Título em português: A Ilha do Dr. Moreau
Autor: Herbert George Wells
Origem: Inglaterra
Editora: Alfaguara
Copyright: 2012
ISBN: 978-85-7962-116-1
Bibliografia do autor: A máquina do
tempo (The time machine), 1895; A ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr.
Moreau), 1896; O homem invisível (The invisible man), 1897; A guerra dos mundos
(The war of the worlds), 1898; Love and Mr. Lewisham, 1900; The first men in
the moon, 1901; O alimento dos deuses (The food of the gods), 1904; Kipps,
1905; A modern utopia, 1905; Os dias do cometa (In the days of the comet), 1906;
Ann Veronica, 1909; Tono-Bungay, 1909; The history of Mr. Polly, 1910; The new
Machiavelli, 1911; Marriage, 1912; The world set free, 1914; Men like gods,
1923; The world of William Clissoid, 1926; Mr. Blettsworthy on rampole island,
1928; The shape of things to come, 1933.
H. G. Wells, como ficou
conhecido, nasceu em Bromley, um distrito da grande Londres, Inglaterra, em 21/09/1866.
Em 1883 tornou-se professor da Midhurst Grammar School e ganhou uma bolsa para
estudar biologia na Escola Normal de Ciências, em Londres, com ninguém menos
que T. H. Huxley, um dos maiores cientistas do século XIX, avô do escritor
Aldous Huxley (de Admirável Mundo Novo). T. H. Huxley era evolucionista, tendo ganhado
o apelido de “buldogue de Darwin”, pela sua forte defesa das teses do pai do
evolucionismo. O contato com o evolucionismo é um traço importante na biografia
de Wells, uma vez que este conhecimento vai aparecer na obra A ilha do Dr. Moreau.
Wells foi um escritor prolífico,
como se pode atestar pela sua bibliografia; é tido hoje como um dos iniciantes
do gênero literário ficção científica, à época chamado de romance científico. Suas
ideias sobre sociedade caminhavam para uma espécie de socialismo, o que o fez
aproximar-se de Stálin e da Rússia comunista. Não obstante, acabou se
decepcionando por constatar que tal regime era imposto à força de muita
violência dos bolcheviques.
Ao longo do tempo, deixou-se
levar pelo viés doutrinário e suas obras não conseguiram manter o mesmo nível
de criatividade e originalidade da fase inicial. Faleceu em 13/08/1946, aos 79
anos, em Londres. Deixou, indiscutivelmente, um conjunto de obras importante,
até hoje em catálogo — sinal insofismável de que elas têm ainda algo a dizer ao
nosso conturbado tempo. Alguns de seus livros foram convertidos para o cinema,
como por exemplo, A ilha do Dr. Moreau,
O homem invisível, Guerra dos Mundos.
Este exemplar que tenho em mãos é
o da Alfaguara, digital, em tradução de Bráulio Tavares, que também assina as
notas e um prefácio bastante contextualizador. A ilha do Dr. Moreau é constantemente classificada como ficção
científica ou uma história de terror. O prefácio de Bráulio nos diz que:
“Se A Máquina do Tempo, O Homem Invisível e A Guerra dos Mundos eram exemplos de ficção científica ‘pura’ no começo da carreira de H. G. Wells, A ilha do Dr. Moreau (1896) é uma forma híbrida entre a FC (ou o Scientific Romance, como era chamado na Inglaterra daquele tempo) e o romance de aventura em lugares exóticos. As últimas décadas do século XIX foram uma espécie de idade de ouro da literatura de aventura fantástica. O sucesso dos livros de Julio Verne a partir dos anos 1860 desencadeou esse processo, e as obras de Wells surgiram num ambiente literário que já conhecia também A ilha de coral, de R. M. Ballantyne (1857), A ilha do tesouro, de R. L. Stevenson (1882), As minas do rei Salomão (1885) e Ela (1887), de H. Rider Haggard.”
O enredo de A ilha do Dr. Moreau é deveras conhecido: um certo Prendick sofre
um naufrágio enquanto viajava no Lady Vain:
“No dia 1º de fevereiro de 1887, a embarcação Lady Vain naufragou por colisão com um navio à deriva quando se encontra a 1 grau de latitude Sul e 107 graus de longitude Oeste.
A 5 de janeiro de 1888, ou seja, onze meses e quatro dias depois, meu tio, Edward Prendick, um cavalheiro financeiramente independente, que decerto embarcara no Lady Vain em Callao, e que àquela altura era dado por morto, foi recolhido a 5 graus e 3 minutos de latitude Sul e 101 graus de longitude Oeste, num pequeno barco cujo nome estava ilegível, mas que se supõe ter pertencido a uma escuna tida como desaparecida, a Ipecacuanha. O relato que fez a respeito do que lhe acontecera foi de tal modo estranho que o julgaram louco. Depois, ele viria a afirmar que tinha perdido a memória de tudo o que lhe ocorrera após escapar ao naufrágio do Lady Vain. Na época, seu caso foi bastante discutido entre os psicólogos, como um interessante exemplo de lapso de memória em consequência de um estresse físico e mental. A narrativa que se segue foi encontrada entre seus papéis pelo abaixo assinado, seu sobrinho e herdeiro, mas sem nenhuma indicação de que era seu desejo vê-la publicada.”
Vejam como, nestes parágrafos
iniciais, H. G. Wells demonstra ser um escritor de talento: em poucas linhas,
nos entrega o início do enredo: a história vai envolver as experiências do tio,
Edward Prendick; ficamos sabendo que tudo ocorreu em função de um naufrágio;
que o personagem em questão ficou à deriva, num pequeno barco. Que acontecera
algo muito estressante, a ponto de fazê-lo perder a memória. Diz-nos mais, toda
a narrativa foi achada entre os papéis do tio. A informação do estresse e da
perda de memória do protagonista da história já o instaura como um narrador não
confiável. Portanto, toda a sua narrativa será posta em dúvida: aconteceu ou
não? Ou, pelo menos, aconteceu na forma narrada ou sofreu os delírios narrativos
da condição estressante? Esta não confiabilidade é habilmente construída pelo autor, pois além de instituir um narrador com essa característica, a ilha nunca foi encontrada, o acidente marítimo tem muitas imprecisões.
Prendick é recolhido por outro
barco, com pessoas muito estranhas e atitudes suspeitas. É levado a uma ilha —
a ilha do Dr. Moreau, do título. Nesta ilha, uma série de acontecimentos e
avistamentos do protagonista são chocantes. O Dr. Moreau é um cientista e faz intervenções
evolucionistas em animais. Uma espécie de “brincar de Deus”, interferindo diretamente
nos animais selecionados para as suas experiências. Tal característica, sem
dúvida, é o que associa A ilha do Dr. Moreau
ao romance gótico de horror, como por exemplo, Frankenstein, de Mary Shelley.
O suspense vai sendo construído,
com a competência que se espera de um bom escritor de aventuras:
“Segui-o com os olhos, e nesse instante, por algum truque do pensamento inconsciente, brotou na minha mente uma frase — ‘Os amores de Moreau’?... — seria isto? ... Ah! Logo minha memória deu um salto de dez anos no passado. ‘Os horrores de Moreau’. A frase pairou em minha lembrança até me trazer de volta a imagem de um panfleto impresso em letras vermelhas, um impresso cuja leitura era de arrepiar os cabelos e provocar calafrios.” (página 42)
Aqueles anos do século XIX viviam
a expansão tecnológica que, se de um lado encontrava defensores ardorosos, de
outro produzia o medo das novas engenhocas que afetavam diretamente o modo de
vida da sociedade. Tal receio vai transparecer no depoimento de Prendick, podendo
ser tomado como um discurso de oposição às mudanças impostas pela Revolução
Industrial:
“Devo confessar que perdi minha fé na sanidade do mundo, quando vi o sofrimento desordenado que reinava naquela ilha. Um destino cego, um vasto mecanismo impiedoso, parecia talhar e coser o tecido da existência, e eu, Moreau e sua paixão pelo estudo, Montgomery e sua paixão pela bebida, o Povo Animal, com seus instintos e suas limitações mentais, todos estávamos sendo dilacerados, esmagados implacavelmente, inevitavelmente, por entre a complexidade infinita de engrenagens impiedosas.” (página 108)
A mesma desilusão pode ser lida
na página 119:
“— Que mundo absurdo — disse ele. — Que coisa mais sem sentido! Não pude até hoje viver a minha vida. Fico pensando quando ela vai finalmente começar. Dezesseis anos sofrendo maus-tratos de enfermeiras e professores de colégio que faziam o que bem entendiam, depois mais cinco anos de sacrifícios para estudar medicina... Comida ruim, alojamentos vagabundos, roupas vagabundas, vícios vagabundos... Um fracasso... Nunca pude achar algo melhor...”
E o desencanto do mundo, além da
esfera social e cultural, abrange até mesmo a religião, que deveria amenizá-lo
por prometer um Reino do Céu, onde tudo fosse perfeito:
“Eu procurava refúgio no interior de uma capela, e mesmo ali, tal era minha perturbação que aos meus olhos o pregador parecia estar papagueando um ‘grande pensar’ tal qual o Homem-Macaco; ou eu entrava numa biblioteca e ali os rostos concentrados sobre as páginas me lembravam predadores pacientes aguardando sua caça.”
O narrador-personagem Edward
Prendick, já quase ao final do livro, filosofa em diálogo interno (monólogo),
numa verdadeira e comovente epifania:
“Dedico meus dias à leitura e a experimentos de química, e passo as noites em claro a estudar astronomia. Existe, embora eu não saiba como existe ou por que existe, uma sensação de infinita paz e segurança na contemplação dos céus estrelados. Deve existir, penso eu, nas vastas e eternas leis da matéria, e não nos problemas cotidianos e nos pecados e sofrimentos dos homens, aquele algo em que a parte de nós que é mais do que um mero animal encontra seu alívio e sua esperança.”
Então, fica claro que o
desencanto não é com a ideia de Deus; a desesperança não é em relação ao ser
humano como raça. Não. Esta epifania deixa claro, a decepção não é com a
religiosidade, este sentimento a nos impulsionar para a grandeza e plenitude
espiritual — ainda que bastante impreciso —, para a união com Algo-acima-das-misérias-humanas.
Então, há esperança para o Homem, pois Prendick (e o autor?) acredita
profundamente na Utopia.
Leia, se puder, leitor amigo,
este A ilha do Dr. Moreau. Você deverá
armar-se de compreensão para dar o desconto do ritmo lento da narrativa. Nosso tempo
apressado produz narrativas apressadas. Uma obra é filha do seu tempo, isto é,
nasce dentro das características de um determinado tempo. Entretanto, aquelas
que transbordam os limites do seu tempo e atingem outras épocas, portando ainda
algo de importante a dizer, estas são obras-primas. A ilha do Dr. Moreau pertence, sem nenhum preconceito de gênero
literário, a esta categoria.
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