Autora: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Copyright: 1960
Gênero Literário: Contos
Bibliografia: Romances – Perto do Coração Selvagem, 1943; O Lustre, 1946; A Cidade Sitiada, 1949; A
Maçã no Escuro, 1961; A Paixão
Segundo G. H., 1964; Uma Aprendizagem
ou O Livro dos Prazeres, 1969; Água
Viva, 1973; Um Sopro de Vida,
1978. Novela: A Hora da Estrela,
1978. Contos – Laços de Família,
1960; A Legião Estrangeira, 14964; Onde Estiveste de Noite?, 1974; A Via Crucis do Corpo, 1974; O Ovo e A Galinha, 1977; A Bela e A Fera, 1979. Literatura
infantil – O Mistério do Coelho Pensante,
1967; A Mulher Que Matou Os Peixes,
1968; A Vida Íntima de Laura, 1974; Quase de Verdade, 1978; Como Nasceram As Estrelas, 1987.
Crônicas – Para Não Esquecer, 1978; A Descoberta do Mundo, 1984.
Correspondências – Correspondências,
2002; Minhas Queridas, 2007. Entrevistas
– Entrevistas, 2007. Artigos de
Jornal – Outros Escritos, 2005; Correio Feminino, 2006; Só Para Mulheres, 2006.
Clarice Lispector nasceu em Chechelnyk,
Ucrânia, em 10/12/1920 e faleceu no Rio de Janeiro, em 09/12/1977. Naturalizada
brasileira, declarava-se pernambucana, sendo considerada a maior escritora de
origem judia, desde Franz Kafka. Foi contista, romancista, cronista, autora de
literatura infantil, tradutora, novelista e jornalista. Ela veio para o Brasil
com sua família, ainda pequena. Após breve estada em Maceió, a família fixou
residência em Recife, onde a futura escritora cresceu. Cursou a Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Em 23/01/1943, Clarice casou-se com o diplomata Maury Gurgel
Valente. Seu primeiro filho nasceu em Berna, Suíça, em 1948; o segundo nasceu
nos Estados Unidos, em 1953. Clarice separou-se de Maury em 1959; motivo alegado:
as constantes viagens dele.
Falar de Clarice Lispector é
tarefa das mais difíceis: temos de achar o equilíbrio entre o demônio do pouco e o demônio do excesso. Trata-se, sem dúvida, da maior
escritora brasileira de todos os tempos. Dona de uma escritura personalíssima,
desconcertante muitas vezes, basta lermos algumas linhas e o estilo clariciano
já se marca. Portanto, vamos nos ater a este absolutamente envolvente livro de
contos que é Laços de Família.
São treze breves contos: 1) Devaneio e Embriaguez duma Rapariga, 2)
Amor, 3) Uma Galinha, 4) A Imitação da
Rosa, 5) Feliz Aniversário, 6) A Menor Mulher do Mundo, 7) O Jantar, 8) Preciosidade, 9) Os Laços de
Família, 10) Começos de Uma Fortuna,
11) Mistério em São Cristóvão, 12) O Crime do Professor de Matemática, 13) O Búfalo.
Li este Laços de Família cinco vezes, esta última exclusivamente para
trabalhar a resenha que me propus fazer. E, em todas as vezes, os contos
de Clarice Lispector conseguem me colocar numa situação de suave encantamento,
como se os lesse pela primeira e surpreendida vez. Impressiona a característica
comum a esses textos, formando um todo absolutamente equilibrado, soando
como variantes enriquecedoras de um mesmo bloco, de um mesmo sentir o mundo.
Faz parte das estratégias da
autora não a análise das coisas do mundo externo – aliás, em seus contos quase
não há movimentos externos – mas a análise do mundo interno dos seus
personagens. Ou melhor me expressando, seus temas vão buscar na interpretação
dos acontecimentos sua razão de ser. Clarice não teoriza sobre psicologia ou
filosofia; simplesmente disseca o sentir de suas criaturas, e mesmo quando o
foco é um personagem masculino, o olhar do narrador é intrinsecamente feminino.
Flui deles um contundente sentir, mediado pela sensibilidade feminina.
Tenho minhas preferências em
relação aos contos coletados em Laços de Família. O Búfalo, A Menor Mulher do
Mundo, A Galinha, O Crime do Professor de Matemática, Amor e Feliz Aniversário são meus trabalhos preferidos.
Os eventos que vão detonar as
sensações e sentimentos dos personagens são os mais prosaicos possíveis. Fatos miúdos,
sem importância aparente são capazes de jogar a psiquê das criaturas num
torvelinho. Um exemplo disso está nas páginas 14, conto Devaneio e Embriaguez de Uma Rapariga:
“Mas que sensibilidade! Agora não apenas por causa do quadro de uvas e peras e peixe morto brilhando nas escamas. Sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada. E se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante: porque era protegida por uma situação, protegida como toda a gente que atingiu uma posição na vida. Como uma pessoa a quem lhe impedem de ter a sua desgraça. ”
A escrita de Clarice tem
profundas raízes poéticas, o que fica bastante exposto no conto Amor, por exemplo (página 29):
“E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.”
Em Uma Galinha, a ave que seria o almoço dominical de uma família foge
em voos curtos pelo telhado do vizinho. Um rapaz, por ser mais ágil,
persegue-a, pois “era um caçador adormecido”. Consegue pegar a galinha. De susto,
ela põe um ovo e a reação familiar:
“Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos. Seu coração, de tão pequeno num prato, solevava a abaixava as penas, enchendo de tepidez aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer nosso bem!” (página 32)
Em Feliz Aniversário, narra-se a festa de aniversário de oitenta e
nove anos da matriarca da família. Ela a tudo e a todos observa, calada. O alheamento
é característico da senilidade e a família finge estar ali de boa vontade, como
forma de homenagem à velha. E ela se sai com um rompante que deixa dúvidas aos
presentes sobre se ela está consciente ou não:
“Como?! Como tendo sido tão forte pudesse dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independentemente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagara os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas era o que era; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com a força insuspeita cuspiu no chão. ” (página 61)
A Menor Mulher do Mundo é um conto diferente, caminhando para o
estranho. Um explorador, Marcel Pretre, encontra na África uma mulher da tribo
dos pigmeus. Pigmeus já são pequenos, mas estes são menores dos menores. Entre eles,
Marcel encontra um ser menor mesmo dentre eles, a menor mulher do mundo. Ela mede
escassos 45 centímetros de altura. E está grávida. Esta é a "deixa" para o narrador
de Clarice tecer um série de considerações, tanto para o próprio explorador
quanto para várias mulheres ao redor do mundo, ao lerem a notícia e darem com a
foto de Pequena Flor nos jornais.
No trecho que se segue, o fato
abordado toca o horror:
“A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la consolando-a.” (página 71)
Uma outra passagem, do mesmo
conto, desta vez na relação de Pequena Flor com seu explorador:
“É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorar. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador – pode-se mesmo dizer ‘profundo amor’, porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza...” (página 74)
O conto O Crime do Professor de Matemática envereda por outro lado: o professor
em questão tinha de se livrar do seu cão, pois iria mudar-se para outro lugar. Abandona-o.
Não consegue se livrar do sofrimento imposto por sua consciência: abandonara um
amigo que confiava nele. Encontra, então, um outro cão morto, na rua. Recolhe-o
num saco e leva-o para um lugar tranquilo para enterrá-lo. O ato do enterro alivia
sua consciência, pelo método da substituição e ele então se recorda:
“‘Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua’, pensou então com auxílio da saudade. ‘Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu – como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei’, refletiu curioso. ” (página 121)
Mas, o ponto alto de todo o
livro, na minha modesta opinião, a ideia genial vai se estruturar, pouco a
pouco, no último conto do livro, O Búfalo.
Este é uma pérola, uma pequena obra-prima da literatura brasileira. Uma mulher,
cheia de ódio por uma desilusão amorosa, busca algo em um zoológico que
materialize seu sentimento. Não obstante, todas as manifestações que encontra
são de amor: “até o leão lambeu a testa glabra da leoa. ” Aquilo era amor. Em outros,
encontra apenas agressão. Em certo momento, dá com um búfalo dentro de um
cercado:
“E os olhos do búfalo, os olhos olharam seus olhos. E uma palidez tão funda foi trocada que a mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profundo. Olhos pequenos e vermelhos a olharam. Os olhos do búfalo. A mulher tonteou surpreendida, lentamente meneava a cabeça. O búfalo calmo. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. ” (página 135)
Soberba a imagem, não? Um búfalo tranquilo de ódio... só mesmo
Clarice!
As poucas 138 páginas que compõem
o livro Laços de Família não se entregam facilmente ao raciocínio inicial, à
sensibilidade amornecida. Estes 13 contos são como um bom e precioso vinho, que
se sorve lentamente, de gole em gole, para deixarmos o paladar, a visão e o
odor aproveitarem todas as nuances.
E o curioso é que Clarice
Lispector é a autora mais citada na internet, muitas vezes com frases que não
são suas. Ela consegue trabalhar seu texto magnificamente em dois planos: temos
um sentido superficial, de apreensão imediata, mas o que importa mesmo é o
sentido profundo. Enganosamente fácil, o estilo de Lispector se aproxima, de
alguma forma, das parábolas com seus significados e ensinamentos em nível mais
aprofundado. Metáforas, comparações, que só se deixam apreender na releitura
atenta.
Vou terminando esta resenha antes
que me perca em mais excessos de admiração.
Recomendo fortemente a leitura
não só desse conto, leitor, mas da obra toda. Entretanto, há de ser assim –
leitura com tempo, com fruição. Deveria ser proibida a leitura das obras dessa
autora por obrigação. Não dá. Clarice tem de ser acessada primeiro pelo sentir,
pelo prazer. Depois, sim, o raciocínio, a análise vai encontrando os porquês,
as relações, as razões de tanto encantamento.
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