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sexta-feira, 31 de março de 2017

Resenha nº 90 - Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves

Resultado de imagem para livro um defeito de corTítulo Original: Um Defeito de Cor
Autora: Ana Maria Gonçalves
Editora: Record
Copyright: 2006
ISBN: 978-85-01-07175-0
Edição: 12ª edição
Origem: Brasil
Número de páginas: 947
Gênero Literário: Romance histórico
Bibliografia: Romances - Ao lado e à margem do que sentes por mim (2002) e Um defeito de cor (2006)

Ana Maria Gonçalves é mineira de Ibiá-MG, nascida em 13 de fevereiro de 1947. Sua profissão inicial era publicitária e residiu em São Paulo por treze anos. Ao viajar para a Bahia, encantou-se pela Ilha de Itaparica, onde fixou residência por cinco anos. E foi lá que essa mineira descobriu seu talento de ficcionista. Atualmente, ela reside em New Orleans, no estado americano de Louisiana.
No prólogo do livro Um Defeito de Cor ela resgata essa história e nos diz que a sua principal obra é fruto de “serendipidade”. Por essa palavra estranha, oriunda do inglês serendipty, entende-se uma descoberta afortunada, ao acaso, capaz de influenciar o rumo de uma pesquisa, de uma decisão, de um projeto. Ana nos conta que, ao mexer em alguns livros de uma livraria, os livros caíram e o único que ela conseguiu segurar foi uma obra de Jorge Amado, o Bahia de Todos Os Santos – um guia de ruas e mistérios. Tal livro lhe deu um novo rumo na vida, pois que ela estava insatisfeita com a profissão de publicitária e aquele fato fortuito lhe abria as referências de uma Bahia histórica, cheia de cultura de matriz africana – uma proposta de atividade.

Numa entrevista, Ana Maria disse que levou cinco anos para escrever seu livro, divididos entre a pura pesquisa, nove meses em que estabeleceu o texto inicial  e mais dois, para reescrever, depurar o romance – que ela afirma ter reescrito dezenove vezes, com redução de quinhentas páginas. É importante divulgar isso, principalmente para aqueles que pensam que um autor, qualquer seja, senta-se diante do computador e produz seu texto de modo quase mágico. Sabemos, os que escrevemos, isso não se dá dessa forma. Muita pesquisa, muito esforço. Ana disse também que, na fase de produção do texto em si, escrevia 30 horas seguidas. Há o incrível trabalho de lidar com a construção de mais de 480 personagens que perpassam as páginas da obra.
Um defeito de cor é um livro que tem tudo para ser considerado, em algum momento, um verdadeiro clássico da literatura brasileira do século XXI – assim como se tornou Os Tambores de São Luís, de Josué Guimarães, publicado em 1975, um dos clássicos do século XX. Herdeiro direto daqueles romanções do século XIX, construído de maneira clássica, com começo, meio e fim, esta obra de Ana Maria conta, ainda, com a organização por longos capítulos – dez ao todo, espraiando-se por novecentas e quarenta e sete páginas – divididos por subtítulos. Da mesma opinião é Millôr Fernandes, afirmando ter sido Um defeito de cor um dos melhores livros que lera.
Uma enorme quantidade de histórias evolui ao redor do fio condutor (ou plot), narrando a história de uma mulher negra, chamada Kehinde, conhecida também pelo seu “nome de branco”, Luísa. Trata-se de ninguém menos que Luísa Mahin, mãe do abolicionista, jornalista, poeta e advogado Luís Gama; esta é uma história real. Luísa nasceu na Costa Mina, África, no início do século XIX. Raptada aos oito anos de idade, é enviada para o Brasil como escrava. Essa mulher forte, de caráter profundamente independente, participa da Revolta dos Malês, pela qual os escravos muçulmanos queriam implantar no Brasil, mais precisamente na Bahia, um califado. Rapidamente, os fatos a respeito de Luísa Mahin se misturaram ao mito.
Mas falemos diretamente do romance Um defeito de cor. Por que esse título estranho? Os negros não podiam ocupar cargos públicos ou empregos, se não houvesse uma declaração oficial a lhes caracterizar um defeito de cor. Funcionava como um humilhante documento pelo qual o solicitante renegava sua condição de negro.
O romance é excepcionalmente construído. Como nos grandes romances do século XIX, em que narrativas longas forneciam um painel complexo e bastante abrangente do assunto no qual mergulhavam, o livro da mineira de Ibiá nos fornece um portentoso relato da situação do negro escravo no Brasil e – o que é melhor – contado a partir das vivências de uma escrava. Desfilam descrições e comentários sobre Salvador daquela época, com seus engenhos de cana-de-açúcar e, mais tarde, as plantações de cacau. Também há descrições da vida em São Sebastião (mais tarde, conhecido como Rio de Janeiro); ali, na paisagem carioca, os maneirismos franceses, as madames e os cavalheiros da corte são colocados em contraponto com as péssimas condições de higiene, de miséria de uma parte daquela sociedade. Descreve-se a atividade dos tigres, escravos com a função de carregarem os barris cheios de água suja e dejetos humanos para os jogarem ao mar. Sente-se o fedor das ruas menos charmosas do Rio de então.
A política também tem voz, bem como a crítica social. Aos negros se reservava o pior daquela sociedade. Eles podiam comprar sua liberdade, mediante uma carta de alforria, mas mesmo isso não lhes era garantido, pois, uma vez libertos, poderiam voltar facilmente ao regime de escravidão. Escravos não podiam ter direitos, eram simplesmente animais comprados para servirem a seu dono; logo, tudo o que possuíssem podia ser tomado. Acontecem tentativas de revolta, desumanamente sufocadas a poder de espadas e de mortes por meio de torturas terríveis. Na África, acontece a política de bastidores ora entre franceses e africanos, ora entre ingleses e nativos, com acordos nem sempre muito honestos, visando garantir o poder das partes envolvidas.
Toda a sensualidade das mulheres e homens de cor é exposta no livro. Entretanto, essa característica não é vista de um modo negativo. Não é demais nos lembrarmos de que os negros não eram cristãos, possuindo sua galeria de deuses e deusas próprios, numa cultura valorizadora das forças da natureza, daí a naturalidade com que encaram seus próprios impulsos.
Está aí outro grande ponto do livro: Ana Maria Gonçalves, ao criar seus personagens, respeita-lhes integralmente o caldo de cultura, vale dizer, a religião (ou as religiões, para ser mais justo com as várias etnias escravizadas). A galeria de divindades, com exus, eguns, egunguns, etc. é de estontear quem não esteja afeito ao assunto.
Os fenômenos mediúnicos são abundantes nos cultos descritos no livro:
“Formávamos uma roda e cantávamos para Sogbô, e uma das vodúnsis que não estavam incorporadas colocou no meio do salão uma panela de barro cheia de dendê borbulhante, de tão quente, onde outra vodúnsi começou a jogar pedaços de uma ave que não consegui distinguir qual era, pois já tinha sido cortada no quarto de sacrifícios. Logo o cheiro de carne queimada superava o do dendê, e foi então que a vodúnsi feita para Sogbô entrou no salão, rápida como o raio do seu vodum, e parou ao lado da panela. De olhos bem abertos, mas não mais que os meus, pois eu já estava imaginando o que ia acontecer, e sem nenhuma proteção, ela enfiava os braços dentro da panela e mexia o azeite, usando as mãos como colher para catar os pedaços de carne. Aquilo me causou tão má impressão que desviei os olhos quando percebi que ela ia tirar as mãos de dentro da panela, com medo de não gostar de ver o que poderia ter sobrado delas. Mas quando percebi que as pessoas continuaram a cantar e ainda com mais alegria, criei coragem. As mãos da vodúnsi estavam intactas...” (página 627)
A negra Luísa é posta, pela sinhá, como “escrava de ganho”, isto é, tem permissão por escrito para trabalhar na rua, sendo estipulada uma quantia a ser paga à sua dona:
“Na segunda-feira, por volta das seis horas da manhã, resolvi deixar a vergonha de lado e disputar os fregueses no grito, como faziam os vendedores que não tinham ponto fixo. Achei que o Terreiro de Jesus seria um bom lugar, porque por lá passava um grande número de pessoas, não apenas pretos, mas também os brancos e mulatos que trabalhavam nos escritórios e casas de comércio da região. ” (página 248)
Kehinde/Luísa não é uma escrava qualquer, pois aprende a ler com o mussurumin (muçulmano) Fatumbi, contratado para servir de preceptor à sinhazinha:
“Eu e a sinhazinha passávamos a maior parte do tempo no quarto, ela fingindo estudar e eu estudando de fato, com os livros que não estavam em uso. Um dia antes da chegada do padre Notório, pedi ao Fatumbi que escrevesse para eu copiar o Pai-Nosso e a Ave-Maria, que achei muito mais fáceis de rezar depois de ler e entender. Mostrei para a Esméria e ela disse que nunca poderia imaginar que ali, naquele monte de tracinhos que não diziam nada, pelo menos para ela, estavam orações tão bonitas. ” (página 93)
Fazem parte deste imenso painel dos acontecimentos do Brasil naquele século XIX os relatos sobre as experiências pioneiras do padre Bartolomeu de Gusmão e a Passarola (o Padre Voador, como também ficou conhecido, foi um precursor de Santos Dumont em suas pesquisas sobre o voo com um aparelho mais pesado que o ar, no caso o protótipo cognominado "Passarola"), Tiradentes, em algumas de suas visitas à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (e, posteriormente, sua execução), o contato de Luísa com o escritor Joaquim Manoel de Macedo (autor do romance A Moreninha), a renúncia de Dom Pedro I em favor de Dom Pedro II.
Em retorno ao Brasil, já velha e cega, Luísa é a narradora de sua própria história, sempre em primeira pessoa, contando em tom missivista toda a sua vida ao filho Luís Gama – filho este que desaparece, vendido pelo pai como escravo, por dívida de jogo – mesmo tendo nascido homem livre. Este fato trágico, que Luísa encara como falha sua ao confiar o filho ao pai, vai persegui-la a vida toda. Ela nunca se conforma: não desiste de procurar o filho e a cada desafio da vida sai-se com uma força e uma inteligência admiráveis.
Exerce várias profissões; como escrava de ganho, especializa-se na confecção e venda dos famosos cookies, pois tinha trabalhado em casa de ingleses; já liberta, é dona de padaria, vendedora de panos-de-costa importados da África (um pano arranjado sobre os ombros, caindo pelas costas, tendo como função distinguir o posicionamento feminino na comunidade), dona de construtora de imóveis na África.
No plano amoroso, as coisas são igualmente complicadas para nossa narradora. Relacionamentos tendo por base apenas o impulso sexual, amores reais, relativamente duradouros uns, outros menos. Apesar da batalha que foi sua vida, Luísa ainda teve muito filhos: Banjokô, Luís Gama, João, Maria Clara. Os dois primeiros, no Brasil; os dois últimos, na África. Luís Gama, como disse, foi quem se saiu melhor, apesar de ter sido vendido pelo pai e é dele que vou acrescentar mais algumas informações.
A bem da exatidão, quando dizemos que ele fora advogado, queremos dizer advogado prático ou rábula – termo usado para o autodidata que atuava como advogado sem ter o diploma correspondente.
Ele é considerado hoje como um dos expoentes do romantismo, tendo escrito os poemas que compõem o livro Trovas Burlescas e Outros Poemas, com organização da professora Lígia Ferreira. Apesar da contribuição literária importante, o filho de Luísa Mahin é pouquíssimo conhecido. É a primeira voz na literatura brasileira a se assumir como negra. Orfeu de Carapinha, talvez sua obra mais conhecida (ou menos esquecida), é francamente manifestada por um eu-lírico em primeira pessoa, que se identifica claramente como negro. E, fato absolutamente inédito, Luís Pinto Gama, após 133 anos de sua morte, recebeu o título de advogado, outorgado pela Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, pela sua atuação em favor da liberdade, igualdade e respeito. Este é um parêntese nesta resenha, que julgo importante, pois talvez não tenha a oportunidade de referir-me a este escritor, de resto, vinculado à trajetória de Um defeito de cor.
Ana Maria Gonçalves instaura uma narradora esperta, uma ótima contadora de histórias. O texto me atraiu desde o início, quando comprei o livro e o folheei, como sempre faço. Ganhou-me ainda na livraria. O texto, bastante mais longo do que se possa deduzir de suas novecentas e quarenta e sete páginas, é composto em caracteres pequenos, com margem estreita à esquerda e à direita. Não obstante, a história é extremamente envolvente: só consegui largá-lo agora, ao final da leitura, e não sem pesar.
O talento narrativo da Luísa criada pela autora me lembra daquela Xerazade (ou, se preferirem, Scherazade) de Mil e Uma Noites, sempre adiando o final da história, buscando um pretexto para enfiar mais um episódio e manter a atenção do soberano, como na estratégia textual usada abaixo, na fala da narradora:
“Aliás, já está quase na hora de começar a falar disso e encerrar a penúltima parte desta história, mas antes preciso contar algumas coisas e mais uma vez vou tentar ser breve, como tenho prometido desde o início, sem cumprir. ” (página 873)
Ana Maria põe na boca de sua narradora uma digressão contundente sobre a condição do negro, que se cola à voz da própria autora, ela também uma negra:
“Eu achava que era só no Brasil que os pretos tinham que pedir dispensa do defeito de cor para serem padres, mas vi que não, que em África também era assim. Aliás, em África, defeituosos deviam ser os brancos, já que aquela era nossa terra e éramos em maior número. O que pensei naquela hora, mas não disse, foi que me sentia muito mais gente, muito mais perfeita e vencedora que o padre. Não tenho defeito algum e, talvez para mim, ser preta foi e é uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto para provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e compensado com tanto êxito. Eu me sinto muito mais orgulhosa de ter nascido Kehinde do que sentiria se tivesse nascido padre Clement, um bom homem, com certeza, mas que se submetia à necessidade de agradar aos brasileiros ricos de Lagos, Porto Novo e Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas cidades. ” (página 893)
Para terminar, como cheguei a esse Um defeito de cor? Ou, reproduzindo a fala de uma pessoa muito querida, “como você consegue descobrir esses livros? ”. Resposta à primeira pergunta: assisti a uma resenha no canal do Youtube Bons livros para ler, feita pelo sociólogo e livreiro Luiz Guilherme de Beaurepaire; resposta à segunda: quando amamos com paixão alguma coisa, estamos atentos a ela – incluindo aí a serendipidade abordada por Ana Maria Gonçalves.



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