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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Resenha nº 63 - Quase Memória, de Carlos Heitor Cony

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1926. Segundo relata, desde criança teve problemas de dicção, somente superados em 1941, após cirurgia. Decidiu ser padre aos 11 anos, para o que ingressou no Seminário Arquidiocesano de São José. Entretanto, abandonou o projeto em 1945, para iniciar seus estudos de Filosofia na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil – hoje conhecida como Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Cony foi funcionário da Câmara Municipal do Rio, na década de 50, época em que começou também a trabalhar como redator no Jornal do Brasil. Teve problemas com a censura dos ditos Anos de Chumbo (Ditadura Militar), morou em Cuba em 1967 e, ao retornar ao Brasil, foi preso.

Em 1966 recebeu o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra. Quase Memória levou o Prêmio Jabuti como melhor livro de ficção no mesmo ano. Em 1998, voltou a receber o mesmo prêmio com A Casa do Poeta Trágico; foi condecorado pelo governo francês com a comanda da Ordre des Arts et des Lettres. Publicou Romance Sem Palavras em 1999 e no ano seguinte, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Atualmente, Carlos Heitor Cony é colaborador do jornal Folha de São Paulo.

Antes propriamente de iniciar esta resenha, devo dizer que este Quase Memória é o primeiro livro do autor lido por mim. O exemplar em mãos é o da Biblioteca Folha de São Paulo, coleção esta coeditada com o jornal O Globo, mudando-se somente o projeto da sobrecapa que acompanha o volume. E eis exatamente aí um problema: não sei o que aconteceu exatamente, mas a foto estampada na sobrecapa não tem qualquer nexo com a obra em si. É a foto de um rosto feminino, entrevisto por detrás de uma espécie de vegetação seca. Creio que a foto da versão da Folha de São Paulo (veja a imagem acima) é bem mais adequada, pois nos mostra uma cena antiga da cidade do Rio de Janeiro.

Assumido pelo próprio autor, esta é uma obra mista, sendo

“... ‘quase-romance’ – que de fato o é. Além da linguagem, os personagens reais e irreais se misturam, improvavelmente, e, para piorar, alguns deles com os próprios nomes do registro civil. Uns e outros são fictícios. Repetindo o anti-herói da história, não existem coincidências, logo, as semelhanças, por serem coincidências, também não existem.
No quase-quase de um quase-romance de uma quase-memória, adoto um dos lemas do personagem central deste livro, embora às avessas: amanhã não farei mais essas coisas.” (página 7)

O narrador recebeu um volume, caprichosamente confeccionado, que lhe fora entregue pelo porteiro do hotel no qual estava:

“Não cheguei a ouvir o meu nome. Foi a secretária que me avisou: um dos porteiros, de cabelos brancos, óculos de aros grossos, queria falar comigo. E sabia o meu nome – eu que nunca fora hóspede do hotel, apenas um frequentador mais ou menos regular do restaurante que é aberto a todos.
Aproximei-me do balcão, duvidando que realmente me tivessem chamado. Ainda mais pelo nome: não haveria uma hipótese passável para que soubessem meu nome.
— Sim...
O porteiro tirou os óculos, abriu uma gaveta embaixo do balcão e de lá retirou o embrulho, que parecia um envelope médio, gordo, amarrado por barbante ordinário.
— Um hóspede esteve aqui no último fim de semana, perguntou se nós o conhecíamos, pediu que lhe entregássemos este envelope...
— Sim... Sim...
Eu não sabia se examinava o envelope ou a cara do porteiro. Nada fizera para que ele soubesse meu nome, para que pudesse dizer a alguém que me conhecia. O fato de duas ou três vezes por semana eu almoçar no restaurante do hotel não lhe daria esse direito.” (páginas 9 e 10)

O mistério não compreendido: o envelope trazia, em uma das faces, subscritada, o nome do jornalista Carlos Heitor Cony. Era, inquestionavelmente, a letra de seu pai...morto há mais de dez anos!

O pacote recebido pelo narrador tem o poder de lhe despertar sinestesicamente, as memórias do pai. O jeito de atar o barbante, os cheiros, a aparência do embrulho – tudo lhe invocava seu pai.

A partir desse motivo, o autor constrói as recordações paternas. E como seria de se esperar, a figura central de Ernesto Cony Filho, jornalista de profissão, como o próprio filho, precisa de contextualização para existir dentro da narrativa proposta.

Personagens, personalidades da época são trazidas para o presente. E entre todas, destaca-se Ernesto, o jornalista, construído por Heitor Cony como um homem polêmico em suas atitudes, mas igualmente, um personagem de ricos matizes. Contraditório às vezes, sincero outras, herói e anti-herói, diletante de óperas, jornalista que recusara ser editor.

Homem inconstante e ingênuo em seus empreendimentos, fora jornalista, criador de galinhas e vendedor de ovos, criador de jacaré num lago feito em sua propriedade, vendedor de rádios, elaborador fracassado de perfumes. Homem de “sete profissões e quatorze misérias”.

Entretanto – e sobretudo – um homem que não reclamava da vida, ganhando um salário razoável para a época, permitindo-lhe dar uma vida segura e sem luxos para a família.

Em Ernesto, a imaginação superava a realidade, fazendo dele uma espécie de Pantaleão, tipo criado pelo excelente Chico Anysio – um mentiroso contumaz. Pois que, certa vez, ganhara uma viagem a Fiuggi, na Itália, cidade famosa por águas curadoras da fonte Bonifácio VIII. Não saíra do Brasil, pois, o projeto em andamento, a viagem fora suspensa por causa de Benito Mussolini – ele havia descoberto uma conspiração contra seu regime e abortara qualquer viagem a seu país, incluindo a localidade de Fiuggi.

Ernesto Cony é obrigado a voltar, mas isso não impede de ele narrar as belezas da “viagem”, da “cidade visitada”. Conta, para quem queira ouvir (e esse dado é verídico), que o famoso pintor-arquiteto-escultor Michelangelo teve um problema de pedra nos rins resolvido ao tomar a água daquela fonte. Segundo a Wikipédia, o artista teria cunhado uma frase de efeito, dizendo “aquelas eram o único tipo de pedra que ele não podia amar”.

Os elementos ficcionais da narrativa realmente levam à classificação dela, imprecisamente, como um quase-romance, uma quase-memória e – eu acrescentaria – uma quase-crônica. Da estrutura do romance, estão presentes as possibilidades de vários núcleos dramáticos, não realizados; de memória, a existência de pessoas de existência real, mas entremeadas de outras, ficcionais; de crônica, pela insistência na abordagem dos fatos ligeiros, quotidianos, no que resulta uma visão entrevista do Rio de Janeiro antigo, com seus costumes e cultura. É, portanto, uma obra de gênero híbrido por excelência.

Tive de usar a disciplina para vencer as 223 páginas que compõem a obra. O problema não é, per si, a prosa de Carlos Heitor, divertida, irônica muitas vezes, como podemos constatar pelo trecho abaixo:

“Minha mãe, que vivera infância e parte da mocidade no interior, depois do susto, declarou que aquilo não era filhote de jacaré, apenas um lagarto – o que desmoralizava o pai mais uma vez. Ninguém é grande em sua casa.
Eu acreditei no jacaré, o pai o levou, apesar de já ser noite fechada, para a represa. Teve a infeliz ideia de soltá-lo. Nunca mais fui para aqueles lados até que minha mãe reclamou, o lagarto-jacaré estava crescendo, aparecia no quintal, já chegara até a porta da cozinha, qualquer dia estaria na sala de visitas, nos quartos.
O pai resolveu prendê-lo. Comprou uma comprida corrente, das mais finas, dessas de amarrar cachorro pequeno. Colocou uma argola onde julgava ser o pescoço do lagarto-jacaré. Apesar de suas técnicas, descuidou-se, o bicho deu uma volta no ar e o pai deu um grito. O polegar recebeu a dentada, por pouco perdia o dedo. Sangrou muito.” (página 88)

Se não é a linguagem, o enredo em si, qual seria o problema desta obra?

Exatamente, o seu padecimento é a sua indefinição de gênero. O texto é truncado, sofre de maior fluidez. Há relações exaustivas de personalidades, enumerações em demasia – que acabam, na minha opinião – por não serem melhor aproveitadas. Diferentemente da vida real, na qual vamos encontrando pessoas ocasionais e não significativas para nós, numa obra ficcional os personagens, os fatos têm de ter função narrativa.

É um livro ruim, então?

Não, absolutamente, não. Autores humanos, imperfeitos, por definição não produzem obras perfeitas, sem qualquer senão. Há trechos bem engraçados, contribuindo para tornar a leitura mais palatável. Há referência ao Rio de Janeiro do início do século XX muito interessantes. Por exemplo, já sabia da proeminência da Confeitaria Colombo, pelas histórias contadas por minha mãe, que a frequentava.

Talvez o próprio fazer literário de Cony tivesse se ressentido, pois essa foi a primeira obra produzida por ele depois de 20 anos. Escrever – e escrever narrativas – não tem nada de milagre. É disciplina, é dedicação, é muito, muito trabalho constante.


CONY, Carlos Heitor. Quase Memória. Biblioteca O Globo. Rio de Janeiro, RJ: 2003


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