Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Resenha nº 74 - Felicidade foi-se embora?, de vários autores

Esta obra é escrita a três mãos, polifonia de três vozes sobre um mesmo tema, já indiciado pelo título: Felicidade foi-se embora? Escreveram-na Frei Betto, Leonardo Boff e Mario Sergio Cortella.

E, contrariamente ao que sempre faço (é bom a gente se reiventar, de vez em quando),  já começo contando um causo, que é como nós, mineiríssimos, gostamos de dar a essa palavra nosso sotaque. Gostamos de causos.

Era uma quarta-feira, dia da palestra tríplice e lançamento do livro em questão. Entrada gratuita, sendo necessário apenas o comparecimento duas horas antes do horário marcado para o início do evento. Lá fui eu, na expectativa de poder fruir a reflexão desses três, os quais tanto admiro. Não contava com um incidente: mesmo chegando cedo, muitas, muitas outras pessoas chegaram mais cedo ainda; dessa forma, foi-me impossível atingir o meu intento.

Podia, é claro, ter dois sentimentos. Sabe aquela coisa de se ver o copo meio cheio ou meio vazio? Pois é. Eu podia ficar irritado contra alguma coisa indefinida, deixar o sentimento de frustração tomar conta de mim, ou podia – estoicamente – deixar-me ficar contente, pois aquela enorme fila de pessoas comuns à minha frente significava exatamente isso: pessoas comuns, gente como a gente, interessada em algo mais reflexivo, mais profundo, mais filosófico. Optei pelo copo meio cheio.

“Frei Betto – diz-nos a orelha do livro – é frade dominicano e escritor. Estudou Jornalismo, Filosofia, Antropologia e Teologia. Possui 60 títulos publicados, muitos deles traduzidos do exterior.

O reconhecimento de seu talento literário o fez merecer os prêmios Jabuti (1982); da Associação Paulista de Críticos de Arte (1998) – “Melhor Obra Infantojuvenil” com o livro A noite em que Jesus nasceu, editado pela Vozes; e o Prêmio Alba de Literatura (2009). Entre suas obras literárias se destacam Sinfonia universal – A cosmovisão de Teilhard de Chardin, A arte de reinventar a vida e, em parceria com Leonardo Boff, Mística e espiritualidade, editadas pela Vozes.

Ao longo de sua trajetória, Frei Betto tem recebido vários prêmios por se destacar na luta pelos direitos humanos, com destaque para o Prêmio Intrernacional Unesco José Martí, para o qual foi indicado por unanimidade em 2012. Recebeu, em 2015, o título Doutor Honoris Causa em Filosofia da Universidade de Havana.”

 “Leonardo Boff – continua a orelha do livro – (1938) foi por mais de 20 anos professor de Teologia Sistemática no Instituto Franciscano de Petrópolis e posteriormente professor de Ética, Filosofia da Religião e de Ecologia Filosófica na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Também professor-visitante em várias universidades estrangeiras. Por muitos anos coordenou as publicações religiosas da Editora Vozes e especialmente a Obra Completa de C. G. Jung. É membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, da qual é um dos corredatores. Em 2002 foi galardoado pelo Parlamento Sueco com o Prêmio Nobel Alternativo da Paz, por associar ecologia com justiça social e espiritualidade.

É autor de quase cem livros, em sua maioria publicados pela Editora Vozes, entre os quais se destacam: Ecologia – Grito da Terra; grito dos pobres; O Tao da Libertação – Explorando a ecologia da transformação, junto com o cosmólogo Mark Hathaway; O rosto materno de Deus; A Trindade e a Sociedade. Por mais de 15 anos é colunista semanal do Jornal do Brasil.”

 “Mario Sergio Cortella, nascido em Londrina, em 05/03/1954, - seguem as informações do livro – filósofo e escritor, com mestrado e doutorado em Educação, professor-titular da PUC-SP (na qual atuou por 35 anos, 1977-2012), com docência e pesquisa na Pós-Graduação em Educação: Currículo (1997-2012) e no Departamento de Teologia e Ciências da Religião (1977-2007).

É professor-convidado da Fundação Dom Cabral (desde 1997) e ensinou no GVpec da FGV-SP (1998-2010). Foi secretário municipal de Educação de São Paulo (1991-1992), tendo antes sido assessor especial e chefe de gabinete do Prof. Paulo Freire.

Comentarista da Rádio CBN no Academia CBN (rede nacional, de segunda a sexta-feira) e Escola da Vida (capital paulista às terças e quintas-feiras). É autor de dezenas de obras de sucesso.”

Felicidade foi-se embora? é uma pequena obra sobre o tema “felicidade”. Mas dizer somente isso não basta; da cabeça maravilhosa dessas três figuras sai um livro absolutamente fascinante. Texto leve, poético muitas vezes; naturalmente, Frei Betto vai nos dar uma visão eminentemente religiosa (o termo não tem aqui a conotação de religião católica, como se pode erroneamente inferir, mas o de religiosidade), centrando a felicidade como uma experiência transcendente do ser humano.

Ele nos conta uma Parábola das sementes de felicidade, a qual vale a pena transcrever:

“Um homem muito rico, porém infeliz, vendeu todos os seus bens, disposto a comprar, a qualquer custo, a felicidade. Saiu pelo mundo afora com suas arcas repletas de barras de ouro. Nas Arábias, soube por um jovem cameleiro que, em pleno deserto, junto a um oásis, havia uma tenda sobre a qual se erguia um anúncio: “Felicidade”.

Esperançoso, o homem partiu rumo ao local indicado. Após muitos dias de viagem, acompanhado pela fila de camelos com suas arcas cheias de ouro, atingiu o oásis. De fato, lá estava a tenda da “Felicidade”. Ao entrar, deparou-se com um balcão e, do lado de dentro, uma atenciosa moça.

“É aqui que se encontra a felicidade?”, indagou. “Sim, é aqui”, confirmou a moça. “Quero comprá-la. Não importa o preço. Estou disposto a pagar por ela toda a minha fortuna”.

A moça fitou-o compassiva e disse: “Não vendemos felicidade”. O homem ficou indignado: “Como não vendem!? Posso pagar quanto pedirem!” A moça sorriu e retrucou: “Senhor, não vendemos; damos”. “Dão? De graça?” “Sim, de graça”, confirmou a balconista.

Ela se enfiou nos fundos da tenda e, pouco depois, retornou. Sobre o balcão, depositou  uma pequena embalagem, do tamanho de uma caixa de fósforos. “Toma, senhor. Pode levar. Aqui está a felicidade.”

O homem, espantado, sem entender o que sucedia, abriu a caixinha e se deparou com uma dúzia de pequenas bolinhas pretas. “O que é isso? Não compreendo”, queixou-se.

A moça tomou a caixa em mãos e apontou as bolinhas: “Esta aqui é a semente da amizade; esta, da solidariedade; esta, da fidelidade; esta, da generosidade. Se o senhor souber cultivá-las, será um homem feliz.” (páginas 20-22)

Para aqueles que acharem o texto do Frei Betto muito fluido, poderão contentar-se com o escrito por Leonardo Boff. Alertando já de início que “por mais definições que se tenham dado, elas não vão além daquilo que Aristóteles em sua Ética a Nicômaco já explanou.” Ela (a felicidade), sendo um fruto do agir bem e do viver bem, resulta de um modo de vida virtuoso.

Boff vai dar importância ao modo como nos relacionamos com Gaia – a Terra. Porque ela é, raciocina ele, a que nos dá condições de sustentação de vida. Somos seres integradas à natureza. Cita, por exemplo, os astronautas:

“Daqui de cima não há diferença entre Terra e humanidade. Elas formam uma unidade complexa, constituem uma única grande e diversa realidade”. (páginas 62)

E Leonardo Boff conclui daí:

“Se vivermos consoante ao ritmo musical da Terra, se nos afinarmos à sua melodia, se cuidarmos dela com terno afeto, como cuidamos de nossas mães, colheremos o melhor fruto, que é a felicidade.” (página 62)

O texto de Mario Sergio Cortella é talvez mais acadêmico, embora, no fundo, essa tentativa de caracterização não diga muita coisa. Cortella nos avisa que a felicidade é circunstancial; somente o alienado é feliz por toda a sua vida. E somente conseguimos nos avaliar como felizes porque fomos, alguma vez, anteriormente, infelizes:

“Felicidade não é um estado contínuo, não pode nem deve sê-lo. E nem seria possível, pois isso colocaria a pessoa próxima do estado de demência. Não se confunda felicidade com euforia. A euforia contínua é um distúrbio mental. Afinal de contas, estamos num mundo onde há atribulações, passos tortos, turbulências, problemas.” (páginas 81/82)

Este não é um livro resumível. Os três autores são talentosos ao lidar com a escrita. Provam por a + b que filosofia não tem que ser uma coisa chata, bocejante. Outra coisa boa de se constatar, com posturas analíticas tão diferentes, esses três amigos dão o exemplo de, como quer Edgar Morin, é possível ser-se diverso na unidade. Três maneiras diferentes de ver o objeto de suas análises resultam num livro coeso, polifônico, mas equilibrado e uno.

A visão de Leonardo Boff, pensei ao concluir o rascunho dessa resenha, me fez lembrar muito da filosofia contida no filme Avatar, do diretor James Cameron. Não é só um filme bem feito esteticamente, mas divulgador da ideia de que todos estamos de algum modo unidos à Gaia. Os Na’Vi são os habitantes do planeta Pandora e vivem em íntima integração com as forças da natureza. Colaboram com elas e delas tiram seu sustento e sua harmonia. O elemento perturbador dessa paz é o homo ambiciosus.  Não é demais lembrar que Jake Sully precisa morrer para a ambição humana para integrar-se à natureza de Pandora, “renascendo” para a harmonia e para o amor de Neytiri. Precisa cumprir a epopeia de uma profecia: a de que o elemento portador do mal também será o elemento restaurador das Forças Harmônicas.

Disse no começo que Felicidade foi-se embora? é uma pequena obra sobre o tema felicidade. Ledo engano! É, na verdade, uma grande obra; suas 130 páginas nos mergulham numa sensação preconceituosa (no sentido de conceito formado antes da experiência em si); os textos são gostosamente densos, vozes de bons pais para filhos, ou seja, com carinho e respeito. Que mais se pode exigir de um livro?


BETTO, Frei; BOFF, Leonardo; CORTELLA, Mario Sergio. Felicidade foi-se embora?. Editora Nobilis/Vozes. Petrópolis, RJ: 2016.