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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Resenha nº 59 - A Bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe

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Antonio G. Iturbe nasceu na cidade espanhola de Zaragoza, em 1967. Há mais de 20 anos esse escritor se dedica ao jornalismo cultural, tendo sido coordenador do caderno televisivo do jornal El Periódico, diretor e redator da revista Que Leer. Poucas vezes podemos saber da gênese de um livro, motivo pelo qual não quero perder a oportunidade de lhes falar um pouco sobre a deste A Bibliotecária de Auschwitz. Ou melhor, deixar a cargo do próprio autor, em transcrição de uma entrevista concedida ao Jornali, de 01/12/2015, disponível na internet no endereço www.ionline.pt/376683:

“Não tinha um interesse especial por Auschwitz. O que me trouxe aqui não foi a leitura de um livro sobre a Segunda Guerra Mundial mas a leitura de um livro sobre bibliotecas [A Biblioteca À Noite], do autor Alberto Manguel, que na minha opinião é um dos grandes especialistas da história da leitura. Nesse livro falava de muitas bibliotecas e referia que em Auschwitz conseguiram reunir oito livros, o que seria a biblioteca mais pequena da história. O dado ficou-me na cabeça.”

E mais adiante, na mesma entrevista:

“Foi em 2006 ou 2007 que li este livro. Como foi possível? De onde vieram os livros? E quem era responsável por eles? E porquê? Ao responder a estas perguntas, procurei mais informações e aos poucos ia-me dando conta de que existia aqui uma história interessante.”

E, de posse de um bom argumento, Iturbe começou sua pesquisa. Obteve a informação de que havia um romance, The Painted Wall (O Muro Pintado, numa tradução literal), escrito por certo Ota Kraus, que falava sobre a vida em Auschwitz:

“Ia recolhendo informação, lendo livros, fiz uma viagem a Auschwitz. Encontrei uma pista: que existia um romance que acontecia nesse campo familiar onde estava o barracão da biblioteca e que o tinha escrito Ota Kraus; teria sido um dos professores daquela escola clandestina [mais tarde casar-se-ia com Dita]. Era um romance que não havia forma de encontrar em lado nenhum. Por fim dei com ele numa página web caseira e foi a pedir este livro que dei conta que a pessoa que me estava a responder assinava "Dita". Como já tinha lido que a miúda tinha esse nome perguntei-lhe se tinha alguma coisa a ver e ela disse que sim, que era ela e que agora vivia em Israel.”

Não vou copiar o restante da entrevista, saborosamente em português lusitano, que é toda muito interessante. Se o leitor se achar motivado, é só acessar o endereço eletrônico colocado acima e degustá-la.

O livro emociona não só por ter um bom argumento, ser muito bem construído e escrito com maestria, mas também porque ficamos sabendo, desde o início, esta será uma história real, envolvendo pessoas de carne e osso que sofreram, lutaram, viveram sob as condições mais sub-humanas pensáveis, resistiram o quanto puderam, a maioria morreu e alguns poucos sobreviveram para contar ao mundo os horrores do Holocausto. E o que haveria nesse livro que o recomende à leitura? Não seria mais um relato – embora ficcional – sobre o já batido tema dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial? Pergunta que tenho a pretensão de ter respondido ao final da resenha.

Comecemos pelo tema; aí começa o diferencial do livro, pois Iturbe usa as atrocidades contra os judeus como elemento narrativo importante, mas evita transformá-lo no foco principal do livro. O tema verdadeiro, o fio condutor, a razão de ser do livro é a existência de uma biblioteca de apenas oito livros dentro de um campo de concentração nazista. E mais, como a existência dessa minúscula biblioteca conseguiu ser tão importante para tantas pessoas, a ponto de fazer com que elas arriscassem suas próprias vidas para defendê-la?

A vida no barracão 31 é diferente. Miserável, em condições sub-humanas como nos outros barracões. Mas ali, um grupo de pessoas verdadeiramente comprometidas com um grupo de crianças tem a perigosa ideia de fazer funcionar uma escola. E apoiam-se em uma biblioteca de apenas oito livros: um de Freud (o nome não aparece), Uma Breve História do Mundo, de H. G. Wells, um atlas geográfico, As Aventuras do Bravo Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, uma gramática de russo e um livro de matemática e do oitavo não se tem informação.

Dita Adlerova – mais formalmente, Edita Adlerova – é a bibliotecária do nome da obra. Ela tem apenas 15 anos, é muito magra, subnutrida como todos ali naquele campo forçado. Também é extremamente perspicaz e inteligente. É comum que crianças submetidas a condições tão funestas como aquelas de Auschwitz se tornem maduras demais para a pouca idade. Sentindo o perigo representado por portar livros num ambiente no qual isso era proibido, Dita tem a brilhante ideia de solicitar a uma costureira a confecção de um suporte com bolsos, para ser usado debaixo de suas roupas, em que pudesse carregar as preciosas obras sem levantar suspeitas.

Forma-se uma escola naquele barracão. Os que sabem mais tornam-se professores dos pequenos, em condições precárias. Não havia quadros, não havia material escolar; as crianças aprendem a queimar pedaços de madeira e com as pontas em carvão, escreverem em algum pedaço de papel. Os mapas são traçados sobre a terra do piso. Uma figura ímpar se destaca: a do alemão judeu Fredy Hirsch. Dono de uma vontade acima da média, ele protege quanto pode aqueles crianças. Tem algum trânsito junto aos famigerados SS e por isso, é motivo de olhares de desagrado de vários membros.

Naquele local, uma espécie de sucursal do inferno, convivem várias pessoas. Velhos, jovens, mulheres, homens, gente covarde e gente corajosa, colaboracionistas abomináveis, membros da resistência. E, ainda, várias ideologias, algumas em oposição, como socialistas, comunistas, sionistas, antissionistas, sociais-democratas, nacionalistas tchecos. Pratica-se naquele lugar um mecanismo impiedoso, a separação entre os “aptos” – com condições de trabalho – e os “inaptos” – que já não servem mais para trabalhar. Estes últimos vão para o chuveiro. Tomarão não uma ducha reconfortante, mas serão imersos em um gás letal e morrerão. Os corpos serão incinerados depois.

Uma figura macabra paira sobre todo o campo: Mengele. Sempre vestido de maneira impecável, orgulhoso de sua raça ariana, frio como se fosse completamente destituído de sentimentos humanos, ele é o Anjo da Morte. Uma espécie de Darth Vader, um dos antagonistas mais assustadores de quantos tenham existido. Para ele, aqueles judeus – escórias humanas – prestam-se muito bem às suas experiências laboratoriais. Por exemplo, os gêmeos excitam sua curiosidade mórbida; manda selecioná-los para experiências, às vezes com vivessecção (dissecação de animais vivos com objetivo de estudos anátomo-patológicos).

Nesse campo de horrores desfilam personagens fortes. A Sra. Krisková, apelidada “Sra. Pelanca” por Dita; Sra. Turnovská (apelidada “Rádio Birkenau”, uma alusão à característica fofoqueira); o registrador Rudi Rosenberg; Alice Munk; Miriam Edelstein; Ota Keller; Viktor Pestek (um SS que não queria mais ser um SS); Hans e Liesl Adler, pais de Dita; professor Morgenstein; Margit, a amiga de verdade e tantos outros.

Há trechos muito fortes no livro, como por exemplo, numa passagem em que Dita toma consciência da estratégia nazista em relação aos campos familiares, como Auschwitz:

“- Falei com um homem da Resistência. Ele me contou uma história incrível. Que o campo familiar é um disfarce dos nazistas para o caso de aparecerem observadores de outros países para questionar…

Miriam assente com a cabeça em silêncio.

- Então é verdade! A senhora já sabia! Quer dizer que – sussurra Dita –, a única coisa que fizemos esse tempo todo foi estar a serviço dos nazistas.

- Nada disso! Eles tinham um plano, mas implementamos o nosso. Queriam um depósito de crianças largadas num canto como trastes, mas abrimos uma escola. Queriam que fossem quadrúpedes num estábulo, mas fizemos com que se sentissem gente.

- E de que adiantou? Todas as crianças do transporte de setembro morreram.

- Valeu a pena. Nada foi em vão. Lembra como riam? Como arregalavam  os olhos quando cantavam  o Alouette ou escutavam as histórias dos nossos livros vivos? Lembra os pulos que davam, quando púnhamos meio biscoito na tigela delas?

- E o entusiasmo com que preparavam as peças de teatro?

- Foram felizes, Edita.

- Mas durou tão pouco…

- A vida, qualquer vida, dura muito pouco. Mas se conseguimos ser felizes, ao menos por um instante, terá valido a pena.” (páginas 258/259)

Os termos grifados por mim, livros vivos, merecem uma explicação. Com a dificuldade de se transitar com livros pelo campo familiar de Auschwitz e pela dificuldade mesma de haver apenas oito exemplares, os prisioneiros do barracão 31 têm a excelente ideia dos “livros vivos”. Nada mais é que a designação de pessoas que deveriam reproduzir oralmente as histórias contidas nos livros. Diante de todas as crianças, acontecia o que hoje nós entendemos por contação de histórias. E aqui, uma referência se faz necessária.

O escritor norte-americano Ray Bradbury faz alusão ao mesmo processo em sua obra distópica Farenheit 451, em que, na sociedade futura imaginada por ele, os livros são terminantemente proibidos por serem considerados perigosos. São drasticamente queimados pelos bombeiros. Uma sociedade de resistentes consegue recuperar as obras, guardando na memória cada obra lida. Assim, são identificados pelas obras que memorizaram: Crime e Castigo, etc.

Uma outra passagem bastante impactante é quando Mengele tem uma conversa com seu superior:

“- Meu querido Kommandant, não menospreze a importância da imagem que oferecemos de nós mesmos e de nosso projeto ao mundo. Devemos ser prudentes. Sabe qual foi o primeiro cargo de direção que nosso amado Führer ocupou no partido nazista? – Mengele faz uma pausa teatral. Apesar de saber que responderá a si mesmo, gosta de humilhar Schwarzhuber. – Chefe de Propaganda. Ele conta isso em Mein Kampf. O senhor não leu? – Diverte-se ao notar a dificuldade no rosto do comandante. – Muita gente dentro e fora da Alemanha ainda não entendeu a necessidade de limpar geneticamente a humanidade, eliminando as degenerações da raça. Há países que ficariam em guarda e poderiam abrir novas frentes de guerra contra nós. E isso agora não nos interessa nem um pouco(…)

- Que maldição, Mengele! Está falando como um político! Sou um soldado. Tenho ordens e vou cumpri-las. Se o SS-Reichsführer Himmler diz que é preciso manter o campo sob essas circunstâncias, assim será feito. Mas essa coisa do pavilhão de crianças… O que  tem a ver com tudo isso?

- Propaganda, mein Kommandant… Pro-pa-gan-da. Vamos fazer com que esses internos escrevam para casa e contem aos familiares judeus como são bem-tratados em Auschwitz.

- E que diabos nos importa o que os porcos familiares judeus dessa gente pensam sobre como ela é tratada?

Mengele inspira e conta mentalmente até três.

- Querido Kommandant… Lá fora ainda há muitos judeus que traremos aos poucos. Um animal que não sabe que está indo para o matadouro se deixa levar mais docilmente do que aquele que sabe que será sacrificado(…).” (páginas 207/208)

Dita, durante a história contada no livro de Iturbe, lembra-se várias vezes de outro livro, A Montanha Mágica, do alemão Thomas Mann. Chega a identificar-se com a personagem Madame Chouchart, charmosa, elegante e culta. Um outro livro citado é o Fome, do autor norueguês Knut Hamsun. Para muitos, é a maior obra desse escritor, meio maldito por suas ligações com os nazistas. Ainda, outras referências literárias são A Cidadela, do médico e escritor escocês Archibald Joseph Cronin e O Diário de Anne Frank. Dita ama os livros. O manejo deles funciona como um elo de normalidade para aquelas crianças, uma vez que todas elas tiveram, de alguma forma, ligações com escolas, professores e livros.

Uma das cenas que arrepiam pelo impacto é durante o Pêssach, festa judia, na qual as crianças em plenos pulmões entoam a Ode à alegria, que faz parte final da 9ª Sinfonia de Beethoven, cuja letra é um poema de Friedrich Schiller de 1875. Quem já ouviu essa sinfonia sabe que a Ode é uma tonitruante comemoração de alegria. Em pé, junto à porta, a figura sombria de Mengele a tudo observa. Ele chega sem se fazer anunciar. Os adultos temem sua reação, as crianças prosseguem em sua entusiasmada apresentação e o Anjo da Morte a aprova. Pouco depois, os próprios pequenos cantores se aplaudem.

Finalmente, chega o dia em que os ingleses invadem o campo de Bergen-Belsen, na Alemanha, para onde nossos personagens foram levados, e libertam todos. Uma nova vida, cheia de desafios e adaptações, porque não se esquecem facilmente os horrores pelos quais passaram e mesmo para a liberdade, tão sofridamente desejada, há que se adaptar. Sem quaisquer documentos que os identifique, somente por suas memórias identificados, existem providências a serem tomadas, pessoas a serem procuradas, burocracia, filas.

Com relação ao uso da linguagem, Antonio Iturbe usa um artifício muito interessante. Põe os verbos no presente quando os fatos envolvem Dita em Auschwitz e, mais tarde, Bergen-Belsen. O resultado discursivo dessa estratégia é tornar atual os dramas sofridos pela bibliotecária; segundo depoimentos, a sobrevivente Edita Dorachova, apesar de contar com 80 anos quando concedeu entrevista ao autor, tem a memória completamente preservada, objetiva. Um outro recurso de bom efeito é o modo conciso do seu texto. Esse recurso confere muito mais dramaticidade do que uma abordagem meramente sentimental, derramada. Evita o tom de dramalhão.

Quando, depois de tudo passado, Antonio Iturbe se encontra com a verdadeira Dita, cuja vida continua não sendo fácil, eis como ele a descreve, quase ao final da obra:

“É espantoso como alguém com todo esse sofrimento acumulado sobre os ombros é capaz de não perder o sorriso. ‘É só o que me resta’, diz ela. No entanto, restam-lhe sua energia, sua dignidade de batalhadora contra tudo e contra todos que fazem dela uma mulher de oitenta anos erguida e com olhos efusivos. Dita não quer pegar um táxi, e não me atrevo a contrariar seu senso de economia, próprio de quem viveu tempos muito ruins. Pegamos o metrô e ela vai em pé. Há assentos livres, mas ela não se senta. Não há quem possa dobrar uma mulher assim. O Terceiro Reich inteiro não pôde com ela.” 

Entre Israel, onde mora atualmente e Praga, visitando a família de Margit, o trabalho de Dora é ainda o de cuidar para que não se perca a memória de Auschwitz, de modo indireto. De modo direto, cuida de espalhar o máximo possível o livro escrito pelo marido, The Painted Wall – o mesmo que foi parar nas mãos de Iturbe e por meio do qual ele conseguiu encontrar Dita Dorachova. Dita continua amando os livros.

Uma lista dos nomes das pessoas transformadas em personagens de ficção completa o livro. Ali o autor procurou dar informações sobre o que aconteceu a muitos deles; se continuam vivos, se morreram, o que fizeram depois.

Mede-se um excelente livro pelo que nos fica depois de o lermos. Terminei de o ler ontem, dia 30/11/2015. Não quis partir logo para a resenha por um motivo: as ressonâncias, quer estéticas, quer emocionais ainda estavam muito fortes em mim. Provavelmente, a resenha perderia muito a precisão buscada. Conquanto me proponha não simplesmente resenhar objetivamente um livro lido – e muito também passar meu entusiasmo, minha paixão pela leitura – resenhar deve obedecer a alguns critérios. Com a leitura desse livro, iniciei um trabalho diferente: um diário de leitura. Esse gênero textual de apoio foi muito proveitoso, pois à medida que lia, ia anotando por datas, quantas páginas havia lido e o que acontecia nelas.

- Não perturbaria o prazer da leitura?, me indagou uma amiga, também afeita aos livros.

Não, não atrapalhou. Precisa de uma disciplina que não sei se terei em outros casos, mas foi muito útil. Feita depois da leitura do dia, foi muito legal rememorar os trechos lidos, ajudou imensamente na fixação do texto e facilitou bastante a confecção desta resenha.

Não é necessário fazer a recomendação da leitura, não é mesmo, caro leitor? Está quase explícito. O livro é extraordinário. Um dos melhores que já li em toda essa minha (longa) experiência como leitor. E mais: cada vez vou confirmando aquela ideia, cada livro é um diálogo com outros livros, e se você gosta realmente de ler, não pode deixar de anotar as referências. Descobri que preciso reler A Montanha Mágica; O Bom Soldado Svejk já está na minha lista. É considerado uma das obras mais importantes da literatura mundial. A Biblioteca À Noite, de Alberto Manguel repousa na minha estante, pacientemente aguardando o momento de lídima degustação. Antes, era apenas um objeto de desejo.

ITURBE, Antonio G. A Bibliotecária de Auschwitz. Editora Agir, 368 páginas. Rio de Janeiro, RJ: 2014

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