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quarta-feira, 26 de abril de 2017

Resenha nº 92 - Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus

Resultado de imagem para livro quarto de despejoTítulo original: Quarto de Despejo
Autora: Carolina Maria de Jesus
Editora: Ática
Edição: 10ª edição
Copyright: 1992
ISBN: 978-85-08-17127-9
Gênero: Diário
Bibliografia: Quarto de Despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963); publicações póstumas: Diário de Bitita (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996), Onde Estaes Felicidade (2014).

Carolina Maria de Jesus, filha de pais negros e analfabetos, nasceu na cidade mineira de Sacramento, em 14 de março de 1914. Ela era filha ilegítima de um homem casado e foi maltratada durante toda a sua infância. Quando, aos sete anos de idade, a esposa de um rico fazendeiro ofereceu-se para lhe pagar os estudos, a mãe de Carolina forçou-a a frequentar a escola. Ela parou de ir à instituição, mas tendo completado o segundo ano, sabia ler e escrever. Católica, apesar de ter sido expulsa da igreja junto com sua mãe (eram uma família ilegítima), tal opção religiosa vai aparecer no seu diário. Em 1937, após a morte de sua mãe, Carolina foi para São Paulo e passou a morar na favela; construiu sua própria casa, com papelão, lata, madeira e qualquer material de que pudesse se servir.
Em 1947, aos 33 anos, Carolina estava grávida e residindo na favela do Canindé, perto do Rio Tietê. Esta favela não existe mais, tendo dado lugar às obras da cidade. Sempre guerreira, ela era catadora de papel e com essa parca renda, sustentou seus filhos. Quando encontrava revistas e cadernos antigos em meio aos papéis que catava para vender, ela os guardava e depois escrevia em suas páginas. Esta constante atividade – a da escrita – angariou-lhe antipatia, pois não gostavam dela por ser alfabetizada em meio a analfabetos e pior ainda, ela escrevia sobre a vida na favela e sobre os favelados.
Carolina conseguiu emprego na casa do médico brasileiro precursor da cirurgia de coração, Dr. Euclydes de Jesus Zerbini. Ocupação providencial, pois além de lhe dar melhor suporte econômico, possibilitou-lhe o acesso aos livros da biblioteca do médico, em suas horas de folga. Carolina faleceu em 13 de fevereiro de 1977, aos 62 anos de idade.
Lida a obra, o que dizer dela? O que se pode dizer de Carolina Maria de Jesus e este seu desconcertante Quarto de Despejo, diante de sua biografia tão sofrida? Há quem não classifique este livro de literatura... O que seria ele, então?
Foi um autêntico sucesso quando de seu lançamento. Traduzido para 13 línguas, circulou o mundo encantando e chocando quem o lesse. Encantando, diante do talento dessa negra favelada, mãe solteira e mulher de uma fibra incrível; chocando, diante das misérias desta vida em favela, ou como o disse a própria Carolina, o quarto de despejo da cidade:
"3 de agosto... Hoje os meninos vão comer só pão duro e feijão com farinha. Eu estou com tanto sono que não posso parar de pé. E graças a Deus não estamos com fome. Hoje Deus está ajudando-me. Estou indecisa sem saber o que fazer. Estou andando de um lado para outro, porque não suporto permanecer no barracão limpo como está. Casa que tem lume no fogo fica tão triste! As panela fervendo no fogo também serve de adorno. Enfeita um lar.
Fui na dona Nenê. Ela estava na cosinha. Que espetaculo maravilhoso! Ela estava fazendo frango, carne e macarronada. Ia ralar meio queijo para por na macarronada!
Ela deu-me polenta com frango. E já faz uns 10 anos que eu não sei o que é isto.
... Na casa de dona Nenê o cheiro de comida era tão agradavel que as lagrimas emanava-se dos meus olhos, que eu fiquei com dó dos meus filhos. Eles haviam de gostar daqueles quitutes.” (páginas 105/106)
O jornalista Audálio Dantas, iniciante na época, fora destacado para fazer uma reportagem sobre a favela do Canindé, em São Paulo. Ele conheceu Carolina Maria de Jesus, sua história e ficou sabendo que ela escrevia. São vinte cadernos repletos de anotações. Audálio desistiu da sua reportagem. A história daquela mulher falava por si mesma. Resolveu dar às anotações o formato de um livro e o fez publicar.
O drama da vida da autora e da vida na favela são sua matéria-prima, como se pode ler:
“...Uma menina por nome Amalia diz a mãe que o espirito lhe pega. Saiu correndo para se jogar no rio. Varias mulheres lhe impedio o gesto. Passei o resto da tarde escrevendo. As quatro e meia o senhor Heitor ligou a luz. Dei banho nas crianças e preparei para sair. Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.” (página 24)
Consciente, Carolina tem uma opinião firme sobre os políticos da época:
“Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: ‘Tem mais? Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cerebro  de uma mãe que olha as panela e não tem mais.
... Quando um politico diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere nossa sensibilidade.” (página 38)
Para quem insiste em que Quarto de Despejo não seja literatura, eis um trecho em que ficam evidentes recursos literários, como no caso dessas prosopopeias (ou personificações):
“Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e o feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo. Quem não nos despresou foi o fubá. Mas as crianças não gostam de fubá.” (página 43)
A crítica social permeia o Quarto de Despejo todo, e em alguns trechos recebe um tratamento mais pontual:
“... A favela hoje está quente. Durante o dia a Leila e o seu companheiro Arnaldo brigaram. O Arnaldo é preto. Quando veio para a favela era menino. Mas que menino! Era bom, iducado, meigo, obidiente. Era o orgulho do pai e de quem lhe conhecia.
— Este vai ser um negro, sim senhor!
É que na Africa os negros são classificados assim:
— Negro .
— Negro turututú.
— É negro sim senhor!
Negro tú é o negro mais ou menos. Negro turututú é o que não vale nada. E o negro Sim Senhor é o da alta sociedade. Mas o Arnaldo transformou-se em negro turututú depois que cresceu. Ficou estupido, pornografico, obceno e alcoolatra. Não sei como é que uma pessoa pode desfazer-se assim. Ele é compadre da Dona Domingas.” (página 51)
Impressionou-me um trecho em que a autora executa um jogo de percepções entre a visão onírica e a realidade cruel da favela:
“... Eu durmi. E tive um sonho  maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrels na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetaculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetaculo, por isso Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes pra minh’alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meus agradecimentos.” (página 120)
Nota-se na transcrição acima a fé católica, a confiança em Deus, a não revolta pela sua condição de extrema pobreza. Ressalta dela uma idealização ingênua, mas não menos bonita.
Carolina não gosta dos políticos, como o Adhemar de Barros e o Juscelino Kubitschek, e onde está implícita uma crítica feroz à carestia de vida, que torna a vida dos favelados ainda pior:
“Tenho nojo, tenho pavor
 Do dinheiro de alumínio
 O dinheiro sem valor
 Dinheiro do Juscelino” (página 127)
Vale lembrar uns versos da música Como nossos pais, imortalizada na voz de Elis Regina:
Minha dor é perceber/Que apesar de termos/ Feito tudo o que fizemos/Nós ainda somos os mesmos/E vivemos/Ainda somos os mesmos/E vivemos/Como os nossos pais”.
Quarto de Despejo hoje é uma obra quase esquecida do grande público. Circula nos meios acadêmicos. Parece que, passado todo aquele momento do pitoresco, do inusitado, os leitores viraram as costas para a obra. E, no entanto, o livro continua cruelmente atual, as coisas que Carolina Maria de Jesus nos disse naquela época são as mesmas coisas que ela continua nos dizendo. Sinal incontestável de que nada – ou pouco coisa – mudou. Por isso, vale a pena ler este contundente e necessário Quarto de Despejo.

domingo, 16 de abril de 2017

Resenha nº 91 - Laços de Família, de Clarice Lispector

Resultado de imagem para livro Laços de FamíliaTítulo Original: Laços de Família
Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Copyright: 1960
Gênero Literário: Contos
Bibliografia: Romances – Perto do Coração Selvagem, 1943; O Lustre, 1946; A Cidade Sitiada, 1949; A Maçã no Escuro, 1961; A Paixão Segundo G. H., 1964; Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, 1969; Água Viva, 1973; Um Sopro de Vida, 1978. Novela: A Hora da Estrela, 1978. Contos – Laços de Família, 1960; A Legião Estrangeira, 14964; Onde Estiveste de Noite?, 1974; A Via Crucis do Corpo, 1974; O Ovo e A Galinha, 1977; A Bela e A Fera, 1979. Literatura infantil – O Mistério do Coelho Pensante, 1967; A Mulher Que Matou Os Peixes, 1968; A Vida Íntima de Laura, 1974; Quase de Verdade, 1978; Como Nasceram As Estrelas, 1987. Crônicas – Para Não Esquecer, 1978; A Descoberta do Mundo, 1984. Correspondências – Correspondências, 2002; Minhas Queridas, 2007. Entrevistas – Entrevistas, 2007. Artigos de Jornal – Outros Escritos, 2005; Correio Feminino, 2006; Só Para Mulheres, 2006.

Clarice Lispector nasceu em Chechelnyk, Ucrânia, em 10/12/1920 e faleceu no Rio de Janeiro, em 09/12/1977. Naturalizada brasileira, declarava-se pernambucana, sendo considerada a maior escritora de origem judia, desde Franz Kafka. Foi contista, romancista, cronista, autora de literatura infantil, tradutora, novelista e jornalista. Ela veio para o Brasil com sua família, ainda pequena. Após breve estada em Maceió, a família fixou residência em Recife, onde a futura escritora cresceu. Cursou a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 23/01/1943, Clarice casou-se com o diplomata Maury Gurgel Valente. Seu primeiro filho nasceu em Berna, Suíça, em 1948; o segundo nasceu nos Estados Unidos, em 1953. Clarice separou-se de Maury em 1959; motivo alegado: as constantes viagens dele.
Falar de Clarice Lispector é tarefa das mais difíceis: temos de achar o equilíbrio entre o demônio do pouco e o demônio do excesso. Trata-se, sem dúvida, da maior escritora brasileira de todos os tempos. Dona de uma escritura personalíssima, desconcertante muitas vezes, basta lermos algumas linhas e o estilo clariciano já se marca. Portanto, vamos nos ater a este absolutamente envolvente livro de contos que é Laços de Família.
São treze breves contos: 1) Devaneio e Embriaguez duma Rapariga, 2) Amor, 3) Uma Galinha, 4) A Imitação da Rosa, 5) Feliz Aniversário, 6) A Menor Mulher do Mundo, 7) O Jantar, 8) Preciosidade, 9) Os Laços de Família, 10) Começos de Uma Fortuna, 11) Mistério em São Cristóvão, 12) O Crime do Professor de Matemática, 13) O Búfalo.
Li este Laços de Família cinco vezes, esta última exclusivamente para trabalhar a resenha que me propus fazer. E, em todas as vezes, os contos de Clarice Lispector conseguem me colocar numa situação de suave encantamento, como se os lesse pela primeira e surpreendida vez. Impressiona a característica comum a esses textos, formando um todo absolutamente equilibrado, soando como variantes enriquecedoras de um mesmo bloco, de um mesmo sentir o mundo.
Faz parte das estratégias da autora não a análise das coisas do mundo externo – aliás, em seus contos quase não há movimentos externos – mas a análise do mundo interno dos seus personagens. Ou melhor me expressando, seus temas vão buscar na interpretação dos acontecimentos sua razão de ser. Clarice não teoriza sobre psicologia ou filosofia; simplesmente disseca o sentir de suas criaturas, e mesmo quando o foco é um personagem masculino, o olhar do narrador é intrinsecamente feminino. Flui deles um contundente sentir, mediado pela sensibilidade feminina.
Tenho minhas preferências em relação aos contos coletados em Laços de Família. O Búfalo, A Menor Mulher do Mundo, A Galinha, O Crime do Professor de Matemática, Amor e Feliz Aniversário são meus trabalhos preferidos.
Os eventos que vão detonar as sensações e sentimentos dos personagens são os mais prosaicos possíveis. Fatos miúdos, sem importância aparente são capazes de jogar a psiquê das criaturas num torvelinho. Um exemplo disso está nas páginas 14, conto Devaneio e Embriaguez de Uma Rapariga:
“Mas que sensibilidade! Agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas escamas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. ”
A escrita de Clarice tem profundas raízes poéticas, o que fica bastante exposto no conto Amor, por exemplo (página 29):
“E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.”
Em Uma Galinha, a ave que seria o almoço dominical de uma família foge em voos curtos pelo telhado do vizinho. Um rapaz, por ser mais ágil, persegue-a, pois “era um caçador adormecido”. Consegue pegar a galinha. De susto, ela põe um ovo e a reação familiar:
“Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, de tão pequeno num prato, solevava a abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer nosso bem!” (página 32)
Em Feliz Aniversário, narra-se a festa de aniversário de oitenta e nove anos da matriarca da família. Ela a tudo e a todos observa, calada. O alheamento é característico da senilidade e a família finge estar ali de boa vontade, como forma de homenagem à velha. E ela se sai com um rompante que deixa dúvidas aos presentes sobre se ela está consciente ou não:
“Como?! Como tendo sido tão forte pudesse dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independentemente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas era o que era; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com a força insuspeita cuspiu no chão. ” (página 61)
A Menor Mulher do Mundo é um conto diferente, caminhando para o estranho. Um explorador, Marcel Pretre, encontra na África uma mulher da tribo dos pigmeus. Pigmeus já são pequenos, mas estes são menores dos menores. Entre eles, Marcel encontra um ser menor mesmo dentre eles, a menor mulher do mundo. Ela mede escassos 45 centímetros de altura. E está grávida. Esta é a "deixa" para o narrador de Clarice tecer um série de considerações, tanto para o próprio explorador quanto para várias mulheres ao redor do mundo, ao lerem a notícia e darem com a foto de Pequena Flor nos jornais.
No trecho que se segue, o fato abordado toca o horror:
“A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la consolando-a.” (página 71)
Uma outra passagem, do mesmo conto, desta vez na relação de Pequena Flor com seu explorador:
“É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorar. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador – pode-se mesmo dizer ‘profundo amor’, porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza...” (página 74)

O conto O Crime do Professor de Matemática envereda por outro lado: o professor em questão tinha de se livrar do seu cão, pois iria mudar-se para outro lugar. Abandona-o. Não consegue se livrar do sofrimento imposto por sua consciência: abandonara um amigo que confiava nele. Encontra, então, um outro cão morto, na rua. Recolhe-o num saco e leva-o para um lugar tranquilo para enterrá-lo. O ato do enterro alivia sua consciência, pelo método da substituição e ele então se recorda:
“‘Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua’, pensou então com auxílio da saudade. ‘Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu – como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei’, refletiu curioso. ” (página 121)
Mas, o ponto alto de todo o livro, na minha modesta opinião, a ideia genial vai se estruturar, pouco a pouco, no último conto do livro, O Búfalo. Este é uma pérola, uma pequena obra-prima da literatura brasileira. Uma mulher, cheia de ódio por uma desilusão amorosa, busca algo em um zoológico que materialize seu sentimento. Não obstante, todas as manifestações que encontra são de amor: “até o leão lambeu a testa glabra da leoa. ” Aquilo era amor. Em outros, encontra apenas agressão. Em certo momento, dá com um búfalo dentro de um cercado:
“E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olharam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. ” (página 135)
Soberba a imagem, não? Um búfalo tranquilo de ódio... só mesmo Clarice!
As poucas 138 páginas que compõem o livro Laços de Família não se entregam facilmente ao raciocínio inicial, à sensibilidade amornecida. Estes 13 contos são como um bom e precioso vinho, que se sorve lentamente, de gole em gole, para deixarmos o paladar, a visão e o odor aproveitarem todas as nuances.
E o curioso é que Clarice Lispector é a autora mais citada na internet, muitas vezes com frases que não são suas. Ela consegue trabalhar seu texto magnificamente em dois planos: temos um sentido superficial, de apreensão imediata, mas o que importa mesmo é o sentido profundo. Enganosamente fácil, o estilo de Lispector se aproxima, de alguma forma, das parábolas com seus significados e ensinamentos em nível mais aprofundado. Metáforas, comparações, que só se deixam apreender na releitura atenta.
Vou terminando esta resenha antes que me perca em mais excessos de admiração.
Recomendo fortemente a leitura não só desse conto, leitor, mas da obra toda. Entretanto, há de ser assim – leitura com tempo, com fruição. Deveria ser proibida a leitura das obras dessa autora por obrigação. Não dá. Clarice tem de ser acessada primeiro pelo sentir, pelo prazer. Depois, sim, o raciocínio, a análise vai encontrando os porquês, as relações, as razões de tanto encantamento.