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quarta-feira, 3 de maio de 2017

Resenha nº 93 - Perdido Em Marte, de Andy Weir

Resultado de imagem para livro perdido em marteTítulo original: The Martian
Título em Português: Perdido Em Marte
Autor: Andy Weir
Tradutor: Marcello Lino
Editora: Arqueiro
Edição: s/n
Copyright: 2014
ISBN: 978-85-8041-335-9
Gênero literário: Romance (ficção científica)
Origem: EUA
Bibliografia: Conto – O Ovo (com tradução para o português e The Martian, 2011 – seu primeiro e até agora, único romance.

Andy Weir nasceu em 16/06/1972, na Califórnia, Estados Unidos. Seus poucos dados biográficos na internet dizem que este escritor sempre se interessou por ficção científica. Estudou ciência da computação na Universidade da Califórnia, em San Diego, não tendo, entretanto, se formado naquele curso. Aos 15 anos de idade iniciou-se no mundo do trabalho num laboratório e, desde então, atua como engenheiro de softwares.
Em 2011, autopublicou seu romance The Martian em formato digital pela gigante da área de livros, a Amazon Books (eles têm um programa de autopublicação digital, pela plataforma kindle). Os exemplares foram vendidos a 0,99 cents e logo bateram a casa dos 35 milhões vendidos. Direitos comprados pela Crown Publishing Group, o livro saiu no formato tradicional, em papel. Tornou-se um sucesso de vendas. Consta que, embalado pela enorme aceitação do seu trabalho pelo público, Andy está trabalhando no seu segundo romance.
Li as 335 páginas que compõem o texto deste Perdido em Marte em dois dias e meio, enquanto uma chuvinha persistentemente irritante caía lá fora, numa praia do Espírito Santo. Praia com chuva não dá, todo mundo sabe disso, e isso explica minha dedicação ao livro.
Mark Watney é um dos astronautas da missão Ares 3 que pretende colonizar o nosso vizinho planeta Marte. É um projeto para vários voos tripulados, rigorosamente planejado, com o envio primeiro de aparelhos que garantirão a sobrevivência do homem ali, com tanta segurança quanto possível. Não obstante, logo de cara acontece o primeiro grande problema: uma terrível tempestade de areia, que comumente varre a superfície do planeta, causa danos ao sistema de comunicação do acampamento e obriga o abortamento da missão. Mark sofre um acidente, seu traje é perfurado por uma vareta de metal, inutilizando a transmissão dos dados biológicos do seu traje espacial. Ainda de quebra, causa-lhe um ferimento no flanco. O grupo, sem contato com Mark, andando quase às cegas em meio a toda aquela areia suspensa no ar, acaba por dá-lo como morto e o deixa para trás, iniciando seu retorno à Terra.
Entretanto, Mark não morrera. O sangue que escorria da ferida em seu corpo coagula-se ao redor da vareta e veda a perda de oxigênio. O nosso astronauta, então, recupera pouco a pouco a consciência; examina o computador do seu traje, aquele que trasmite seus dados biológicos aos companheiros de jornada: está irremediavelmente quebrado. Experiente, sabe que sua única chance de sobrevivência imediata é retornar ao acampamento. Em segurança, dentro do alojamento, ele se aplica uma anestesia local, retira a vareta e dá os pontos necessários para a cicatrização. O tratamento incluirá repouso, alimentação e a ingestão de antibióticos.
A partir deste desastre inicial, o livro passa a narrar a história do ponto de vista de três núcleos: primeiro, o de Mark Watney e sua luta para sobreviver num planeta que “insiste em matá-lo”; segundo, o da nave Hermes, com o restante da tripulação de retorno à Terra; terceiro, a equipe da Nasa, que tudo monitora pelo sistema de comunicação e pelos satélites geoestacionários na órbita de Marte.
Perdido em Marte é dividido como um diário, com o tempo marcado não em anos (a duração do ano em Marte não é a mesma da Terra), mas em sóis; inicia-se em Sol 6:
“Estou ferrado.
Essa é a minha opinião abalizada.
Ferrado.
Seis dias após o início daqueles que deveriam ser os dois meses mais importantes da minha vida, tudo se tornou um pesadelo.
Nem sei quem vai ler isto. Acho que alguém vai acabar encontrando. Talvez daqui a cem anos.
Que fique registrado: não morri em Sol 6. O restante da tripulação certamente achou que eu tivesse morrido, e não posso culpá-los. Talvez decretem um dia de luto nacional em minha homenagem e minha página na Wikipédia vá dizer: “Mark Watney foi o único ser humano que morreu em Marte. ”
E, provavelmente, isso estará correto. Porque, sem dúvida, vou morrer aqui. Só que não em Sol 6, como todo mundo está achando. ” (página 9, capítulo 1)
São vários elogios rasgados a esse Perdido em Marte. Vários blogues, vários leitores, algumas análises em revistas como a Veja.
Lá fora a chuvinha chata e fina continuava. A leitura já estava bem adiantada, lá pelas páginas 80.
“Meu Deus, pensei com meus botões (expressão antiga essa, não? Hoje em dia usamos t-shirts que não têm botões), o que será que está acontecendo? ” Pouco a pouco, ia ficando convencido de que o livro em minhas mãos teria de ser lido à base de disciplina e do desejo ferrenho de ir até o fim. Queria, de fato, resenhá-lo, tinha assumido este prévio compromisso comigo mesmo. Além do mais, o livro é emprestado, já estou com ele há muito tempo e tenho o dever moral de devolvê-lo.
Já havia assistido ao filme do mesmo nome, com a direção de Ridley Scott. Dormi boa parte da sessão. Mas, é aquela história: filme é diferente de livro. Duas realizações culturais que requerem linguagens diferentes. Nem sempre um bom filme veio de um bom livro, ou vice-versa, etc., etc., etc.
Preferências livrescas não são mais que opiniões, e opiniões, cada um tem a sua. Não estava gostando do livro. E isso não tinha nada a ver com o gênero ficção científica. Aqui mesmo, resenhados no blogue, adorei o Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Um Cântico para Leibowitz, de Walter M. Miller, Realidades Adaptadas, de Philip K. Dick...
Mark Watney é uma versão espacial, perdida em Marte, de McGyver. Isto equivale dizer que, do inverossímil, nosso herói consegue tirar soluções aparentemente tecnológicas (estão mais para “mágicas”), em sacadas geniais, impossíveis para os mortais comuns. E – é claro – os elementos a partir dos quais a mente privilegiada de Watney-McGyver enxerga a possibilidade de solução estão ali mesmo, na cena, convenientemente dispostos. Alguém lá em cima deve gostar muito, mas muito mesmo, de Mark Watney-McGyver.
Para sobreviver, nosso herói opta por plantar batatas. Elas são abundantes na ração dos astronautas, Mark é botânico. Resolve fácil o problema: pega um pouco de terra do planeta Terra (não tenho culpa se o nome do planeta é o mesmo do elemento que o compõe), mistura com a terra de Marte, adiciona escatologicamente bastante cocô. O próximo problema, o da irrigação do plantio, é uma das sacadas à McGyver:
"Cada molécula de hidrazina [o combustível dos motores] tem quatro átomos de hidrogênio. Portanto, cada litro de hidrazina contém hidrogênio suficiente para dois litros de água." (página 31)
Como se vê, a solução será conseguir a eletrólise de um combustível altamente explosivo como a hidrazina por meio de... uma descarga elétrica que poderá explodir tudo. Obviamente, Watney-McGyver tem pleno êxito na empreitada e consegue, afinal, a água necessária à irrigação dos tubérculos. 
“Preciso racionar as minhas AEVs [passeios lá fora, com o traje espacial], assim como estou fazendo com a comida. Não é possível limpar os filtros de CO². Uma vez saturados, não servem mais. A missão calculou uma AEV de quatro horas por tripulante por dia. Por sorte, os filtros de CO² são leves e pequenos, então a Nasa se deu ao luxo de mandar mais do que necessário. No total, tenho filtros de CO² para 1.500 horas de uso. Depois disso, qualquer AEV que eu fizer terá de ser administrada através da redução drástica do ar.” (página 18)
O livro tem inúmeros trechos assim, como o transcrito acima, altamente didáticos, mas eu não quero um livro didático no momento em que estou lendo Perdido em Marte. Descrição de reações químicas enxameiam o livro; tudo bem explicadinho. Eu posso entender a função de tais explicações: a necessidade de parecer sério, verdadeiro. Mas... isto produz um ritmo frouxo na narrativa. Ao texto falta uma respiração mais constante, mais adrenalínica. Esta inabilidade no controle da respiração do texto vai se tornar crítica na pressa com que o autor compõe as cenas finais do livro. Tudo acontece abruptamente agora, como se o autor quisesse se livrar logo da história.
Como disse, a narrativa é conduzida alternadamente pelos três núcleos dramáticos, o da Hermes, o de Watney em Marte e o da Nasa, na Terra. Todos personagens planos, sem conflitos internos. A maioria dos autores sabe dosar tais conflitos, normalmente reservando ao protagonista e ao antagonista uma maior intensidade psíquica. Portanto, me incomodou que todos – absolutamente todos – os personagens do livro sejam tão absolutamente planos. É intrigante que Mark Watney, após passar o diabo no adverso planeta Marte, psiquicamente seja o mesmo durante toda a história. Nada o modificou?! Nada lhe acrescentou nada?! Diante da morte certa, nenhum desespero?! Ascético demais para o meu gosto!
Andy Weir tenta tornar leve sua saga marciana com sarcasmo:
“Sim!” Eles disseram “sim”!
Não fico tão empolgado com um “sim” desde o baile de formatura!
Tudo bem, calma.
Tenho uma quantidade ilimitada de papel à disposição. Esses cartões eram para etiquetar lotes de amostras. Tenho cerca de cinquenta cartões. Posso usar os dois lados e, se necessário, posso reutilizá-los raspando a pergunta antiga.
A caneta vai durar muito mais que os cartões, portanto tinta não é um problema. Mas tenho que escrever sempre no Hab. Não sei de que porcaria alucinógena é feita essa tinta, mas tenho quase certeza de que evaporaria na atmosfera de Marte.” (página 112)
O problema é: levar esse sarcasmo a enésimo grau é terrivelmente estafante. Perde-se o efeito de imprevisto, que responde por boa parte da graça de um sarcasmo. Andy peca pelo excesso.
Estou em Sol 3, já não chove mais lá fora, mas o dia está nublado. Terminei de ler o livro por volta das duas horas da tarde. Pode ser, a minha intensa carga de leitura tenha tornado previsível o final previsível. Sem surpresas.
Perdido em Marte não é um livro horrível. Nem mesmo sofrível. Padece das mesmas coisas presentes em muitos Best-sellers. Muitas vezes, acontece o descuido do próprio autor, sabedor de que está produzindo para um público não desejoso de ater-se a detalhes de construção de enredo, de caracterização de personagens. É um livro bom se você ficar na complacente categorização de “entretenimento”.
Receio que o errado aqui seja eu. Não sou um profundo estudioso de literatura (atenção, estou assumindo que coisas como ficção científica, romance policial não sejam subgêneros, mas gêneros literários válidos), mas indiscutivelmente, minhas expectativas, meu gosto no tocante às leituras são fortemente influenciados pela experiência de vida, alguns conhecimentos mais técnicos, e uma forte carga de leitura.
Por fim, não resisto a um bom jeu de mot (jogo de palavra):  Mark Watney, “ao vencedor, as batatas! ”

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