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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Resenha nº 67 - Ventania, de Alcione Araújo


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Nascido em Januária, MG, em 09/11/1945, Alcione Araujo foi mais conhecido como dramaturgo. Produziu, entre tantas peças,  Doce Deleite (2009), A Caravana da Ilusão (1982), Há Vagas Para Moças de Fino Trato (1974). Roteirizou os seguintes filmes: Nunca Fomos Tão Felizes (1984), Vagas Para Moças de Fino Trato (1993) e adaptou o roteiro para o filme Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1988). Publicou dois livros de crônicas (Alcione era cronista do jornal Estado de Minas), Urgente É A Vida, de 2004 – Prêmio Jabuti, e Escritos Na Água, de 2006. Autor de quatro romances: Nem Mesmo Todo O Oceano (1998), Pássaros de Voo Curto (2006), Cala A Boca E Me Beija (2010) e Ventania (2011). Faleceu em um hotel, em Belo Horizonte, de parada cardíaca aos 67 anos, em 15/11/2012.

Ventania é o nome de uma cidade do interior, impossível de se localizar no mapa geográfico que as escolas compulsam, mas tem uma história interessante. Antigamente, era uma próspera cidadezinha com a vida organizada em torno de uma mina de ouro; foi-se o ouro e sobrou a cidadezinha, não tão próspera como antes. Na verdade, uma comunidade decadente, com apenas uma escola, uma biblioteca pública (que quase ninguém frequenta), uma estação ferroviária com chefe e tudo, mas cujos trilhos já não têm serventia. Aí vivem os principais personagens desse delicioso romance.

Zejosé é irmão de Zé-elias, filho de Dasdores, nascida numa sexta-feira da paixão, sobrinho de Dasalmas, nascida no dia de Finados, e Dasflores, na primavera. Zejosé é neto de Canuto, meteorologista da cidade. O chefe da estação é o narrador, que escreve em primeira pessoa e atende pelo nome de Philadelpho (Delfos, para os habitantes ventanenses).

O texto é escrito numa linguagem coloquial, envolvente, já desde o primeiro parágrafo:

“Lá vem Zejosé de novo! Terceira vez na semana. Banho tomado, cabelo penteado, camisa limpa, nem parece o moleque de sempre – a não ser pela bicicleta. Alguma coisa ele fareja nessa praça! Repete tudo que fez nas outras vezes: costeia a biblioteca como quem ronda, espiando pelas janelas. Na esquina, vigia a rua, a praça, e volta no mesmo passo! Procura o quê, se nunca entrou lá? Se viesse pegar livro pra mãe, não rodeava nem vinha três vezes. Pra ela não é; desde que ficou meio sistemática, não pega mais livro! É muito estranho.” (página 7)

A vidinha pacata e conservadora de Ventania foi agitada por um acidente, nos tempos em que a linha de trem ainda funcionava. Zé-elias era pequeno e brincava de colocar pedras sobre os trilhos; ele não percebia, mas antes de uma curva, o comboio se aproximava. Delfos rapidamente percebe tudo: se não fizer nada, o trem vai descarrilhar, podendo matar muita gente. Joga-se sobre os trilhos e com uma das pernas, desobstrui a passagem. Não fora rápido o suficiente: tem a perna decepada pela locomotiva, não consegue evitar a morte do menino, mas salva os passageiros.

Tratado como herói por um tempo, logo os fatos são esquecidos. Resta apenas Delfos com sua muleta. E assim, quando a mina é desativada, Delfos torna-se chefe concursado de uma estação obsoleta, aleijado de uma perna (o politicamente correto é "portador de necessidades físicas especiais"). Anda de muleta. Nutre por Zejosé, irmão do falecido Zé-elias, certo ressentimento, pois, sendo irmão do menino causador do acidente, relembra Delfos de sua condição toda vez que vê Zejosé.

Seus problemas não são somente esses; preocupado, ele constata a aproximação de Zejosé, menino de 13 anos, da biblioteca – e mais do que da biblioteca – da bibliotecária propriamente dita. Embora fosse um menino que não gostava de estudar, sempre indo muito mal na escola, ele se aproxima dos livros, a pedido da mãe. E os ciúmes de Delfos são açoitados quando ele percebe que o garoto é muito bem recebido por Lorena Krull, responsável pela Biblioteca Municipal de Ventania. Dependendo dos humores “délficos”, ele a chamará de Lorena, ou Pantera Loura. Pantera Loura é reservado para os momentos em que Delfos fica bravo com ela.

Esta pitoresca comunidade decadente tem dois times de futebol, o Mina e o Tarrafa. E, mais sofisticado que isso, tem até mesmo um inesperado Partido Comunista, contando com três militantes ativos: Isauro, Jedeão e Carneiro:

“Na reunião do Partido, Isauro de pilequinho, põe o outro tema em discussão:
— Camaradas, outra questão exige deliberação. O senador da nossa região, cujo nome o secretário Carneiro não pronuncia, e eu o acompanho nesta birra, virá breve à cidade.
— Um esclarecimento, camarada presidente. Não se trata de birra pessoal. É dever do revolucionário lutar, com todas as armas, contra a direita reacionária, autoritária e corrupta. Uma forma de luta é o silêncio, não lhe dar publicidade, esconder seus nomes, apagar sua memória. Mas, como somos dialéticos, quando se trata de denúncia, nosso dever é trombetear os fatos, expor nomes, dar publicidade e revelar o passado.
— Agradeço o esperto esclarecimento do camarada Carneiro. Está em discussão a posição do diretório do Partido Comunista de Ventania sobre a presença do senador.
— Se não lhe revelamos o nome, não vamos perder tempo discutindo a obra. É conhecida pústula política, cancro social, verme humano. Sou por ato público de envergadura, com comícios, passeatas, pichações, panfletagem, agitação com a participação de operários, estudantes, camponeses e grande repercussão nacional. Quem sabe, não soltamos o grito preso na garganta, pegamos em armas e marchamos pra revolução do proletariado?
— A cerveja subiu à cabeça do secretário Carneiro! O camarada delira. Estamos em Ventania, e todos os nossos militantes estão nesta reunião. Também sou por um ato público contra o senador: pichaçõezinhas de muro, parede e pedra, e um panfletozinho.
— Nem um belo e vigoroso artigo no Vitória? – indaga Carneiro. — Pincei cada citação!
— Nunca! Vivo do meu jornal, que depende da direita reacionária, que apoia o senador. E minha vida já anda confusa demais pra eu querer encrenca.” (página 269)

Qual tom se extrai deste trecho? Note que Isauro é um comunista cujo jornal depende da "direita reacionária" para existir. Bom-humor, um sarcasmo que perpassa todo o livro. A cidade de Ventania é toda cheia de contradições, preconceitos com aparências de modernismo.

Lorena Krull é filha do Dr. Conrado Krull, descobridor da mina de ouro, moça estudada na capital, com faculdade, que teve de retornar à cidadezinha para tratar do pai, já idoso e preso a uma cadeira de rodas. Ela descobre um fim útil ao amor dos livros e resolve, sozinha, bancar a ideia de uma biblioteca até que, de modo oportunista, o senador encampa o projeto, como um meio de coletar votos de cabresto.

Apesar de o texto ser vazado em uma linguagem coloquial, há determinadas características sofisticadas na escrita de Alcione Araújo, como  por exemplo, na página 271, em que aparece uma aliteração:

“Que jaquetão bem cortado, Meia-meia! Esse tem etiqueta, tirou o chapéu-panamá – nem um fio de cabelo buliu! E ela – eita mulher bonita! -, de branco, brinco, broche e bolsa brilhando, anda com a graça da garça.”

A tempo: aliteração é a figura de estilo pela qual se repetem fonemas (sons) idênticos ou semelhantes, no início das palavras, dentro de uma mesma frase ou verso. São aliterações essas repetições do /b/ no trecho acima.

Outro efeito bem interessante do livro diz respeito à forma com a qual foi escrito. Alcione instaura um narrador-escritor, fazendo um rascunho de uma história. Com alta frequência, esse narrador faz intervenções sobre o próprio texto, corrigindo-o, anotando-o ou indicando passagens a serem cortadas. Isso é feito nas notas de pé de página:

“2.Repito o que ouvi com o papagaio de Zejosé. Devia ter lido sobre o assunto pra falar com propriedade. Mas não tenho a menor paciência pra política. Só falo porque entrou de raspão na anotação de Zejosé.” (página 99)

“1.Aproveitei a confusão e conversei com Enzo. Embora apressado, ele foi receptivo. O cine-clube tem intenções didáticas. Falamos de cinema em geral, de Casablanca, de música etc. Aprendi muita coisa.” (página 273)

Ressentimentos, mentalidade apequenada, preconceitos, amores proibidos numa localidade onde quase nada acontece, em meio de um marasmo de dar dó, a obra Ventania é um verdadeiro achado. Ao tratar as situações e personagens com sarcasmo, ele se torna uma peça de crítica social.

Lorena tem boa bagagem cultural, tem muito contato com literatura e cinema. Inicia tanto Delfos – tardiamente – quanto Zejosé no fantástico mundo da leitura. E não restam dúvidas: o ato de ler boa literatura, com dificuldade a princípio, mexe com a cabeça dos dois iniciados. E aqui vai outra peça de crítica: a leitura pode modificar a maneira como as pessoas pensam e veem e tais pessoas podem modificar uma comunidade.

Recomendo a leitura desse adorável livro, que em alguns momentos me fez lembrar, até certo ponto, a escritura de Arroz de Palma, já resenhado neste blog. As histórias são completamente diferentes, bem como suas abordagens; mas elas estão ligadas pela leveza do texto, pelo efeito de simplicidade.


ARAÚJO, Alcione. Ventania. Editora Record. Rio de Janeiro, RJ: 2011

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