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sábado, 25 de fevereiro de 2017

Resenha nº 88 - Dresden - Terça-feira, 13 de fevereiro de 1945

Resultado de imagem para livro dresdenTítulo: Dresden – Terça-feira, 13 de fevereiro de 1945
Título Original: Dresden
Autor: Frederick Taylor
Tradutor: Vítor Paolozzi
Copyright: 2004
ISBN: 978-85-01108-7
Número de páginas: 587
Bibliografia do autor: Auf Wiedersehen, 1983; Walking Shadows, 1984; The Kinder Garden, 1990; The Peacebrokers, 1992. Não ficção: Dresden: Tuesday, 13 February 1945, 2004; The Berlin Wall: 13 August 1961; Exocising Hitler: The Occupation and Denazification of Germany, 2011; The Dowfall of Money: The Germany’s Hyprinflation and Destruction of  The Middle Class, 2013.

O ônibus da excursão, vindo de Berlim, após uma curva suave, passou em meio a prédios antigos. Seguiu a rua de acesso a uma praça ampla, Theaterplatz (Praça do Teatro), onde ao fundo está a Semperoper, ultrapassou um restaurante e pizzaria do lado direito e estacionou em frente a um prédio antigo. Nosso guia nos disse que aquela cidade alemã – Dresden – fora completamente destruída pelo fogo dos aliados no mês de fevereiro de 1945. Nós, turistas, não podíamos fazer ideia, nem aproximada, da realidade dos fatos ali acontecidos, naqueles fatídicos dias, entre 13 e 15 de fevereiro de 1945. Dresden – também conhecida pelo apelido merecido de “Florença do Elba” – erguia-se imponente em sua beleza plástica, cidade barroca, com belas fachadas dos prédios. O palácio Zwinger se destacava na paisagem, com sua área interna, intitulada “A Fonte do Banho das Ninfas”. Nada nos fazia lembrar os horrores da Segunda Guerra Mundial; as construções em arenito se apresentavam, em muitos casos, encardidas, escurecidas, e o guia nos disse que, por ser o arenito material muito poroso, a poluição se lhe entranhara. Verdade, mas não toda a verdade; vim a saber depois: pedras, blocos calcinados pelo fogo do incêndio ocasionado pelo bombardeio lhes emprestavam também a cor escura. Dresden, a bela e cultural capital da Saxônia alemã, a que fora conhecida como “Florença do Elba”, havia sido reconstruída, recuperando algumas de suas mais belas expressões arquitetônicas.

Frederick Taylor (não confundir com Frederick Winslow Taylor, pai do taylorismo) nasceu em Aylesbury, Buckinghamshire, Inglaterra. Frequentou a escola local e a Aylesbury Grammar School. Em 1967, foi para a Universidade de Oxford estudar História e Línguas Modernas (Alemão). Fez pós-graduação na Universidade de Sussex, onde obteve uma bolsa de estudos pela Volkswagen e trabalhou na Alemanha do Leste e do Oeste, pesquisando uma tese sobre a extrema-direita germânica antes de 1918. Desde então, ele trabalha como editor, tradutor de ficção e não ficção, romancista e roteirista. Ele traduziu e editou O Diário de Goebbels 1939-1941 como um dos muitos trabalhos de divulgação histórica voltados para o público.
O trecho acima, em itálico, expõe minhas primeiras impressões de Dresden, quando de uma viagem de turismo em 2014. A excursão ao leste europeu me deixou fortes impressões e, a partir daí, passei a pesquisar sobre os países componentes da região. Descobri muito: uma cultura interessante, uma história intrigante – em que se sobressaía o antigo Império Austro-Húngaro e suas tramas – e uma literatura de primeiríssima qualidade, felizmente representada por edições no Brasil.
O livro Dresden, objeto desta resenha, pertence à categoria dos calhamaços e o texto de Frederick Taylor é preciso, cheio de fatos e documentos pesquisados com rara disposição e é, também, uma narrativa fluente e sensível, na qual fica extremamente clara a condenação do autor à tragédia ocorrida ali. E – o que não é pouco – é um livro capaz de pôr um ponto final nas especulações sobre ter sido o ataque uma barbárie gratuita (barbárie o foi, como o fora também a ação alemã na guerra, mas não gratuita) contra uma cidade inocente. Produto em parte de desconhecimento sobre o que representava Dresden para o esforço de guerra alemão, além de seu aspecto cultural, em parte pela propaganda habilmente maliciosa de Goebbels – Ministro da Propaganda de Hitler.
O texto de Taylor tem trechos extremamente técnicos; expõe dados, planilhas das incursões da RAF – Royal Air Force – sobre a cidade às margens do Rio Elba; naturalmente, há um motivo para que o autor faça isso, tão minuciosamente: desfazer os enganos sobre Dresden ter sido atacada sem motivo, como se unicamente fosse uma vingança pelo ataque alemão à cidade britânica de Coventry. Opto conscientemente por fornecer alguns dados extraídos do livro Dresden, mas o que me orienta nesta resenha não são os dados estatísticos do conflito, mas a sua dimensão humana.
Dresden teve sua fundação com base num povoado de origem eslava, de nome Drezdane e começou a ser germanizada a partir do século XIII. Ao longo de sua história, sofreu outros incêndios, um deles perpetrado pelos nazistas, destruindo a sinagoga durante a famosa “Noite dos Cristais”, em 09/11/1938.
Taylor nos dá uma ideia da pujança da cidade, à página 58:
“O sutiã foi inventado em Dresden pela Fräulein Christine Hardt em 1889. (De forma ainda mais curiosa, o primeiro e último gauleiter (líder de província) da Saxônia nazista foi um fracassado fabricante de lingerie). A cidade também podia proclamar ter sido o primeiro lugar na Europa a fabricar cigarros (no começo manualmente e depois com máquinas), filtro de café, saquinho de chá, pasta de dente em tubo (“Chlorodont”) – e preservativo de látex. Ah, e tornou-se um grande centro das indústrias de máquinas fotográficas e de escrever. A clássica e portátil máquina datilográfica Erika, de Seidel & Naumann ganhou fama mundial. Carl Zeiss pode ter estabelecido suas lentes e espelhos especiais em Jena, mas, na hora de produzir câmeras para o público, foram dedos ágeis e olhos treinados de milhares de trabalhadores de Dresden que ganharam sua confiança. Muitas outras companhias ergueriam fábricas de câmeras em Dresden, não apenas Zeiss, tornando-a a mais importante indústria individual da cidade. ”
Acrescente-se a essas indústrias a fábrica de porcelana em Meissen (cidade a 25 km de Dresden), rivalizando seu produto com as marcas chinesas. Toda esta atividade industrial pouco conhecida foi adaptada ou transformada para produzir peças necessárias aos aviões e armamentos. Por exemplo, a Carl Zeiss passou a fabricar lentes para a mira das armas utilizadas pelos soldados alemães.
Na noite de 14 de novembro de 1940, a Luftwaffe – Força Aérea da Alemanha – com 515 bombardeiros, fez um ataque à cidade de Coventry, bem ao sul da Inglaterra, utilizando-se de sinais luminosos lançados por paraquedas, com o fito de marcar o alvo. Cilindros incendiários, à base de fósforo, foram jogados sobre o alvo. Quando estavam caindo, tais cilindros emitiam uma chuva de fagulhas, espalhando incêndio por todos os lados. Logo depois, vieram as bombas de alto poder explosivo. O ataque atingiu seu máximo por volta da meia-noite. Embora a destruição tenha sido intensa, “apenas” 568 civis morreram. A Luftwaffe, entretanto, tinha limitações e só podia realizar incursões por etapas, pois os aviões tinham de voltar à base, reabastecer e retomar o ataque.
Naquele momento, a Alemanha possuía uma Força Aérea muito superior à dos aliados e essa supremacia desequilibrava francamente as coisas para os alemães. São figuras importantes, do lado inglês, Winston Churchill e o mal-humorado major-brigadeiro Sir Arthur Travers Harris. Nas mãos de Harris estavam as decisões operacionais da RAF – Royal Air Force. E ele era partidário do arrasamento sistemático das cidades alemãs, como forma de lhes abater o moral.
Os fatos seguem, num crescendo trágico. O esforço britânico logo consegue produzir aviões melhores, bombardeiros de alta carga de destruição, apelidados de “pesadões” e, junto com os aliados americanos, começam a virar o jogo na cena da guerra. Entra no cenário a tal “guerra moral”, em que se procura infringir derrotas vexatórias ao lado inimigo, com o propósito de tirar o ânimo combativo dos soldados.
Dresden, bem como algumas outras localidades alemãs, ainda não havia sido alvo de qualquer tentativa de ataque sistemático. Não obstante, longe dos olhos do inimigo, o alto comando britânico já selara o destino de Dresden. Era apenas uma questão de momento certo e condições meteorológicas apropriadas. A população dresdense não podia conceber um ataque à cidade, em parte por ela estar muito distante da Inglaterra e em parte, pelo convencimento de serem um oásis em meio à guerra. Desta forma, a cidade se descuidou; as autoridades não construíram abrigos antiaéreos eficientes, não havia bateria antiaérea. Muitos ingleses e americanos haviam estudado nas universidades de Dresden, o que contribuiu para aquele bem-estar dresdense em relação ao inimigo.
Quando o ataque britânico se tornou visível, pegou uma cidade completamente desprevenida. Iniciou-se às 12h35 de 13/02/1945:
“Tudo começou em poucos minutos, com as bombas sendo jogadas entre 12h35 e 12h40. As fotos da Força Aérea dos EUA remanescentes mostram marcadores de alvo ainda em queda e bombas explodindo no perímetro sul dos pátios de manobra da Friedrichstadt. Algumas das bombas destinadas aos pátios desviaram-se a norte, caindo na vizinha fábrica Seidel & Naumann, onde no passado eram feitas máquinas de escrever, de costura e bicicletas, mas que agora se devotava à produção de armamentos. ”
Os aliados desenvolveram o ataque em cascata, isto é, aviões atacavam e não precisavam voltar à base para o reabastecimento; ao invés disso, reinvestiam sobre os alvos. O plano arquitetônico de Dresden atuou contra a cidade: a localidade era constituída por vários prédios antigos, com muita madeira seca e secular, as construções eram muito próximas umas das outras.
A segunda onda de ataque aéreo aconteceu de 1h21 a 1h45, já na noite do dia 14/02/1940. Dentro em pouco, o centro de Dresden não existia mais. Tanto na primeira onda do ataque quanto na segunda, as pessoas eram orientadas a se esconderem nos porões das construções, num sistema que se interconectava a outros, por meio de túneis e passagens estreitas. Tal orientação se revelou além de ineficiente para muitos, uma verdadeira tragédia.
As bombas incendiárias ateavam fogo em toda parte e logo os pequenos focos se juntavam e formavam uma verdadeira fornalha. O oxigênio, em temperatura mais baixa e mais perto do chão, era sugado para cima pelo calor ascendente, matando uma enorme quantidade de pessoas por asfixia, mesmo dentro dos porões. Os túneis e passagens tornaram-se impraticáveis pelo calor, pela fumaça, pelo gás carbônico gerado e pela propagação do fogo. Os depoimentos recolhidos por Frederick Taylor nos impressionam, ainda hoje – tanto tempo passado:
“No entanto, nós logo percebemos que o avanço era impossível. Ao passarmos por uma rua estreita atrás do Altmarkt – a Webergasse, eu creio –, nos vimos sugados por uma forte corrente rasteira de fogo. De repente, minha mãe parecia estar voando. Papai disse: ‘Temos que dar o fora daqui.’ Nós conseguimos chegar à Zeughausstrasse. A casa comunitária judaica estava em chamas. Nós deveríamos nos apresentar ali dois dias mais tarde para o ‘deslocamento’. Que ironia, estarmos agora diante da construção incendiada com a ordem de deportação dentro da mochila! ”
Por volta do meio-dia de 14/02/1945, um terceiro e curto ataque à já combalida Dresden aconteceu. Desta vez, perpetrado pela Força Aérea dos EUA, utilizando suas temíveis Fortalezas Voadoras B17.
“Dresden inteira era um inferno!
Na rua, as pessoas vagavam, impotentes. Vi minha tia. Ela havia se embrulhado com um cobertor molhado e, ao me ver, gritou: ‘Vá para o terraço do Elba! ’ O som da tempestade de fogo crescente engoliu suas últimas palavras. A parede de uma casa ruiu com grande estrondo, enterrando várias pessoas. Uma grossa nuvem de poeira subiu e, combinada à fumaça, tornou a visão impossível. Então uma mão me agarrou pelo pescoço e me puxou para longe dos destroços. Era o jovem piloto, que com toda a sua tranquilidade, provavelmente salvou minha vida no meio desse caos. A gente não parava de tropeçar em cadáveres...”
Em 15/02/1945, por volta das 15h45, a única construção dresdense que ficara de pé, a Frauenkirche (Igreja de Nossa Senhora) começou a ruir. Com a diferença de temperatura entre o auge do incêndio a que fora submetida e o posterior resfriamento, uma série de distorções na construção ocorreram. As traves que sustentavam o teto, encimado por um domo feito de cobre soltaram-se e a igreja implodiu.
Frederick Taylor, neste magnífico livro Dresden sobre os ataques à “Florença do Elba” arrola alguns motivos para os fatos terem se passado como se passaram. Primeiro, Dresden não era uma cidade “inocente”, como a propaganda de Goebbels fez crer; a bela cidade participava do esforço de guerra alemão, fornecendo peças para armamento. Nesse caso, os ataques, dentro da lógica bélica, não foram indevidos. Segundo, “os russos haviam iniciado mais cedo sua ofensiva rumo ao leste da Alemanha, a pedido dos aliados – nos relata Taylor – para reduzir a pressão nas forças anglo-americanas. Em resposta a esse ‘favor’, os aliados usaram seu poderio aéreo para destruir cidades alemãs aquém do front russo – incluindo Dresden – com a intenção de produzir uma recompensa que pudesse ser demonstrada de maneira prática. ”
Um terceiro motivo, não confessado, nem documentado, mas perfeitamente dedutível, os Estados Unidos queriam mostrar de maneira cabal aos comunistas russos – seus aliados de momento – o quão destrutivo poderia ser um ataque aéreo, no qual mantinham a soberania absoluta de forças. Uma prática intimidatória, portanto.
Fica extremamente difícil não pensar, após a leitura dessa volumosa obra, tão rica em detalhes, dados, depoimentos, que não tenha havido um componente de vingança por parte dos britânicos – eles não esqueceram Coventry.
Deixo a finalização desta longa resenha por conta do autor, Frederick Taylor, às páginas 475/476:
“É verdade que muito do que se pensou e falou sobre Dresden desde a sua destruição se deve em grande parte aos esforços dos propagandistas nazistas, primeiro, e comunistas, depois. Mesmo assim, tão logo a guerra acabou e nós começamos a procurar por símbolos para compreendê-la, o instinto popular corretamente identificou, e continua a identificar, o que aconteceu em 13/14 de fevereiro de 1945 como alerta de excesso. Dresden permanece como uma terrível ilustração do que seres humanos aparentemente civilizados são capazes de fazer sob circunstâncias extremas, quando todos os freios normais no comportamento humano se erodiram por anos de guerra total. O bombardeio de Dresden não foi irracional ou sem sentido – ou pelo menos não para aqueles que o ordenaram e o realizaram, que estavam profundamente imersos numa guerra que já havia custado dezenas de milhões de vidas, e ainda poderia custar outros milhões, e que não tinham como prever o futuro. Se foi errado – moralmente errado –, é uma outra questão. Quando pensamos em Dresden, nos debatemos com os limites do que é permissível, mesmo na melhor das causas.”
(...) 
“Ou, como o pintor Goya – igualmente familiarizado com o horror – expressou de maneira ainda mais econômica: ‘O sono da razão faz surgir monstros.’”
Saio dessa leitura pesada, desconfortável, mas necessária, menos ingênuo...

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Resenha nº 87 - O Xará, de Jhumpa Lahiri

Resultado de imagem para livro o xaraTítulo do Livro: O Xará
Título Original: The Namesake
Autora: Jhumpa Lahiri
Tradutor: Rafael Mantovani
Edição Exclusiva da TAG Livros/Globo
ISBN: 978-85-250-6355-7
Edição: 2ª
Copyright: 2014 by Editora Globo
Número de páginas: 342
Bibliografia da autora: Contos – Interpreter of Maladies (Intérprete dos Males) 1999; Unacostummed Earth (Numa Terra Estranha) 2008; Romances – The Namesake (O Xará) 2003; The Lowland (Aguapés) 2013; não ficção – Cooking Lessons: The long way home 2004; Improisations: Rice 2009; Reflections: Notes from a Literary Apprenticeship 2011. Prêmios: Pulitzer de 2000, por Interpreter of Maladies; finalista do Man Booker Prize, por The Lowland.

Nilanjana Sudeshna Lahiri é uma escritora nascida em Londres, em 11/07/1967, filha de família indiana (Bengali). Seus pais imigraram para os Estados Unidos quando ela contava com dois anos de idade. É costume indiano as crianças terem um darknam (um nome pelo qual são conhecidas pelos amigos, pelos familiares) e só mais tarde receberem um “nome bom” – que constará dos documentos oficiais, passaportes, etc. Desta forma, quando ela ingressou em uma creche, na cidade americana de Rhode Island, os professores acharam mais fácil designá-la pelo seu darknam Jhumpa, ao invés do complicado Nilanyana.

Lahiri formou-se na South Kingstown High School e logo depois cursou Literatura Inglesa no Barnard College, em 1989. Fez mestrado em Inglês, MFA em Escrita Criativa e Mestrado em Literatura Comparada. Participou da FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty, em 2014.

Hoje, Jhumpa Lahiri é casada, tem dois filhos; vivem em Roma, Itália, tendo escrito um livro recente em língua italiana, In Altre Parole (Itália, 2015). Esse ‘desenraizamento’ é uma característica que irá aparecer em seus trabalhos, notadamente em O Xará e Aguapés.

Recebi O Xará, de Jhumpa Lahiri, numa edição exclusiva para os assinantes da TAG Livros, muito bonita, bem revisada. Não conhecia a autora, indiana de nascimento. A autora já declara ser “devedora” do livro de Vladimir Nabokov, Nikolai Gogol. Possivelmente, o que chamou a atenção de Jhumpa sobre o escritor russo foi exatamente sua experiência identitária, isto é, Nikolai Gógol nasceu em 1809 e possuiu nacionalidade ambígua. Rússia e Ucrânia reivindicam sua procedência, pois ele nasceu na Ucrânia – território que, à época – fazia parte do Império Russo. Além do mais, Nikolai sempre escreveu no idioma russo. Essa ambivalência de origem é profundamente importante para a significação do personagem de O Xará, Gógol Ganguli.

E esta significação de que falo começa muito antes do nascimento do personagem; o pai, Ashoke, precisa fazer uma viagem de trem de Calcutá para Jamshepdur, na Índia. Ashoke é um aficionado da literatura russa: Dostoiévski, Tolstoi e, naturalmente, Nikolai Vassílievitch Gógol são seus autores lidos. Assim, durante a viagem, ele lê O Capote – um conto famoso e considerado tão importante na Rússia que o escritor Dostoiévski declarou, a certa altura, “todos nós viemos de O Capote”.

Somente a título de adiantamento – estou aproveitando a deixa e lendo O Capote e Outras Histórias, para a próxima resenha – direi que se trata de um conto de teor fantástico, tão ao gosto do folclore russo.

Retomando o fio da meada, Ashoke então, lê no trem o conto fantástico. Sofre um acidente:

“Mas a luz do lampião demorou-se ali, apenas por tempo suficiente para que Ashoke levantasse a mão, um gesto que ele achou que fosse consumir o pequeno fragmento de vida que lhe restava. Ainda segurando uma única página de O Capote, amassada com força em seu punho, e quando levantou a mão, o maço de papel caiu de seus dedos. “Espera! ”, ele ouviu uma voz gritar. “O cara perto daquele livro se mexeu. Eu vi. ” (página 27)

Ashoke foi então levado, muito machucado, ao hospital. O Capote havia lhe salvado a vida. O fascínio sentido por ele, em relação à literatura russa, só aumentou, depois do acidente. E aquele homem ficou sequelado: ao andar, puxava de uma perna.

Seu filho nasceu e, pelo costume bengali, devia receber um darknam, uma espécie de “nome de casa”, a ser usado somente pelos parentes e amigos; tempos depois, a criança deveria receber o “nome bom”, pelo qual seria registrada oficialmente e para o mundo externo, seria sua identificação. A honraria caberia à avó de Ashima, esposa de Ashoke. Como o casal já reside nos Estados Unidos e a veneranda senhora envia um nome de menina e outro, de menino por carta, o atraso no recebimento da correspondência começa a inquietar o pai. O menino precisa de um nome.

Resolve ele mesmo pensar em um, premido pela necessidade. Lembra-se da obra de Nikolai Gógol, que lhe havia salvado a vida uma vez e opta por dar esse nome ao filho: Gógol, ajuntando-lhe o sobrenome de família, Ganguli. Logo, o pequeno passa a ser conhecido por Gógol Ganguli.

Problemas começam a acontecer, por diferenças culturais e notariais: em seu novo país, os Estados Unidos, não existe essa possibilidade de se considerar o nome de uma criança e deixá-la sem um nome oficial. Então, aquele que deveria ser apenas um darknam torna-se um nome oficial, um “nome bom”.

Gógol Ganguli cresce com uma crise de identidade que só aumenta: é um descendente de indianos bengalis, que fazem questão absoluta de manter suas tradições vivas, mas é um americano influenciado pela filosofia do “american way of life”. Seu nome não é exatamente algo que o identifique, pois além de soar estranho tanto em seu país de nascimento quanto no país de nascimento de seus pais, ainda é um sobrenome transformado em nome. Gógol odeia seu nome:

“Pois a essa altura, ele passou a odiar perguntas relacionadas a seu nome, odeia ter que explicar o tempo todo. Odeia ter que dizer às pessoas que não significa nada “em indiano”. Odeia ter que usar um crachá preso ao suéter no dia das Nações Unidas na escola. Odeia inclusive assinar seu nome embaixo de seus desenhos na aula de artes. Odeia que seu nome seja tanto absurdo quanto desconhecido, que não tenha nada a ver com quem ele é, que não seja nem indiano nem americano, mas justamente russo. ” (página 93)

A questão central da identidade, simbolizada aqui pelo nome, atormenta nosso personagem durante muito tempo. Toma a decisão de mudar de uma vez por todas aquele nome esdrúxulo e procura os meios legais para a alteração desejada. Vai se chamar Nikhil. Mas, pelo menos de início, os problemas não são minorados:

“Só há uma complicação: ele não se sente Nikhil. Ainda não. Parte do problema é que as pessoas que agora o conhecem como Nikhil não fazem ideia de que antigamente ele era Gógol. Elas o conhecem apenas no presente, nada do passado. Mas após dezoito anos de Gógol, dois meses de Nikhil parecem algo desprezível, insignificante. Às vezes ele se sente como se tivesse escolhido a si mesmo para o elenco de uma peça, fazendo o papel de gêmeos indistinguíveis a olho nu, mas fundamentalmente diferentes. ” (página 128)

O tema central, o do não pertencimento a um determinado lugar, a uma determinada cultura, aos quais a pessoa deverá se adaptar é contundente. Muitos imigrantes jamais se acostumam inteiramente aos novos valores. Será uma questão que permeará, com esmagadora frequência, os imigrantes da Síria para os países europeus. Choque cultural, de concepções sobre a vida, usos, costumes. Muitas vezes, esses imigrantes se aferram à suas próprias tradições como meio de não perderem a própria identidade. Tornam-se grupos fechados, dentro de uma cultura “externa” que, na maioria dos casos, não os acolhe exatamente pelo efeito de isolamento.

Perpassa o texto um sentimento nostálgico, mais evidente (talvez por ser claramente dito, ao invés de mostrado), no trecho seguinte:

“E, mesmo assim, esses eventos formaram Gógol, moldaram-no, determinaram que ele é. Eram coisas para as quais era impossível se preparar, mas que faziam alguém passar uma vida inteira relembrando, tentando aceitar, interpretar, compreender. Coisas que nunca deveriam ter acontecido, que pareciam descabidas, eram essas que prevaleciam, que duravam, no fim das contas. ” (páginas 332/333)

Como subtema, a solidão do indivíduo entre seus iguais, como bem nos lembra Carlos Drummond de Andrade em um de seus poemas: “Ó solidão do boi no campo, /Ó solidão do homem na rua. ” Não se identificando com o jeito americano de ser, nem com o jeito indiano de ser, Gógol Ganguli é um homem marcado pela solidão, pelo relacionamento difícil com o outro.

E entre todos os personagens deste excelente livro (finalista do prestigioso prêmio Man Booker Prize 2013 e do National Book Award do mesmo ano), quem mais sente com clareza esse problema do “solitário andar por entre as gentes” é a mãe de Gógol/Nikhil, Ashima:

“Para Ashima, migrar para os subúrbios parece um gesto mais drástico, um transtorno maior do que tinha sido a mudança de Calcutá para Cambridge. Queria que Ashoke tivesse aceitado o cargo na Northeastern, para que eles pudessem ter ficado na cidade grande. Espanta-se com o fato de que nessa cidade universitária não existam calçadas, semáforos, transporte público, nenhuma loja a quilômetros de distância. Ela não tem interesse em aprender a dirigir o novo Toyota Corolla que agora precisam ter. Embora não esteja mais grávida, continua, às vezes, a misturar Rice Krispies, amendoins e cebolas numa tigela. Pois Ashima está começando a se dar conta de que ser estrangeira é uma espécie de gravidez eterna – uma espera perpétua, um fardo constante, um sentimento contínuo de indisposição. É uma responsabilidade ininterrupta, um parêntese no que antes tinha sido a vida normal, apenas para descobrir que a vida anterior desapareceu, suplantada por algo mais complicado e exaustivo. Ashima acredita que, assim como a gravidez, ser estrangeira é algo que desperta a mesma curiosidade em estranhos, a mesma combinação de pena e respeito. ” (páginas 64/65)

O Xará é escrito em tempo presente, em seu uso mais conhecido como “presente histórico”, que consiste em se utilizarem verbos no presente do indicativo para abordar fatos, acontecimentos ocorridos no passado. O efeito? Traz para perto de nós, leitores, as sensações e eventos já acontecidos, atualiza a narração.

A importância do nome é abordada nas páginas 335:

“Sem pessoas no mundo que o chamem de Gógol, por mais que ele próprio viva, Gógol Ganduli vai, de uma vez por todas, desaparecer dos lábios dos entes queridos e, assim, deixar de existir. No entanto, a ideia dessa extinção final não lhe proporciona sensação de vitória ou consolo. Não proporciona consolo algum. ”


Sentimento igualmente enunciado pelo herói Aquiles, diante de sua mãe Tétis, ao justificar sua participação na Guerra de Troia, desequilibrando as ações para o lado dos gregos, mesmo que houvesse uma profecia de ele morrer na empreitada: deseja que o seu nome passe à posteridade. Não deseja ser esquecido e, em se arriscando,  futuras gerações pronunciarão o nome Aquiles.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Resenha nº 86 - Medo Líquido, de Zygmunt Bauman

Resultado de imagem para livro medo líquidoTítulo: Medo Líquido
Título Original: Liquid Fear
Autor: Zygmunt Bauman
Tradutor: Carlos Alberto Medeiros
Editora: Zahar
Edição: s/ed.
Gênero Textual: Dissertação Expositiva
Copyright: 2006
ISBN: 978-85-378-0048-5
Bibliografia do autor: Amor Líquido; Aprendendo A Pensar com A Sociologia; A Arte da Vida; Comunidade; Confiança e Medo na Cidade; Em Busca da Política; Europa; Globalização: As Consequências Humanas; Identidade; O Mal-estar na Pós-Modernidade; Medo Líquido; Modernidade e Ambivalência; Modernidade e Holocausto; Modernidade Líquida; A Sociedade Individualizada; Tempos Líquidos; Vida para Consumo; Vidas Desperdiçadas (todos os volumes pela editora Zahar).

Zygmunt Bauman, sociólogo, nasceu em Poznaή, Polônia, em 19/11/1925 e faleceu em Leeds, Inglaterra, em 09/01/2017. Nascido em uma família de judeus não praticantes, ele e seus parentes foram para a União Soviética após a invasão e anexação da Polônia por forças alemãs e soviéticas do Tratado Germano-Soviético, fato acontecido em 1939. Entre 1940 e 1950, Bauman foi comunista convicto, atuando como instrutor político.

O sociólogo recebeu forte influência das ideias de Antonio Gramsci e Georg Simmel e se transformou, progressivamente, num crítico ao governo comunista da Polônia. Começou a trabalhar com outros acadêmicos da Universidade de Varsóvia, dentro de uma proposta humanista do marxismo. Não obstante, ele sempre se declarou socialista, apregoando mesmo, em seus últimos anos de vida, que, mais do que nunca, o socialismo é necessário ao mundo.

Para Bauman, “as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser mero acúmulo de experiências” (expresso em Amor Líquido) e “a insegurança seria parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno” (percepção em Medo Líquido).

Um resumo deste Medo Líquido não é tarefa fácil, por alguns motivos: o pensamento do professor Bauman é muito abrangente, extremamente analítico e sua argumentação é minuciosa e poderosa. Ele sempre se recusou a fornecer respostas simples para questões tão complexas quanto as que ele aventa em qualquer de seus livros. Portanto, leitor, já sei que você, ao fim desta postagem, estará insatisfeito por eu não ter fornecido uma ideia mais ampla da obra em questão, se for daqueles que, como eu, está tomando contato mais sistematizado com esse pensador pela primeira vez; ou então, num segundo caso, já o conhece, possivelmente de maneira profunda, e por isso mesmo estará gabaritado a julgar minha superficialidade ao resumir-lhe Medo Líquido. Trazendo uma pitada de sarcasmo do velho Machado de Assis para esta contextualização, dir-te-ei, leitor amigo, que “a obra em si mesma (a do Zygmunt, não me interprete mal) é tudo: se te agradar (o resumo), fino leitor, pago-me da tarefa (de tentar o resumo); se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”

Fundamental para toda a obra deste absolutamente fantástico pensador é o seu conceito de liquidez: mundo líquido, medo líquido, amor líquido. A liquidez é a incapacidade de algo tomar a forma fixa, duradoura. Uma sociedade líquida, portanto, é uma sociedade que perdeu sua capacidade de análise, de reflexão, com o fim das utopias. Bauman nos explica que a sociedade atual é desregulamentada, pois o mercado é o resultado do que ditam as regras e as regras, por seu turno, são ditadas por um fulcro econômico-capitalista: a eliminação dos concorrentes e o sucesso com os consumidores. Nessa liquidez não há possibilidades de projetos de vida a longo prazo, porque tudo muda o tempo todo; a empregabilidade é momentânea; as relações amorosas não se estabilizam; o homem crê poder devastar a natureza a seu bel-prazer. Como consequência desse estado, a condição humana decai para a insegurança, para o medo (do futuro e do presente) e se instaura a angústia geral.

Nas páginas 58/59 de Medo Líquido, Bauman nos diz:
“Se a expectativa da imortalidade enfatiza a importância (instrumental) e a potencialidade da vida mortal, embora reconhecendo a iminência da morte corpórea, a desconstrução da morte, paradoxalmente, intensifica o grau de terror da morte e eleva drasticamente a potência destrutiva desta, mesmo quando aparentemente questiona sua iminência. Em vez de suprimir a consciência da inevitabilidade da morte (seu suposto efeito) e libertar a vida dessa pressão, torna mais ubíqua e importante do que nunca a presença da morte na vida.”

Outro conceito fundamental em Zygmunt Bauman é o de “globalização negativa”: é a relação perversa nos espaços por ela afetados. É isso o que o sociólogo descreve às páginas 126:
“Até aqui, nossa globalização é totalmente negativa: não restringida, suplementada ou compensada por uma contrapartida “positiva” que ainda é, na melhor das hipóteses, uma esperança distante, embora também seja, segundo alguns prognósticos, um empreendimento desesperado. Tendo tido a oportunidade de agir livremente, a globalização “negativa” especializou-se em quebrar fronteiras demasiado frágeis para aguentar a pressão e em cavar buracos numerosos, enormes e impossíveis de tampar, através das fronteiras que resistiram com sucesso às forças destinadas a rompê-las.”
Zygmunt se reporta a Adolf Eichmann, supervisor do envio em massa de judeus aos campos de concentração, notadamente ao de Auschwitz, como caracterização do terror de nossos dias: uma ameaça que, de nenhum modo, se mostra como ameaça e de iniciativa individual. É sabido que Eichmann afirmou, ao final da guerra, “daria saltos na sua sepultura de tanto rir porque, sentir que tinha cinco milhões de pessoas na sua consciência, seria para ele uma fonte de extraordinária satisfação.”

Os doutos psicanalistas, chamados a dar seu parecer no julgamento do carrasco alemão, constataram não haver problemas mentais com o acusado. Ele era “um homem com ideias muito positivas”, afiançaram alguns deles.

Eis o que constata Zygmunt Bauman, sobre Eichmann, às páginas 90:
“[Eichmann] era uma criatura corriqueira, sem graça, enfadonhamente ‘comum’: alguém com quem se cruza na rua sem se notar. Como marido, pai ou vizinho, dificilmente se destacaria na multidão. Era o indivíduo típico, mediano, das tabelas estatísticas psicológicas, assim como morais (pudemos computá-las).”
O terror mora ao lado. Ou dentro de nossa própria casa.

Duplicamos as fechaduras em nossas portas; cercamos nossas casas com muros altos; não satisfeitos, mandamos instalar cercas elétricas; ajuntamos serpentinas de segurança; codificamos alarmes eletrônicos com sensores de presença; finalmente, colocamos câmaras nos pontos estratégicos. Mesmo assim, não temos sossego, pois o mal não tem uma face característica. Foi-se o tempo em que o Diabo – essa criação providencial (sem trocadilhos, por favor!) era a personificação do mal.
“Podemos estar olhando em direções radicalmente diferentes e evitar os olhares uns dos outros, mas parecemos estar entulhados no mesmo barco sem uma bússola confiável – e sem ninguém ao leme. Embora nossas remadas estejam longe de ser coordenadas, somos marcadamente semelhantes em um único aspecto: nenhum de nós, ou quase nenhum, acredita (muito menos declara) que está perseguindo seus próprios interesses – defendendo privilégios já obtidos ou reivindicando uma parcela daqueles até aqui negados. Em vez disso, hoje em dia todos os lados parecem estar lutando por valores eternos, universais e absolutos. Ironicamente, nós, os habitantes da parte líquido-moderna do planeta, somos estimulados e treinados a ignorar esses valores em nossas atividades cotidianas e a ser guiados por projetos de curto  prazo e desejos de curta duração – mas mesmo então, ou talvez precisamente por isso, tendemos a sentir de modo ainda mais doloroso sua carência ou ausência quando (ou se) tentamos identificar um motivo dominante nessa cacofonia, uma forma na neblina ou uma estrada na areia movediça.” (páginas 149)
Bauman indica um dos elementos que compõem esse mosaico da globalização negativa: o neoliberalismo, surgido numa sociedade líquida, que preda concorrentes, que deixa ao mercado a gestão das próprias regras. Num planeta atravessado por redes de informação, afirma Bauman, ou as redes têm mecanismos para encontrarem seus próprios e gratos usuários ou os próprios usuários, satisfeitos, anseiam por as procurarem.

Segue o professor, agora com um trabalho de síntese, às páginas 166:
“Não existem – nem podem existir – soluções locais para problemas globalmente originados e fortalecidos. A reaproximação do poder e da política terá de ser atingida, se é que o será, no nível planetário. Como afirma acidamente Benjamin R. Barber, ‘nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas delas. Os europeus não poderão ostentar por muito tempo as suas liberdades se os povos de outras partes do mundo permanecerem carentes e humilhados’. A democracia e a liberdade não podem mais ser garantidas num só país ou mesmo num só grupo de países. Sua defesa em um mundo saturado de injustiça e habitado por bilhões de seres humanos aos quais se negou a dignidade acabará inevitavelmente corrompendo os próprios valores que pretende proteger. O futuro da democracia e da liberdade tem de ser assegurado em escala planetária – ou não o será. ”
Medo Líquido, por tudo o que se disse nesta resenha, é livro para quem aprecie o gênero dissertativo-explicativo. Não é leitura leve, mas profundamente esclarecedora. Lendo-o, entendemos porque Zygmunt Bauman é considerado uma das maiores cabeças pensantes de nossa época. Sua análise é profunda e inteligente, conjugando vários fatores na tentativa de um diagnóstico mais preciso pela via sociológica dos problemas do nosso tempo.