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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Resenha nº 70 - O Caderno de Maya, de Isabel Allende


Isabel Allende é uma escritora peruana, já conhecida dos que frequentam este blog. Dela, já resenhei os seguintes livros: Inés de Minha Alma, Zorro e A cidade das Feras, motivo pelo qual dispenso repetir a biografia da autora. Seu título de maior impacto, que a lançou para o mundo literário, foi A Casa dos Espíritos, obra estreante, de 1982, que se tornou filme de sucesso. Isabel reside hoje no estado americano da Califórnia.

O Caderno de Maya é, para mim, o melhor livro de Allende que já li (ainda não li A Casa dos Espíritos). Facilmente, este livro é candidato à lista dos Melhores Livros Resenhados do Ano de 2016, neste blog. Editado pela Bertrand Brasil, é bastante diferente de outros trabalhos de Isabel Allende. Trata de um assunto bastante atual, o mundo das drogas. A personagem principal é uma adolescente problemática, Maya Vidal. Todo escrito em primeira pessoa, com um enredo não linear (as anotações do caderno dela vão constituindo os flashes, as incursões ao passado). Alguns leitores relataram dificuldades em seguir a história, exatamente pelos deslocamentos temporais da trama.

Deixemos, entretanto, que a própria Maya se apresente:

“Sou Maya Vidal, dezenove anos, sexo feminino, solteira, sem namorado — por falta de oportunidade, e não por frescura —, nascida em Berkeley, Califórnia, passaporte norte-americano, temporariamente refugiada numa ilha ao sul do mundo. Me chamaram de Maya porque minha Nini é fascinada pela Índia e não ocorreu outro nome a meus pais, mesmo tendo tido nove meses para pensar. Em hindi, maya significa ‘feitiço, ilusão, sonho’. Nada a ver com o meu temperamento. Átila me cairia melhor, porque onde boto os pés não nasce mais pasto.

Minha história começa no Chile com a minha avó, a minha Nini, muito antes de eu nascer, porque, se ela não tivesse imigrado, não teria se apaixonado pelo meu Popo nem teria se instalado na Califórnia, meu pai não teria conhecido minha mãe e eu não seria eu, mas uma jovem chilena muito diferente. ” (página 12, trecho reproduzido na quarta capa)

Maya Vidal se parece com sua mãe dinamarquesa Marta Otter; seu pai é um piloto de avião comercial. Quando os dois se separaram, logo após Maya nascer, a criança foi viver com os avós, Nidia Vidal (a quem ela chama de “minha Nini”) e Paul Ditson II (a quem Maya chama de “meu Popo”). Nidia é chilena de nascença e Paul é um professor afroamericano da Universidade de Berkeley, Califórnia, do ramo da astronomia. Eles formam um casal em relacionamento maduro, apesar de serem tão heterogêneos. Amam profundamente a neta e a relação entre Maya e seu Popo é algo profundo, transcendente, conforme se depreende do trecho abaixo:

“A enorme presença de meu Popo, com seu humor brincalhão, sua bondade ilimitada, sua inocência, seu colo para me ninar e sua ternura, preencheu a minha infância. Ele tinha um sorriso sonoro, que nascia nas entranhas da terra, subia pelos pés e o sacudia por inteiro. ” (página 56)

A morte deste avô muda completamente a vida de Maya. Está completamente transtornada, sem chão, numa depressão intensa:

“Uma dor assim, dor da alma, não se apaga com remédios, terapia ou férias; uma dor assim se sofre, simplesmente, a fundo, sem paliativos, como deve ser. Eu teria feito bem em seguir o exemplo da minha Nini, em vez de ficar negando que estava sofrendo e calando o uivo que levava atravessado no peito. No Oregon, eles me receitaram antidepressivos, que eu não tomava, porque me deixavam idiota. Vigiavam-me, mas eu podia enganá-los com chiclete escondido na boca, onde grudava o comprimido com a língua e, minutos depois, cuspia intacto. Minha tristeza era a minha companheira, não queria me curar dela como se fosse um resfriado. Também não queria compartilhar minhas lembranças com aqueles terapeutas bem-intencionados, porque qualquer coisa que dissesse a eles sobre o meu avô seria banal.” (página 84)

As péssimas companhias se tornam uma constante. De degrau em degrau, Maya se afunda, perde a dignidade de ser humano, passa por experiências terríveis, até chegar ao fundo do poço de sua curta existência. Envolve-se com crápulas, bandidos, e acaba tendo de se tornar uma refugiada numa ilha da costa chilena, Chiloé:

“Aqui não se alugam DVD’s nem videogames, e os únicos filmes são aqueles que passam uma vez por semana na escola. Para me distrair, disponho somente dos febris romances de amor de Blanca Schnake e dos livros em espanhol sobre Chiloé, muito úteis para se aprender o idioma, mas cuja leitura me cansa.”  (página 39)

Ali, naquela localidade tão distante do seu mundo, Maya conhece pessoas diversas, como a já citada Blanca Schnake e Miguel Arias – com um passado nebuloso. Participa de um ritual de “bruxaria” exclusivamente feminina, dedicada à deusa Pachamama, mas que funciona, na realidade, como uma espécie de terapia de grupo.

Mesmo quando se envolvera com bandidos como Brandon Leeman, Joe Martin e o Chinês, ainda encontrou pessoas boas, como o menino Freddy, que terá um papel muito importante para Maya. Lentamente, nossa personagem emerge de sua agonia existencial, não retornando exatamente à mesma configuração mental de antes, pois quem passa por experiências tão dramáticas dificilmente o conseguiria, mas alguém mais madura, mais curtida pela vida e por suas próprias escolhas.

A galeria de mulheres fortes de Isabel Allende está presente também nesse livro. Nidia Vidal se assemelha muito àquela Kate Cold de A Cidade das Feras, meio amalucada, mística, uma senhora pouco convencional. Sobre Maya, Isabel Allende mesma declara:

“Esta Maya me fez sofrer mais do que qualquer outro de meus personagens. Em alguns momentos, eu teria lhe dado uns tapas para fazê-la voltar à razão; em outros, eu a teria envolvido num abraço apertado para protegê-la do mundo e de seu coração imprudente.”
Ao utilizar Maya Vidal como narradora-personagem, contando sua vida em primeira pessoa, Isabel Allende pode deixar fluir seu romantismo de maneira bem intensa, pois isso é inteiramente coerente com uma adolescente que, mesmo passando por terríveis situações, ainda conserva um coração capaz de apaixonar-se perdidamente por alguém. E sentimos imediata simpatia por essa jovem, pela ousada coragem de existir, atravessando tantas dificuldades, para se reerguer. É a função catártica da tragédia, tão a gosto dos antigos gregos, sabedores disto e de muitas outras coisas importantes.

Várias reviravoltas acontecem durante a leitura da obra. Isabel sabe misturar muito bem reflexões sobre a vida, personagens fortes e bem construídas com altas doses de aventuras – algo rocambolescas, diriam muitos. E, acrescentaria eu, com notas fortes de espiritualismo primitivo. Primitivo aqui não é depreciativo, mas está por “natural”, ligado às crenças das pessoas simples, em conexão com a natureza. A ilha de Chiloé tem sua própria mitologia, seu folclore próprio.

Perguntas importantes vão tendo respostas no decorrer do trabalho: exatamente por que Maya tem de se refugiar num lugar tão improvável? Que passado misterioso viveu Miguel Arias, dadas as suas características estranhas, atualmente? Por que Miguel Arias, apesar de ter gênio tão difícil, mostra-se tão solícito com Maya? Há alguma relação entre Nidia Vidal e Miguel Arias? Quem, realmente, é o policial Arana? Quem foi Felipe Vidal e que importância poderia ter tido? O que Maya foi fazer na Villa Grimaldi?

Pitadas da história, muitas vezes de acentuado viés político do Chile, como já é uma característica de Allende, também são fornecidas neste livro. A ação se passa quando aquele país andino estava sob o governo de Michelle Bachelet.

O Caderno de Maya nos traz momentos de leitura muito prazerosa. Como nos diz Yuval Harari, em outro livro anteriormente resenhado aqui neste blog, Sapiens – uma breve história da humanidade –, o homo sapiens dominou as outras espécies porque aprendeu a contar histórias e compartilhá-las com seus semelhantes. Isabel Allende faz isso muito bem; conduz suas narrativas com mãos seguras e experientes. E a escola americana sabe como poucas criar enredos viciantes, uma forte influência, penso eu, dos roteiros para cinema hollywoodianos.

Leitura altamente recomendável!


ALLENDE, Isabel. O Caderno de Maya. Editora Bertrand Brasil, 2ª edição. Rio de Janeiro, RJ: 2012

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Clipping: Morre Umberto Eco

Conheça a história de Umberto Eco, grande intelectual e autor de sucesso mundial
Estudioso, linguista e filósofo alcançou a fama em todo o mundo com um romance medieval e erudito, "O nome a rosa"
AFP - Agência de Notícias Publicação:20/02/2016 10:36

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Grande intelectual italiano, o escritor Umberto Eco, que morreu na noite de sexta-feira aos 84 anos, era um estudioso, linguista e filósofo, que alcançou a fama em todo o mundo com um romance medieval e erudito, "O nome a rosa". Filósofo de formação, ficou famoso tarde, quando estava próximo de completar cinquenta anos, tendo conseguido um enorme feito com seu primeiro romance, publicado em 1980. "O nome da Rosa" vendeu milhões de cópias e foi traduzido para 43 idiomas.

O livro foi adaptado para o cinema, em 1986, pelo francês Jean-Jacques Annaud, com Sean Connery no papel do monge franciscano Guillaume de Baskerville, o ex-inquisidor encarregado de investigar a morte suspeita de uma freira em uma abadia do norte da Itália. Salpicado com latin, o suspense deste renomado semiólogo foi ainda alvo de edições piratas, incluindo uma em árabe sob o título de "Sexo no convento".Outra consequência, significativa para a mercado editorial italiano, "O nome da rosa reviveu o romance na Itália e a literatura italiana no exterior. Os escritores italianos voltaram a ser traduzidos", ressalta o escritor e crítico italiano Alain Elkann. Eco, neto de um editor da pequena burguesia, contou que começou a escrever aos dez anos de idade histórias que ele mesmo editava.

Nascido em Alessandria, no norte da Itália, em 5 de janeiro de 1932, Umberto Eco estudou Filosofia na Universidade de Turim e dedicou sua tese ao "problema estético em Tomás de Aquino". Este especialista em história medieval, que traduziu Nerval em italiano e que conhecia de cor Cyrano de Bergerac, também trabalhou para a rádio-televisão pública italiana RAI, uma oportunidade que lhe serviu para estudar o tratamento da cultura pela imprensa.

Poliglota, casado com uma alemã, Eco lecionou em várias universidades, especialmente em Bolonha (norte), onde ocupou a cadeira da semiótica até outubro de 2007, quando se aposentou. Eco explicou que demorou para embarcar no gênero da ficção porque "considerava a escritura romanesca como uma brincadeira de criança que ele não levava a sério".

Homem de esquerda

Depois de "O nome da rosa", ele ofereceu aos seus leitores "O Pêndulo de Foucault" (1988), "A Ilha do Dia Anterior" (1994) e "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" (2004). Seu mais recente romance, "Número zero", publicado em 2014, é um thriller contemporâneo centrado no mundo da imprensa.

Ele também é o autor de dezenas de ensaios sobre temas tão diversos como a estética medieval, a poética de Joyce, a memória vegetal, James Bond, a história da beleza ou da feiura. "A beleza se situa dentro de certos limites, enquanto a feiura é infinita, de modo mais complexo, mais variado, mais divertido", explicou em uma entrevista em 2007, acrescentando que sempre "teve afeição por monstros".

Afirmando que "escrevia para se divertir", Il Professore - de olhos maliciosos e uma barba branca - também era bibliófilo e possuía mais de 30.000 títulos, incluindo edições raras. "Eco era o primeiro da turma, muito inteligente, muito erudito. Ele encarnou a figura do intelectual europeu. Sentia-se tão a vontade em Paris ou Berlim quanto em Nova York ou no Rio de Janeiro", afirma Alain Elkann.
Militante de esquerda, Eco não foi um escritor trancado em sua torre de marfim, sua abertura não o impediu de ter um olhar crítico para com a evolução da sociedade moderna. Após a vitória eleitoral de Silvio Berlusconi em 2008, dedicou um artigo ao retorno do espírito dos anos 40, lamentando "ouvir discursos semelhantes aos da 'defesa da raça', que não só atacava os judeus, mas também ciganos, marroquinos e estrangeiros em geral".

Sua última luta foi conduzida juntamente com outros escritores, incluindo Sandro Veronesi (Chaos calma), para proteger o pluralismo das editoras na Itália após a aquisição da RCS Libri pela Mondadori, propriedade da família Berlusconi. Umberto Eco e outros grandes nomes da literatura italiana decidiram então se juntar a uma editora nova e independente batizada "La nave di Teseo" (o navio de Teseo, o mítico rei de Atenas), liderada por Elisabetta Sgarbi, ex-diretora da Bompiani, florão do grupo RCS, editora na Itália de Umberto Eco, mas também do francês Michel Houellebecq.


 Fonte: Jornal Estado de Minas, 20/02/2016

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Resenha nº 69 - Sapiens - Uma Breve História da Humanidade

Resultado de imagem para livro sapiens uma breve história da humanidadeNo tocante à biografia, vamos deixar falar a orelha do livro: “Yuval Noah Harari é doutor em história pela Universidade de Oxford, especializado em história mundial e professor da Universidade Hebraica de Jerusalém. Sua linha de pesquisa gira em torno de questões abrangentes, tais como: qual a relação entre história e biologia? Existe justiça na história? As pessoas se tornam mais felizes com o passar do tempo?

Sapiens – uma breve história da humanidade foi lançado originalmente em Israel, em 2011, e logo se tornou um best-seller internacional, sendo publicado em quase quarenta países. Milhares de pessoas fizeram o curso on-line do professor Harari sobre a história da humanidade, e suas palestras no YouTube tiveram centenas de milhares de visualizações em todo o mundo. Em 2012, ele recebeu o Prêmio Polonsky por Criatividade e Originalidade nas Disciplinas Humanísticas.”

Esta não é uma obra de ficção e, por esse motivo, um livro difícil de ser lido, na concepção de um grande público não afeito a trabalhos dissertativos de grande fôlego. Note-se, também, que ele não é exatamente um texto acadêmico característico, usando todo um aparato técnico-conceitual, no qual o autor se preocupa quase que exclusivamente em provar suas teses, demonstrar raciocínios, levantar hipóteses e tirar conclusões. Filia-se ao conceito algo vago de “divulgação científica”, a caracterizar uma obra que, sem perder seu foco dissertativo, “doma” os termos técnicos, é parcimoniosa no uso de gráficos e fórmulas matemáticas e se direciona ao público leigo.

Harari produz um trabalho exemplar. Não é à-toa o seu sucesso de crítica e de público – a L&PM, editora do livro, faz questão de destacar sobre a capa branca da obra uma tarja vermelho-cheguei com os dizeres “Best-seller Internacional”, em letras garrafais. Como um texto que tinha tudo para ser árido, como se depreende do subtítulo “uma breve história da humanidade” pode ter se tornado um êxito editorial junto ao público? Veremos o porquê mais tarde.

O fato é que Yuval Noah Harari é originalíssimo em sua tese central e igualmente nos argumentos que levanta para defendê-la. Sapiens – uma breve história da humanidade é muito bem escrito, bem articulado; de acordo com The Times, “Harari sabe escrever [...] de verdade, com gosto, clareza, elegância e um olhar clínico para a metáfora.”

Responda rápido, amigo leitor, qual é o único lugar onde os conteúdos (disciplinas) são tratados de modo estanque? Resposta imediata: na escola! Em qualquer outra situação, nossos conhecimentos de geografia, biologia, história, língua – vários conteúdos, portanto –, são requisitados no processo de leitura. Uns conteúdos mais, outros menos, mas serão sempre vários. E aí está o primeiro trunfo do livro: o professor Yuval consegue articular uma massa de conteúdos, harmoniosamente interligados. Tanto assim que é tarefa quase impossível a classificação do livro. É uma obra de história? Biologia? Articula conhecimentos de linguística, de geografia, antropologia, sociologia.

Sua tese central: o homem conseguiu sua supremacia incontestável sobre qualquer outra espécie nesse planeta devido à sua capacidade de criar e compartilhar mitos. Ou seja, sua capacidade de criar ficção. E é aí que, literalmente, o bicho pega!

O autor divide a história da humanidade em algumas etapas que, para ele, foram decisivas: A Revolução Cognitiva, A Revolução Agrícola, A Unificação da Humanidade, A Revolução Científica. Nas páginas 7/8 há uma cronologia, uma planta baixa de todo o trabalho de Harari.

Surge o homo sapiens sobre a face do planeta, mas a primeira grande etapa, ocorrida há uns 70 mil anos, é a Revolução Cognitiva. O nascimento da linguagem ficcional modifica tudo. O Homem passa a contar com a possibilidade de narrar histórias, criar ficção, relacionar-se com seus deuses, obter conhecimento e falar sobre suas experiências; os homo sapiens se espalham a partir do continente africano. Aqui, essa nova humanidade, mais inteligente em relação aos existentes e mais atrasados neandertais, ainda é composta de caçadores-coletores. Isto é, vivem do que conseguem obter em termos de caça e coleta de vegetais. São nômades, ainda não formam propriamente uma sociedade. Logo suplantam por completo os neandertais.

Há aproximadamente 12 mil anos, aqueles caçadores-coletores passam por outra etapa decisiva em sua história: a Revolução Agrícola. Aqui, já os encontramos em assentamentos permanentes, com a domesticação de animais e de plantas. Acontece a invenção do dinheiro, dos impérios, das grandes religiões.

A Revolução Industrial data de 200 anos. Por toda a parte, e cada vez mais, as máquinas criadas pelo homem fazem o trabalho que era deles. A família e a comunidade se enfraquecem e são substituídas pelo poder do Estado e do mercado. Há extinção em massa de plantas e animais. Os humanos transcendem os limites do planeta Terra, as armas nucleares se tornam uma ameaça efetiva à sobrevivência da humanidade. Os organismos são moldados não mais pela chamada seleção natural, mas pela interferência do homem (design inteligente).

Essa massiva supremacia do Homem começou, como dito, lá atrás, na Revolução Cognitiva. Ao ser capaz de criar mitos e de propagá-los, modificou o modo de ver o mundo. Somos o único animal que acredita em coisas que não existem, construtos abstratos, como nação, povo, dinheiro, benefícios previdenciários, e Harari não hesita em apontar, também as religiões como coisas pertencentes ao domínio da abstração.

Nossa linguagem – um número infinito de sons – é extremamente versátil:

“Um macaco-verde pode gritar para seus camaradas: “Cuidado! Um leão!”, mas um humano moderno pode dizer aos amigos que esta manhã, perto da curva do rio, ele viu um leão atrás de um rebanho de bisões. Pode então descrever a localização exata, incluindo os diferentes caminhos que levam à área em questão. Com essas informações, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir se devem se aproximar do rio, expulsar o leão e caçar bisões.” (página 31)

A partilha dos mitos levou os humanos à cooperação e, consequentemente, ao crescimento de suas realizações:

“Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Dois católicos que nunca se conheceram podem, no entanto, lutar juntos em uma cruzada ou levantar fundos para construir um hospital porque ambos acreditam que Deus encarnou em um corpo humano e foi crucificado para redimir nossos pecados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados. Dois sérvios que nunca se conheceram podem arriscar a vida para salvar um ao outro porque ambos acreditam na existência da nação sérvia, da terra natal sérvia e da bandeira sérvia. Sistemas judiciais se baseiam em mitos jurídicos partilhados. Dois advogados que nunca se conheceram podem unir esforços para defender um completo estranho porque acreditam na existência de leis, justiça e direitos humanos – e no dinheiro dos honorários.” (página 36)

Harari afirma, a certa altura do texto, que as guerras de grandes proporções não têm como acontecer no mundo de hoje, não porque as pessoas tenham se tornado melhores, mas porque tais conflitos não seriam rentáveis. Além do mais, os “tesouros” a conquistar migraram do natural (petróleo, ouro, por exemplo) para o mítico/intelectual (a informação, as pesquisas, o conhecimento). Outra razão, sempre de acordo com Yuval, é que os países, ao se tornarem globalizados, também se tornaram interdependentes e ninguém, efetivamente, lucraria com uma guerra de proporções planetárias – porque todos sairiam perdendo. Além do mais, o arsenal nuclear, cujo poder destrutivo faria desaparecer o planeta, construiu uma “pax atômica”, que refreia qualquer anseio de dominação por meio de armas.

Respondamos agora à questão: por que Sapiens – uma breve história da humanidade se tornou um best-seller, apesar do assunto pretensamente árido? Yuval Harari escreve com absoluto domínio textual. Um trabalho dissertativo, mesmo aqueles mais palatáveis ao gosto do grande público, não deixa de ter alguma aridez. Mas este é um trabalho que se enquadra bem nesses tempos do pós-moderno: é um texto de características híbridas, pois combina o rigor da exposição e da argumentação tipicamente dissertativas com sarcasmos, piadas, brincadeiras semânticas tipicamente narrativas. Vejamos algumas passagens.

A presença do sarcasmo se evidencia:

“Contudo, o profeta Mani não fez qualquer tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito dividida pela massa de seu corpo.” (página 265)

Um tipo de deslocamento semântico, como os usados pelo nosso Machado de Assis pode soar estranho num trabalho dissertativo:

“Truman decidiu usar a nova bomba. Duas semanas e duas bombas atômicas depois, o Japão se rendeu incondicionalmente, e a guerra chegou ao fim.” (página 272)

Por deslocamento semântico entende-se essa aproximação, dentro de uma mesma frase, de duas categorias de palavras diferentes, numa mesma função sintática “semanas” e “bombas atômicas”, uma circunstância e um substantivo, onde seria de se esperar uma circunstância (de tempo) seguida de outra circunstância (de tempo).

Uma piada, insolitamente, vai aparecer lá na página 294, incluída por Harari:

“Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterrissaram na superfície da Lua. Nos meses que antecederam sua expedição, os astronautas da Apollo 11 treinaram em um deserto remoto similar ao da Lua, no oeste dos Estados Unidos. A área é o lar de várias comunidades indígenas, e existe uma história – ou lenda – descrevendo um encontro entre os astronautas e um dos habitantes locais.
Um dia, enquanto estavam treinando, os astronautas se depararam com um velho índio. O homem lhes perguntou o que eles estavam fazendo. Eles responderam que eram parte de uma expedição de pesquisa que em breve viajaria para explorar a Lua. Quando o velho escutou isso, ficou em silêncio por alguns instantes e então perguntou aos astronautas se eles poderiam lhe fazer um favor.
— O que você quer? –, eles perguntaram.
— Bem – disse o velho –, as pessoas da minha tribo acreditam que a Lua é habitada por espíritos sagrados. Eu estava pensando se vocês poderiam transmitir a eles uma mensagem importante do meu povo.
— Qual mensagem? – perguntaram os astronautas.
O homem proferiu algo em sua língua tribal e então pediu que os astronautas repetissem de novo e de novo, até memorizarem corretamente.
— O que significa? – os astronautas perguntaram.
— Ah, não posso lhes dizer. É um segredo que só a nossa tribo e os espíritos da Lua podem saber.
Quando voltaram à base, os astronautas procuraram e procuraram até que encontraram alguém que sabia falar a língua tribal e lhe pediram para traduzir a mensagem secreta. Quando repetiram o que haviam memorizado, o tradutor começou a gargalhar. Quando se acalmou, os astronautas perguntaram o que significava. O homem explicou que a frase que eles haviam memorizado com tanto cuidado queria dizer: “Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras”.

As 462 páginas deste livro englobam, ainda, um índice remissivo, notas relativas a vários trechos dos capítulos e uma sólida bibliografia acadêmica.

Se você é um fiel de qualquer religião, pode se sentir incomodado com o tratamento que Yuval Noah Harari dá às religiões de um modo geral, à católica de um modo restrito, caracterizando-as como mera imaginação coletiva. Lembre-se, entretanto, por mais que Sapiens – uma breve história da humanidade seja um texto leve, gostoso de ler, é um trabalho acadêmico. Ciência e religião são como óleo e água – não costumam se misturar. Dê o desconto devido; se lhe aprouver, relaxe e aproveite. Esse livro muda a maneira ingênua como vemos o mundo e os seres de carbono que vemos neles, nossos pares.

HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. Editora L&PM. Rio Grande do Sul, RS: 2012


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Resenha nº 68 - As Memórias do Livro, de Geraldine Brooks

Geraldine Brooks é australiana, nascida em sua capital, Sidney, em 14/09/1955. Após ter concluído seus estudos superiores, trabalhou como repórter e em 1982 foi bolsista do programa de mestrado em jornalismo da Columbia University, nos Estados Unidos. Não retornou mais para a Austrália e começou a trabalhar para o The Wall Street Journal, pelo qual cobriu conflitos e crises do Oriente Médio, na África e nos Bálcãs (região que engloba a Albânia, a Bósnia, a Herzegovina, Bulgária, Grécia, República da Macedônia, Montenegro e Sérvia, Kosovo, porção da Turquia, Croácia, Romênia, Eslovênia e Áustria).

Em 1994, publicou seu livro de estreia, Parts of Desire, imediatamente traduzido para 17 línguas. Em 2006, veio a consagração com March, premiado com o Pulitzer de ficção. Atualmente, Geraldine Brooks vive com a família entre Martha’s Vineyard, Massachussetts e Sydney.

Sucesso de público e crítica, Geraldine Brooks conseguiu elaborar um romance viciante e original em sua estrutura. É uma história complexa, envolvendo a Hagadá de Sarajevo – o livro do título – cujas “memórias” serão objeto de poderosa imaginação criativa da autora. É uma obra de suspense, com uma trama repleta de variações e acréscimos. Podemos dizer que o livro em questão se filia à corrente inaugurada por Umberto Eco, a do suspense erudito (ou, como os americanos preferem chamá-lo, smart thriller). Altas doses de teorias de conspiração, com generosas quantidades de informações cultas ou técnicas a respeito do assunto tratado, normalmente elegendo fatos ocorridos na Idade Média. Outro exemplo de sucesso é O Código Da Vinci, do americano Dan Brown.

As Memórias do Livro é dividido em seções: Hanna – Sarajevo, primavera de 1996; A Asa de um inseto – Sarajevo, 1940; Hanna – Viena, primavera de 1996; Penas e uma rosa – Viena, 1894; Hanna – Viena, primavera de 1996; Manchas de Vinho – Veneza, 1609; Hanna – Boston, primavera de 1996; Água salgada – Tarragona, 1492; Hanna – Londres, primavera de 1996; Um pêlo branco – Sevilha, 1480; Hanna – Sarajevo, primavera de 1996; Lola – Jerusalém, 2002 e Hanna – Terra de Arnhem, Gunumeleng, 2002. Arremata o romance um útil posfácio da autora, no qual ela explica o que é real e o que é ficção.

Pela listagem das seções constitutivas da obra o leitor já perceberá ser este um livro com enredo não linear (recua, avança no tempo). Preferi chamá-los de seções ao invés de capítulos pois, dentro da minha concepção, é isso mesmo o que são: seções. E aqui talvez seja interessante explicar ao leitor não acostumado com conceitos literários a organização estrutural do que se conhece por romance, em sentido restrito. Romance é a obra literária, narrativa, com dois ou mais núcleos dramáticos; enquanto o conto tem apenas um núcleo desse tipo, o romance tem pelo menos dois.

Por exemplo, o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Esse livro nos conta o drama de Bentinho e Capitu, mas nos dá a conhecer também o drama do amigo Escobar e do filho do casal. Apresenta-nos um pouco da vida de Capitu, como Bentinho foi criado, suas relações com a mãe, etc.

As Memórias do Livro é, portanto, um romance. Mas, ao invés de capítulos propriamente ditos, ousaria dizer que há vários “romances” dentro deste romance, várias histórias autônomas que, em nenhum momento, se cruzam, pois se dão em lugares e em épocas diferentes. O único fio que as enlaça é a presença da Hagadá. Dessa forma, o livro, por meio dos vários indícios, tem memórias. Mais ou menos como se tivéssemos comprado um livro em um sebo e no qual houvesse várias anotações anônimas e quiséssemos pesquisar quem as teria escrito ali e como teriam sido as vidas tocadas pelo livro.

Hanna Heath é uma restauradora de livros extremamente competente. Ph.D., é requisitada para trabalhar em diversos lugares do mundo. Um dia, ela recebe um convite para trabalhar e dá de cara com a famosa Hagadá de Sarajevo. Hagadá é uma “narrativa da libertação e da saída dos judeus do antigo Egito, entremeada de ensinamentos rabínicos, salmos de louvor, canções e trechos bíblicos, conforme compilada da tradição oral, e que é recitada na primeira noite da Páscoa judaica”.

Há, naturalmente, vários exemplares da Hagadá nas mãos dos judeus; esta, entretanto, tem uma particularidade: ela tem iluminuras. Iluminuras eram gravuras coloridas, feitas à mão, que adornam as margens dos textos, usualmente textos religiosos da Idade Média. É conceito corrente que os judeus antigos não toleravam artes figurativas, isto é, representações da figura humana.

Hanna aceita participar do projeto de conservação da obra e, durante o trabalho, verifica haver no livro várias “pistas”, indícios não pesquisados. Elabora perguntas e faz o possível para respondê-las. Por que há uma mancha de sangue numa página? Por que, para um livro tão valioso e trabalhado, uma capa tão mal-acabada? Onde foi parar o fecho, cujas endentações indicam, com segurança, ter existido? Qual seria a importância da asa de borboleta encontrada no livro? Há uma mancha de água salgada numa das páginas por quê? Que significado um pêlo branco esquecido no livro poderia ter? Por que aquele exemplar da Hagadá tem iluminuras, se os judeus antigos não as aceitavam? E, finalmente, por que o censor oficial da Inquisição – portanto, uma autoridade católica – salvou o livro judaico de ser queimado, aprovando-o sob sua assinatura? Perguntas demais, não, caro leitor?

Questionamentos são para serem respondidos. Em cada uma das seções do trabalho de Brooks haverá uma história coerente para cada um desses fatos. Hanna não terá acesso a elas, mas nós, leitores privilegiados, acompanharemos cada uma das vivências, envolvendo dramas de pessoas que já viveram, dentro de um contexto cultural e politicamente muito complexo. Todas as perguntas levantadas serão respondidas.

Só com esse enredo, se bem manipulado (e, certamente, é), já teríamos um bom trabalho. Não obstante, Hanna vive um terrível problema de relacionamento com a mãe, uma brilhante, arrogante e perfeccionista cirurgiã neurológica. Ela não consegue aceitar a profissão escolhida pela filha. Não reconhece sua competência. Quando estão juntas, infernizam a vida uma da outra, numa relação impossível.

Se as perguntas levantadas por Hanna vão sendo respondidas para nós, leitores, ao longo do livro, em cada uma das seções, o final absolutamente imprevisível só é revelado no apagar das luzes, e mesmo assim, comportando ainda uma reviravolta relacionada à vida da mãe de Hanna.

Eis alguns trechos, para degustação.

“Mas ninguém sabia por que essa Hagadá era ilustrada com numerosas pinturas em miniatura, em uma época em que a maioria dos judeus considerava a arte figurativa uma violação dos mandamentos. Era improvável que um judeu tivesse condições de aprender as habilidosas técnicas de pintura evidenciadas no livro. O estilo não era diferente do dos iluminadores cristãos. Contudo, a maioria das miniaturas ilustrava cenas bíblicas conforme interpretação no Midrashe, ou a exegese bíblica judaica.” (página 28)

“A luz reluzia sobre o aço brilhante, me fazendo pensar em minha mãe. Se ela fosse hesitante daquele jeito, o paciente sangraria até morrer, na mesa. Mas minha mãe, a primeira mulher a se tornar chefe do departamento de neurocirurgia na história da Austrália, não conhecia a dúvida íntima. Nunca duvidou de seu direito de burlar todas as convenções de sua era, tendo uma filha mas não sentindo a necessidade de marido, ou sequer citando à filha um pai. Até hoje, eu não tenho ideia de quem foi ele. Uma homem que ela amava? Alguém que usou? A segunda opção era mais provável. Ela achava que poderia me criar à imagem dela. Que piada. ” (página 30)

“Hirschfeldt soltou um resmungo quase inaudível de irritação. Por que David estaria lá na clínica para aborrecê-lo? Ele esperava que seu irmão tivesse o bom senso de não entrar na sala separada. Herr Mittl era um sujeito nervoso, muito decente, que pagara um alto preço por sua momentânea indiscrição, em sua já distante juventude. ” (página 124)

“— Sou Clarissa Montague-Morgan. — Outra Alguma Coisa hífen Alguma Coisa, embora não tivesse o estilo clássico, e seu leve odor era de substâncias de laboratório, e não do laboratório em si. — Sinto muitíssimo por não convidá-la a entrar — ela disse, como se eu a estivesse visitando para tomar chá. — Mas há protocolos rígidos aqui que protegem a rede de evidências e assim por diante. É muito difícil realmente obter permissão para um visitante que seja funcionário, ainda mais se a pessoa não trabalha na área legal. ” (página 280)

Os personagens principais não são de constituição simples, isto é, eles têm seus próprios demônios, como ficou evidente no trecho acima, em que Hanna avalia sua mãe. Sua animosidade contra a figura materna é patente.

As Memórias do Livro é extremamente recomendável. Esta foi uma releitura, após quase dois anos da primeira vez. É incrível como, numa releitura algum tempo depois, descobrimos coisas não percebidas no primeiro contato. Essa leitura inicial, não por acaso, é chamada de leitura de exploração. Por ela, tomamos contato com o estilo do autor, com os personagens, com a história. Livres desse contato incipiente, somos liberados para perceber outras nuances literárias.

Leia-o, se puder, amigo leitor. Estão garantidas boas horas de divertimento e aprendizado. Aprendizado, sim, pois Geraldine Brooks nos oferece várias informações sobre a vida e cultura judaicas, sobre o valor dos livros, e algumas pitadas sobre o cenário da Segunda Guerra Mundial para uma parte da Europa.

BROOKS, Geraldine. As memórias do livro. Ediouro. Rio de Janeiro, RJ: 2008



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Resenha nº 67 - Ventania, de Alcione Araújo


Resultado de imagem para livro Ventania Alcione Araujo
Nascido em Januária, MG, em 09/11/1945, Alcione Araujo foi mais conhecido como dramaturgo. Produziu, entre tantas peças,  Doce Deleite (2009), A Caravana da Ilusão (1982), Há Vagas Para Moças de Fino Trato (1974). Roteirizou os seguintes filmes: Nunca Fomos Tão Felizes (1984), Vagas Para Moças de Fino Trato (1993) e adaptou o roteiro para o filme Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1988). Publicou dois livros de crônicas (Alcione era cronista do jornal Estado de Minas), Urgente É A Vida, de 2004 – Prêmio Jabuti, e Escritos Na Água, de 2006. Autor de quatro romances: Nem Mesmo Todo O Oceano (1998), Pássaros de Voo Curto (2006), Cala A Boca E Me Beija (2010) e Ventania (2011). Faleceu em um hotel, em Belo Horizonte, de parada cardíaca aos 67 anos, em 15/11/2012.

Ventania é o nome de uma cidade do interior, impossível de se localizar no mapa geográfico que as escolas compulsam, mas tem uma história interessante. Antigamente, era uma próspera cidadezinha com a vida organizada em torno de uma mina de ouro; foi-se o ouro e sobrou a cidadezinha, não tão próspera como antes. Na verdade, uma comunidade decadente, com apenas uma escola, uma biblioteca pública (que quase ninguém frequenta), uma estação ferroviária com chefe e tudo, mas cujos trilhos já não têm serventia. Aí vivem os principais personagens desse delicioso romance.

Zejosé é irmão de Zé-elias, filho de Dasdores, nascida numa sexta-feira da paixão, sobrinho de Dasalmas, nascida no dia de Finados, e Dasflores, na primavera. Zejosé é neto de Canuto, meteorologista da cidade. O chefe da estação é o narrador, que escreve em primeira pessoa e atende pelo nome de Philadelpho (Delfos, para os habitantes ventanenses).

O texto é escrito numa linguagem coloquial, envolvente, já desde o primeiro parágrafo:

“Lá vem Zejosé de novo! Terceira vez na semana. Banho tomado, cabelo penteado, camisa limpa, nem parece o moleque de sempre – a não ser pela bicicleta. Alguma coisa ele fareja nessa praça! Repete tudo que fez nas outras vezes: costeia a biblioteca como quem ronda, espiando pelas janelas. Na esquina, vigia a rua, a praça, e volta no mesmo passo! Procura o quê, se nunca entrou lá? Se viesse pegar livro pra mãe, não rodeava nem vinha três vezes. Pra ela não é; desde que ficou meio sistemática, não pega mais livro! É muito estranho.” (página 7)

A vidinha pacata e conservadora de Ventania foi agitada por um acidente, nos tempos em que a linha de trem ainda funcionava. Zé-elias era pequeno e brincava de colocar pedras sobre os trilhos; ele não percebia, mas antes de uma curva, o comboio se aproximava. Delfos rapidamente percebe tudo: se não fizer nada, o trem vai descarrilhar, podendo matar muita gente. Joga-se sobre os trilhos e com uma das pernas, desobstrui a passagem. Não fora rápido o suficiente: tem a perna decepada pela locomotiva, não consegue evitar a morte do menino, mas salva os passageiros.

Tratado como herói por um tempo, logo os fatos são esquecidos. Resta apenas Delfos com sua muleta. E assim, quando a mina é desativada, Delfos torna-se chefe concursado de uma estação obsoleta, aleijado de uma perna (o politicamente correto é "portador de necessidades físicas especiais"). Anda de muleta. Nutre por Zejosé, irmão do falecido Zé-elias, certo ressentimento, pois, sendo irmão do menino causador do acidente, relembra Delfos de sua condição toda vez que vê Zejosé.

Seus problemas não são somente esses; preocupado, ele constata a aproximação de Zejosé, menino de 13 anos, da biblioteca – e mais do que da biblioteca – da bibliotecária propriamente dita. Embora fosse um menino que não gostava de estudar, sempre indo muito mal na escola, ele se aproxima dos livros, a pedido da mãe. E os ciúmes de Delfos são açoitados quando ele percebe que o garoto é muito bem recebido por Lorena Krull, responsável pela Biblioteca Municipal de Ventania. Dependendo dos humores “délficos”, ele a chamará de Lorena, ou Pantera Loura. Pantera Loura é reservado para os momentos em que Delfos fica bravo com ela.

Esta pitoresca comunidade decadente tem dois times de futebol, o Mina e o Tarrafa. E, mais sofisticado que isso, tem até mesmo um inesperado Partido Comunista, contando com três militantes ativos: Isauro, Jedeão e Carneiro:

“Na reunião do Partido, Isauro de pilequinho, põe o outro tema em discussão:
— Camaradas, outra questão exige deliberação. O senador da nossa região, cujo nome o secretário Carneiro não pronuncia, e eu o acompanho nesta birra, virá breve à cidade.
— Um esclarecimento, camarada presidente. Não se trata de birra pessoal. É dever do revolucionário lutar, com todas as armas, contra a direita reacionária, autoritária e corrupta. Uma forma de luta é o silêncio, não lhe dar publicidade, esconder seus nomes, apagar sua memória. Mas, como somos dialéticos, quando se trata de denúncia, nosso dever é trombetear os fatos, expor nomes, dar publicidade e revelar o passado.
— Agradeço o esperto esclarecimento do camarada Carneiro. Está em discussão a posição do diretório do Partido Comunista de Ventania sobre a presença do senador.
— Se não lhe revelamos o nome, não vamos perder tempo discutindo a obra. É conhecida pústula política, cancro social, verme humano. Sou por ato público de envergadura, com comícios, passeatas, pichações, panfletagem, agitação com a participação de operários, estudantes, camponeses e grande repercussão nacional. Quem sabe, não soltamos o grito preso na garganta, pegamos em armas e marchamos pra revolução do proletariado?
— A cerveja subiu à cabeça do secretário Carneiro! O camarada delira. Estamos em Ventania, e todos os nossos militantes estão nesta reunião. Também sou por um ato público contra o senador: pichaçõezinhas de muro, parede e pedra, e um panfletozinho.
— Nem um belo e vigoroso artigo no Vitória? – indaga Carneiro. — Pincei cada citação!
— Nunca! Vivo do meu jornal, que depende da direita reacionária, que apoia o senador. E minha vida já anda confusa demais pra eu querer encrenca.” (página 269)

Qual tom se extrai deste trecho? Note que Isauro é um comunista cujo jornal depende da "direita reacionária" para existir. Bom-humor, um sarcasmo que perpassa todo o livro. A cidade de Ventania é toda cheia de contradições, preconceitos com aparências de modernismo.

Lorena Krull é filha do Dr. Conrado Krull, descobridor da mina de ouro, moça estudada na capital, com faculdade, que teve de retornar à cidadezinha para tratar do pai, já idoso e preso a uma cadeira de rodas. Ela descobre um fim útil ao amor dos livros e resolve, sozinha, bancar a ideia de uma biblioteca até que, de modo oportunista, o senador encampa o projeto, como um meio de coletar votos de cabresto.

Apesar de o texto ser vazado em uma linguagem coloquial, há determinadas características sofisticadas na escrita de Alcione Araújo, como  por exemplo, na página 271, em que aparece uma aliteração:

“Que jaquetão bem cortado, Meia-meia! Esse tem etiqueta, tirou o chapéu-panamá – nem um fio de cabelo buliu! E ela – eita mulher bonita! -, de branco, brinco, broche e bolsa brilhando, anda com a graça da garça.”

A tempo: aliteração é a figura de estilo pela qual se repetem fonemas (sons) idênticos ou semelhantes, no início das palavras, dentro de uma mesma frase ou verso. São aliterações essas repetições do /b/ no trecho acima.

Outro efeito bem interessante do livro diz respeito à forma com a qual foi escrito. Alcione instaura um narrador-escritor, fazendo um rascunho de uma história. Com alta frequência, esse narrador faz intervenções sobre o próprio texto, corrigindo-o, anotando-o ou indicando passagens a serem cortadas. Isso é feito nas notas de pé de página:

“2.Repito o que ouvi com o papagaio de Zejosé. Devia ter lido sobre o assunto pra falar com propriedade. Mas não tenho a menor paciência pra política. Só falo porque entrou de raspão na anotação de Zejosé.” (página 99)

“1.Aproveitei a confusão e conversei com Enzo. Embora apressado, ele foi receptivo. O cine-clube tem intenções didáticas. Falamos de cinema em geral, de Casablanca, de música etc. Aprendi muita coisa.” (página 273)

Ressentimentos, mentalidade apequenada, preconceitos, amores proibidos numa localidade onde quase nada acontece, em meio de um marasmo de dar dó, a obra Ventania é um verdadeiro achado. Ao tratar as situações e personagens com sarcasmo, ele se torna uma peça de crítica social.

Lorena tem boa bagagem cultural, tem muito contato com literatura e cinema. Inicia tanto Delfos – tardiamente – quanto Zejosé no fantástico mundo da leitura. E não restam dúvidas: o ato de ler boa literatura, com dificuldade a princípio, mexe com a cabeça dos dois iniciados. E aqui vai outra peça de crítica: a leitura pode modificar a maneira como as pessoas pensam e veem e tais pessoas podem modificar uma comunidade.

Recomendo a leitura desse adorável livro, que em alguns momentos me fez lembrar, até certo ponto, a escritura de Arroz de Palma, já resenhado neste blog. As histórias são completamente diferentes, bem como suas abordagens; mas elas estão ligadas pela leveza do texto, pelo efeito de simplicidade.


ARAÚJO, Alcione. Ventania. Editora Record. Rio de Janeiro, RJ: 2011