do restaurante que é aberto a todos.
Aproximei-me do balcão, duvidando que realmente me tivessem chamado. Ainda mais pelo nome: não haveria uma hipótese passável para que soubessem meu nome.
— Sim...
O porteiro tirou os óculos, abriu uma gaveta embaixo do balcão e de lá retirou o embrulho, que parecia um envelope médio, gordo, amarrado por barbante ordinário.
— Um hóspede esteve aqui no último fim de semana, perguntou se nós o conhecíamos, pediu que lhe entregássemos este envelope...
— Sim... Sim...
Eu não sabia se examinava o envelope ou a cara do porteiro. Nada fizera para que ele soubesse meu nome, para que pudesse dizer a alguém que me conhecia. O fato de duas ou três vezes por semana eu almoçar no restaurante do hotel não lhe daria esse direito.” (páginas 9 e 10)

O mistério não compreendido: o envelope trazia, em uma das faces, subscritada, o nome do jornalista Carlos Heitor Cony. Era, inquestionavelmente, a letra de seu pai...morto há mais de dez anos!

O pacote recebido pelo narrador tem o poder de lhe despertar sinestesicamente, as memórias do pai. O jeito de atar o barbante, os cheiros, a aparência do embrulho – tudo lhe invocava seu pai.

A partir desse motivo, o autor constrói as recordações paternas. E como seria de se esperar, a figura central de Ernesto Cony Filho, jornalista de profissão, como o próprio filho, precisa de contextualização para existir dentro da narrativa proposta.

Personagens, personalidades da época são trazidas para o presente. E entre todas, destaca-se Ernesto, o jornalista, construído por Heitor Cony como um homem polêmico em suas atitudes, mas igualmente, um personagem de ricos matizes. Contraditório às vezes, sincero outras, herói e anti-herói, diletante de óperas, jornalista que recusara ser editor.

Homem inconstante e ingênuo em seus empreendimentos, fora jornalista, criador de galinhas e vendedor de ovos, criador de jacaré num lago feito em sua propriedade, vendedor de rádios, elaborador fracassado de perfumes. Homem de “sete profissões e quatorze misérias”.

Entretanto – e sobretudo – um homem que não reclamava da vida, ganhando um salário razoável para a época, permitindo-lhe dar uma vida segura e sem luxos para a família.

Em Ernesto, a imaginação superava a realidade, fazendo dele uma espécie de Pantaleão, tipo criado pelo excelente Chico Anysio – um mentiroso contumaz. Pois que, certa vez, ganhara uma viagem a Fiuggi, na Itália, cidade famosa por águas curadoras da fonte Bonifácio VIII. Não saíra do Brasil, pois, o projeto em andamento, a viagem fora suspensa por causa de Benito Mussolini – ele havia descoberto uma conspiração contra seu regime e abortara qualquer viagem a seu país, incluindo a localidade de Fiuggi.

Ernesto Cony é obrigado a voltar, mas isso não impede de ele narrar as belezas da “viagem”, da “cidade visitada”. Conta, para quem queira ouvir (e esse dado é verídico), que o famoso pintor-arquiteto-escultor Michelangelo teve um problema de pedra nos rins resolvido ao tomar a água daquela fonte. Segundo a Wikipédia, o artista teria cunhado uma frase de efeito, dizendo “aquelas eram o único tipo de pedra que ele não podia amar”.

Os elementos ficcionais da narrativa realmente levam à classificação dela, imprecisamente, como um quase-romance, uma quase-memória e – eu acrescentaria – uma quase-crônica. Da estrutura do romance, estão presentes as possibilidades de vários núcleos dramáticos, não realizados; de memória, a existência de pessoas de existência real, mas entremeadas de outras, ficcionais; de crônica, pela insistência na abordagem dos fatos ligeiros, quotidianos, no que resulta uma visão entrevista do Rio de Janeiro antigo, com seus costumes e cultura. É, portanto, uma obra de gênero híbrido por excelência.

Tive de usar a disciplina para vencer as 223 páginas que compõem a obra. O problema não é, per si, a prosa de Carlos Heitor, divertida, irônica muitas vezes, como podemos constatar pelo trecho abaixo:

“Minha mãe, que vivera infância e parte da mocidade no interior, depois do susto, declarou que aquilo não era filhote de jacaré, apenas um lagarto – o que desmoralizava o pai mais uma vez. Ninguém é grande em sua casa.
Eu acreditei no jacaré, o pai o levou, apesar de já ser noite fechada, para a represa. Teve a infeliz ideia de soltá-lo. Nunca mais fui para aqueles lados até que minha mãe reclamou, o lagarto-jacaré estava crescendo, aparecia no quintal, já chegara até a porta da cozinha, qualquer dia estaria na sala de visitas, nos quartos.
O pai resolveu prendê-lo. Comprou uma comprida corrente, das mais finas, dessas de amarrar cachorro pequeno. Colocou uma argola onde julgava ser o pescoço do lagarto-jacaré. Apesar de suas técnicas, descuidou-se, o bicho deu uma volta no ar e o pai deu um grito. O polegar recebeu a dentada, por pouco perdia o dedo. Sangrou muito.” (página 88)

Se não é a linguagem, o enredo em si, qual seria o problema desta obra?

Exatamente, o seu padecimento é a sua indefinição de gênero. O texto é truncado, sofre de maior fluidez. Há relações exaustivas de personalidades, enumerações em demasia – que acabam, na minha opinião – por não serem melhor aproveitadas. Diferentemente da vida real, na qual vamos encontrando pessoas ocasionais e não significativas para nós, numa obra ficcional os personagens, os fatos têm de ter função narrativa.

É um livro ruim, então?

Não, absolutamente, não. Autores humanos, imperfeitos, por definição não produzem obras perfeitas, sem qualquer senão. Há trechos bem engraçados, contribuindo para tornar a leitura mais palatável. Há referência ao Rio de Janeiro do início do século XX muito interessantes. Por exemplo, já sabia da proeminência da Confeitaria Colombo, pelas histórias contadas por minha mãe, que a frequentava.

Talvez o próprio fazer literário de Cony tivesse se ressentido, pois essa foi a primeira obra produzida por ele depois de 20 anos. Escrever – e escrever narrativas – não tem nada de milagre. É disciplina, é dedicação, é muito, muito trabalho constante.


CONY, Carlos Heitor. Quase Memória. Biblioteca O Globo. Rio de Janeiro, RJ: 2003


domingo, 20 de dezembro de 2015

Resenha 62 - A Culpa É das Estrelas, de John Green


John Green nasceu em Indianapolis, Indiana, nos EUA, em 24 de agosto de 1977. Apenas 3 semanas depois de ele ter nascido, a família se mudou para Orlando, Florida. Ele frequentou a Lake Highland Preparatory School e depois a Indian Springs School (esta última serviu como cenário para o seu livro Looking for Alaska – no Brasil, Quem é você, Alaska?). Formou-se com diploma duplo, em Inglês e Estudos Religiosos pelo Kenyon College, em 2000.

Escreveu também o já citado Looking for Alaska (2005), An Abundance of Katherines – O Teorema Katherine (2006), Le it Snow: Three Holliday Romances (com Maureen Johson e Lauren Myracle) – Deixe A Neve Cair (2008), Paper Towns – Cidades de Papel (2008), Will Grayson, Will Grayson – Will e Will, Um Nome, Um Destino (2010), The Fault in Our Stars – A Culpa É das Estrelas (2012). É um escritor de literatura YA (Young-Adult – para Jovens e Adultos) bastante conhecido e querido de seu público.

John Green ganhou o Printz Medal e o Printz Honor da American  Library Association. É um sucesso não só junto ao seu público jovem, mas também junto à crítica.

A narradora é Hazel Grace, quem inicia a história:

“Faltando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano de vida minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente porque quase nunca saía de casa, passava horas na cama, lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande parte do meu abundante tempo livre pensando na morte.” (página 11)

Hazel é portadora de câncer. Seus pulmões estão afetados e ela é obrigada a permanecer ligada, por cânulas, ao balão portátil de oxigênio. Participa de um Grupo de Apoio, no qual vão se destacar alguns personagens. Patrick, que teve o saco escrotal removido, um menino chamado Isaac; Augustus Waters, de dezessete anos, portador de um osteossarcoma – câncer nos ossos. Isaac tem câncer nos olhos.

Mas não só destes personagens vive a história; Mônica é namorada de Isaac, Kaythlin, amiga de Hazel, o escritor Peter Van Houten, autor do livro que a protagonista lê com frequência, Uma aflição imperial; a secretária dele, Lidewij Vliegenthart. O escritor é de ascendência holandesa. Junte-se a esses personagens a família de Augustus Waters e o pai e a mãe de Hazel.

O livro é escrito em uma linguagem bastante apropriada para seu público jovem:

“O Grupo de Apoio era megadeprimente, óbvio. A reunião acontecia toda quarta-feira no porão de uma igreja episcopal – uma construção no formato de cruz com paredes de pedra. Nós nos sentávamos em uma roda bem no meio da cruz: onde os dois pedaços de madeira um dia se cruzaram, onde esteve o coração de Jesus.
Sabia disso porque o Patrick, Líder do Grupo de Apoio e o único naquele lugar com mais de dezoito anos, falava sobre o coração de Jesus todo raio de reunião, sobre como nós, jovens sobreviventes do câncer, estávamos sentados bem no sagrado coração de Cristo, e tal.” (página 12)

A fixação de Hazel Grace Lancaster com o livro Uma aflição imperial faz com que ela vá, em companhia de Augustus Waters e de sua mãe, viajar para a Holanda, atrás do autor. É que a história do livro termina sem fechar algumas pontas, sem fornecer à leitora algumas informações que ela considera muito importantes:

“O Van Houten suspirou. Depois de mais um gole, disse:
— Muito bem. Você está curiosa a respeito de quem?
— A mãe de Anna, o Homem das Tulipas Holandês, Sísifo, o hamster, quer dizer, é só... o que acontece com todo mundo.
O Van Houten fechou os olhos, inflou as bochechas ao expirar e então olhou para cima, para as vigas de madeira expostas que se entrecruzavam no teto.
— O hamster – ele disse, depois de um tempo. – O hamster é adotado pela Christine...” (página 173)

Este A Culpa É das Estrelas é constantemente comparado a outro megassucesso mais antigo, o Love Story – Uma História de Amor, de Jennifer Echols, como nos lembra matéria da também escritora para o público YA, Paula Pimenta:

“Quando li Love Story, que conta a história de uma garota que tem leucemia e também vive uma história de amor, lembro que chorei muito e torci para que o final fosse diferente do esperado. Em A Culpa é das Estrelas essa torcida se repete e talvez por isso tantas pessoas se comovam com o livro. Com um tema real, ele nos sensibiliza, nos faz pensar...” (Veja, A Culpa É do John Green, 05/06/2014)

O relacionamento de Augustus Waters e Hazel Grace se aprofunda no decorrer da história. Não há um clima sombrio, mas, como nos lembra o parecer do The New York Times, transcrito na quarta capa do livro, há

“um misto de melancolia, doçura, filosofia e diversão. Green nos mostra um amor verdadeiro... muito mais romântico que qualquer pôr do sol à beira da praia.”

Toda a situação de sofrimento é vista pelo casal central como “um efeito colateral de estar morrendo”, numa alusão clara ao sentimento de não se poder contar com um futuro, sequer um futuro próximo, no caso de um portador terminal de um câncer.

John Green poderia facilmente resvalar para o dramalhão lacrimoso e, mesmo assim, seu sucesso estaria garantido junto ao seu público. Mas – e aí está a mão de um escritor mais maduro – suas escolhas narrativas caminham para a mensagem da manutenção da dignidade, mesmo no caso de uma doença terrível. Hazel amadurece no contato com Augustus, ele também cresce. Uma referência a isso é o Diário de Anne Frank – uma outra história de superação – pois quando os adolescentes vão à Holanda, atrás do escritor Peter Van Houten, visitam o memorial da famosa autora.

Van Houten se revela um ser revoltado, de mal com a vida, buscando o isolamento do mundo e recusando-se ao trato gentil com as pessoas, em tudo contrastando com a dignidade e a alegria de viver de Hazel e Waters. O escritor é um ser humano detestável, nem a própria secretária Lidewij consegue conviver com ele. Imerso na bebida, parece se alimentar do próprio sofrimento.

Talvez esteja aí uma das razões para tanta demonstração de apreço dos jovens para com John Green: ele não menospreza a inteligência dos adolescentes. Outro componente de sucesso é que ele mantém um canal aberto com o público, através do Youtube. Os adolescentes, provavelmente, o sentem como alguém do seu próprio mundo, falando sua própria língua.

É um livro honesto, para falar o mínimo. Leitura recomendada para os jovens e para aqueles que não esqueceram terem sido jovens um dia.

GREEN, John. A Culpa é das estrelas. Editora Intrínseca. Rio de Janeiro, RJ: 2012

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Resenha nº 61 - A Biblioteca À Noite, de Alberto Manguel



Alberto Manguel nasceu em Buenos Aires, no ano de 1948 e obteve cidadania canadense. Cidadão do mundo, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e vive atualmente no interior da França. Suas múltiplas atividades espraiam-se pelo ensaio, organização de antologias, tradução, edição e escritor de romances. Manguel é respeitado internacionalmente em qualquer dessas áreas de atuação. Escreveu Todos os homens são mentirosos, Uma história da leitura, Stevenson sob as palmeiras, O amante detalhista, À mesa com o chapeleiro maluco.

Um livro sobre livros e as bibliotecas ao redor do mundo. Entretanto, este A biblioteca à noite não é um livro descritivo, ou cansativo, como poderiam pensar alguns. Alberto Manguel é dono de uma escrita fluente, às vezes irônica; sobretudo, torna-se claro que ele gosta de falar da sua paixão. E tempera sua obra com deliciosas histórias sobre leitores apaixonados.

O autor comprou

            “...um celeiro, encarapitado sobre uma pequena colina ao sul do Rio Loire. Aqui, nos últimos anos antes da era cristã, os romanos erigiram um templo a Dionísio, para louvar o deus desta região vinícola. ” (página 15)

É esse celeiro o lugar onde ele reúne todos os seus livros, que antes encontravam-se espalhados pelos muitos lugares. E, em meio as suas reflexões, já procura, às páginas 24, distinguir entre um homem erudito de um homem que ama a leitura. Para isso, socorre-se das palavras de Virginia Woolf:

            “Um homem erudito é um entusiasta sedentário e concentrado, que percorre os livros em busca de um certo grão de verdade, almejado de coração. Mas se a paixão pela leitura leva a melhor sobre ele, suas conquistas vacilarão e desaparecerão entre seus dedos. Um leitor, por sua vez, deve dominar o desejo de erudição desde o começo; se algum conhecimento aderir a ele, muito bem, mas sair à procura, ler sistematicamente com o objetivo de tornar-se um especialista ou autoridade é coisa bem capaz de matar aquilo que preferimos considerar a paixão mais humana pela leitura pura e desinteressada. ”

Aqui e ali, vão aparecendo referências à Biblioteca de Alexandria, mas não por desejo de erudição, como diria Woolf, mas porque essa biblioteca é uma referência obrigatória, quando se vai falar de acervos, livros e o lugar onde dispô-los.

Alberto Manguel nos conta histórias pitorescas. Como no caso de um leitor que havia reunido muito material por quatro décadas seguidas, em seu apartamento. Certa feita, os vizinhos não o viam mais e começaram a perceber uns gemidos estranhos, vindos de da morada dele. Chamaram-no e nada. Apelaram, então, para a polícia. Ao arrombarem a porta, todos os livros das estantes haviam caído sobre o leitor fiel, imobilizado sob tantos volumes. Foi necessário retirarem cinquenta sacos para libertarem-no.

Um outro caso: encomendado o projeto de uma biblioteca, tratou-se logo de sua construção. Quando a obra ficou pronta, percebeu-se que não haveria lugar para se colocarem todos os livros e a biblioteca teve de eleger um critério para a redução do acervo. Esse critério foi pelos livros menos solicitados por leitores. Iriam para um galpão, para serem posteriormente incinerados. Supreendentemente, os funcionários, durante a noite, entravam na instituição e, em grupo, punham-se a carimbar a ficha de empréstimo que acompanhava cada exemplar. Literalmente, salvaram muitos livros de irem para a fogueira do extermínio.

Selecionei alguns trechos, mais para o final do livro, para a degustação dos meus leitores e, sobretudo, para a minha própria:

“Se a Biblioteca de Alexandria foi o emblema de nossa sede de onisciência, a Web é o emblema de nossa sede de onipresença; a biblioteca que guardava tudo transformou-se na biblioteca que guarda qualquer coisa. Alexandria enxergava-se modestamente como centro de um círculo limitado pelo mundo conhecido; a Web, como uma definição de Deus imaginada pela primeira vez no século XII, entende-se como um círculo cujo centro está em toda parte e cuja circunferência não está em nenhuma. ” (página 264)

“Bibliotecas sólidas de madeira e papel, ou bibliotecas de telas brilhantes e espectrais são prova de nossa crença duradoura numa ordem vasta e atemporal que intuímos ou percebemos vagamente. ” (página 264)

“Em seu romance A flor azul, Penélope Fitzgerald diz: ‘Se a história começa num encontro, ela tem que acabar numa busca.’ A história de minha biblioteca certamente começou com um encontro: com meus livros, com o lugar aonde leva-los, com a quietude num espaço iluminado em meio à escuridão. Mas se a história precisa acabar numa busca, a pergunta não pode deixar de ser: busca de quê? Certa vez, Northrop Frye observou que, se tivesse presenciado o nascimento de Cristo, provavelmente não teria escutado o cântico dos anjos. “Digo isso porque não os ouço agora, e não tenho porque pensar que pararam de cantar. ” Sendo assim, não estou buscando nenhuma espécie de revelação, pois tudo o que me disserem será restringido pelo que posso ouvir e entender. Não busco um conhecimento além daquilo que, de algum modo secreto, já sei. Tampouco iluminação, à qual não posso sensatamente aspirar. Nem experiência, pois em última instância só posso me dar conta do que já está em mim. O que, então eu busco, ao final da história de minha biblioteca?
Consolação, quem sabe. Quem sabe, consolação. ” (página 266)

Esse último trecho, retirado da página 266, é um dos mais belos que já li sobre o amor aos livros.

Tenho consciência de uma obra como essa não ser para qualquer tipo de leitor. Não é para aquele, que só de quando em vez pega um volume ao acaso; não é para aquele que boceja diante da obrigatoriedade de uma leitura; não é para aquele leitor de superfície, quer pela inexperiência do ofício, quer pela leitura de um livro só para parecer alguém culto. É uma leitura para aqueles que – como poucos há, amam profundamente a leitura, o mergulho solitário e silencioso no diálogo com um texto. 

MANGUEL, Alberto. A biblioteca à noite. Companhia das Letras. São Paulo, SP: 2010

Peregrinação Literária

por Cleuber Marques da Silva
Uma das coleções mais interessantes que habitam minha estante é esta Mar de Histórias. Trata-se de uma coleção, uma antologia, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, em dez volumes. São 242 contos escolhidos entre os melhores 195 autores do mundo todo. Obras pertencentes a 41 literaturas – número que mostram de cara a grandeza e a complexidade do projeto. A editora é a Nova Fronteira. Os contos vão organizados por data de publicação e os livros recebem a seguinte classificação:
1 – Das origens ao fim da Idade Média;
2 – Do fim da Idade Média ao Romantismo;
3 – O Romantismo;Resultado de imagem para Mar de histórias
4 – Do Romantismo ao Realismo;
5 – O Realismo;
6 – Caminhos Cruzados;
7 – Fim de século;
8 – No limiar do século XX;
9 – Tempo de crise;
10 – Após-guerra.
O projeto ambicioso passeia pelas literaturas ocidentais e orientais, tratando de nos fornecer um painel tão completo quanto possível, de vez que qualquer lista é extremamente pessoal e necessariamente deixa alguém fora da seleção. Os compiladores-tradutores procuraram traduzir, quando possível, os textos diretamente das línguas de origem.
No meu caso, leitor, a minha vontade é conhecer  toda a literatura já produzida no mundo; isso é completamente fora das possibilidades humanas, pois ao ler muito, terei possivelmente atingido a quantia de 4.000 a 5.000 volumes, o que é uma quantia irrisória, se pensarmos em todo o acervo de obras já produzidas pelo Homem. A antiga biblioteca de Alexandria, no Egito, tinha mais de 1 milhão de obras, segundo estimativas. A nova biblioteca de mesmo nome, construída próxima ao local da sua irmã antiga, reúne 119 milhões de volumes catalogados.
Estou lendo A biblioteca à noite, de Alberto Manguel; este livro fornece a visão da grande biblioteca do autor, famoso por ter sido leitor de Borges, quando ele se tornou cego. Além do mais, Manguel nos oferta verdadeiras obras-primas de reflexão sobre o ato de ler, de guardar livros e nos conta histórias fantásticas sobre a paixão de vários leitores e seus objetos de desejo. A biblioteca à noite será o próximo livro resenhado para o mês de dezembro e já adianto tratar-se de um trabalho imprescindível a quem ama leitura.


Aguarde para breve!

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Resenha nº 60 - O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman

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Neil Gaiman é muito conhecido do público das Graphic Novels. Nome completo: Neil Richard McKinnon Gaiman, nascido em 10/11/1960, em Hampshire, Inglaterra. É casado com Amanda Palmer, da banda Dresden Dolls. Vive em Minneapolis, EUA. É autor de livros e HQs – Histórias em Quadrinhos. Talvez sua obra mais famosa seja Sandman, que pode ser classificada como uma Graphic Novel. Essa classificação em geral designa aquelas revistas em quadrinhos com pretensões literárias. O personagem principal é Sandman, representando o sonho, motivo  pelo qual muitas vezes também é conhecido por Morpheus, antropomorfia do deus do sonho da mitologia grega.
A primeira sensação que o leitor normalmente tem (eu tive!), ao ler essa obra, é a de estranhamento, uma das categorias literárias listadas pelo crítico David Lodge, no seu exclente livro A Arte da Ficção. Realmente, a fantasia é predominante nas obras de Gaiman e este romance não foge à regra. Para o leitor pouco afeito à poética de Neil, tudo pode lhe soar como um completo nonsense, uma história sem pé nem cabeça. Mas, à medida que leitura avança, vamos descobrindo algumas pistas e, se temos já algum contato com outros trabalhos dele, o quebra-cabeças começa a ser montado. Um texto como esse, um tanto alegórico, fluido, estranho, certamente comporta várias e várias interpretações. Como ponto de partida, sabemos do uso intenso feito por nosso escritor da mitologia grega, da fantasia, de alguns mitos pagãos ou neopagãos e mesmo de alguns arquétipos.
Um personagem não nomeado retorna à localidade  de Sussex, no interior da Inglaterra. A casa onde morou há muito não existe mais; uma nova fora construída e posteriormente vendida quando seus pais se mudaram de lá. O personagem principal aparece na cidadezinha por causa de um enterro:
“Eu estava de terno preto, camisa branca, gravata preta e um par de sapatos pretos, bem-engraxados e lustrosos: um traje que normalmente me deixaria desconfortável, como se estivesse usando um uniforme roubado ou fingindo ser adulto. Hoje me confortou, de certa forma. Era a roupa certa para um dia difícil.
Tinha cumprido meu dever pela manhã, dissera as palavras que me cabia dizer com sinceridade e, em seguida, após a cerimônia religiosa, entrei no carro e dirigi sem rumo, sem planejamento, com mais ou menos uma hora para matar antes de ver mais gente que havia anos não encontrava, distribuir mais aperto de mão e beber várias xícaras de chá na mais fina procelana. Dirigi pelas sinuosas estradas rurais de Sussex, das quais me lembrava apenas parcialmente, até que me vi a caminho do centro da cidade, então sem pensar peguei outra via, dobrei à esquerda e depois à direita. Foi só então que percebi para onde estava indo, para onde ia desde o começo, e fiz uma careta, consciente de minha ausência de bom senso.” (página 11)
Quase inconscientemente, ele tinha se dirigido à antiga morada. E diante dele, de repente apareceu a fazenda dos Hempstock. Revê a Sra. Hempstock, que também o reconhece, e pergunta pela filha dela, sua amiga Littie. Obtém a informação de ela estar longe, na Austrália. Como é bem recebido, resolve andar um pouco pela fazenda, indo para o lago no fundo da propriedade, que Littie chamava de Oceano.
A partir desse ponto, o enredo segue em tempo de memória, retornando à época dos seus sete anos e Littie, onze. Fatos muito estranhos aconteceram, e aquela família, representada pelas três mulheres, Ginnie Hempstock, a velha Sra. Hempstock e Littie foi de importância capital em sua vida.
Nosso personagem se lembra de Ursula Monkton. Ela é a antagonista da história, mas não posso dizer muito a respeito dela, sem entregar um spoiler. Posso apenas dizer: a mãe do protagonista tem de começar a trabalhar fora e para isso, contrata uma governanta para supervisionar a casa e cuidar dele e da irmã. De cara, ele não gosta de Ursula Monkton, enquanto a irmã simplesmente a adora.
Uma resenha é feita para servir de referência para os leitores tomarem conhecimento de um livro, pelos olhos de quem o leu. E devem decidir se querem ou não lê-lo. Não costumo partir para um trabalho mais interpretativo, mas creio que, no presente caso, algumas explicações serão bem-vindas, dadas as carcterísticas textuais e contextuais. Pode tranquilizar-se o leitor, não cometerei a gafe maldita do spoiler!
Algumas chaves interpretativas são colocadas no romance e o leitor deverá estar atento a elas. Há referências capitais e expressas a dois livros que povoam nossa fantasia: As crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis e Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol. Nestas obras, o mundo calmo e ordenado da realidade é perturbado quando se atravessa determinado portal, que no caso de As crônicas é o guarda-roupa e no de Alice é o oco da árvore. Transpostos esses portais, virtualmente tudo é possível de acontecer. E tudo acontece.
Uma outra referência, importantíssima se o leitor desejar entender a história, é a questão do feminino. Gaiman, em suas obras, trata as mulheres com muita devoção; elas são, na verdade, portadoras de elementos mágicos, são doadoras da vida; restauradoras da normalidade, no caso desta obra. São misteriosas, têm o seu lado não inteligível, zona pantanosa em que o explicável não atua.
O neopaganismo, principalmente a Wicca, uma religião de crenças pré-cristãs, explora a figura da Deusa Tríplice, representando as ligações de três fases femininas com as fases da lua, a saber: 1) Lua Nova/Crescente: A Virgem ou Donzela (a pureza, a busca do conhecimento); 2) Lua Cheia: A Mãe (poder, proteção e carinho maternal); 3) Quarto Minguante: A Anciã (sabedoria, conhecimento e renovação). E, para complicar tudo, há ecos da peça Sonhos de uma noite de verão, de William Shakespeare. Em Sonhos, Shakespeare nos fala do amor de Lisandro e Hérmia, que fogem para uma floresta encantada, cheia de seres da mitologia.
Algumas “comprovações” de que a família Hempstock não tem natureza humana:
“E, como Lettie estava falando a língua da criação, mesmo que não entendesse o que ela dizia, compreendia o que estava sendo dito. A criatura na clareira estava sendo atada àquele lugar para sempre, presa, proibida de exercer sua influência sobre qualquer coisa além daqueles domínios.” (página 56)
E nessa outra passagem:
“Meu segundo pensamento foi de que eu sabia tudo. O oceano de Lettie Hempstock fluiu dentro de mim e preencheu o universo inteiro, do Ovo à Rosa. Eu soube. Soube o que era o Ovo – onde o universo se iniciou, ao som de vozes incriadas cantando no vácuo – e eu soube onde estava a Rosa – a dobra peculiar de espaço no espaço em dimensões como origami e que florescem como orquídeas estranhas, e que marcaria a última época boa antes do consequente fim de tudo e do próximo Big Bang, que não seria, agora eu sabia, nem nada do gênero.
Eu soube que a velha sra. Hempstock estaria aqui para esse, da mesma forma que esteve para o anterior.”(página 163)
Claramente, uma alusão à teoria do Universo Pulsante, em que não há apenas um Big Bang, com a consequente expansão, mas também uma retração, na qual a concentração termina por gerar outro Big Bang. E assim por diante. E a sra. Hempstock, a velha, esteve presente no primeiro como estará no segundo. Quer dizer, ela não pode ser humana, visto que atemporal e pré-existente. Ser não criado. Uma deusa.
Estão presentes no romance a oposição entre o mundo dos adultos x mundo das crianças – duas formas de ver que não se entendem; a confiança no valor da amizade; a ideia de nem tudo poder ser explicado pela razão (a vida como fonte de aventuras e experiências, muitas vezes sensoriais); a fragilidade do humano. Ouso apontar outra percepção, a interferência ou imbricação de um mundo dito “espiritual”, com organização e seres diferentes na nossa própria realidade. As aspas cabem na palavra espiritual pois, aqui, ela não tem a conotação costumeira, cristã. Significa o lugar dos seres de outra ordem, talvez supranaturais.
Bem sei, caríssimo leitor, você deve estar meio confuso, com cara de “não entendi nada”. Também eu não entenderia as loucuras literárias do Sr. Neil Gaiman desse O oceano no fim do caminho, se não tivesse lido o livro. Não é propriamente uma interpretação o que forneço aqui. São chaves interpretativas para a minha leitura. O trabalho de juntar tudo isso ou não, verificando como todas essas informações podem funcionar dentro da história é todo seu, meu caro. “Você pode até dizer/Que eu estou por fora/Ou então/Que eu estou inventando”, como na letra da música Como nossos pais, de Belchior, imortalizada na voz maravilhosa de Elis Regina.
Leia, leia o livro!
GAIMAN, Neil. O oceano no fim do caminho. Editora Intrínseca. Rio de Janeiro, RJ: 2013.