Título em português: A Metamorfose
Autor: Franz Kafka
Tradutor: Marcelo Backes
Editora: Folha de São Paulo (em parceria com a LP&M)
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-7949-282-2
Bibliografia: Romances – O Desaparecido, 1912; O Processo,
1914; O Castelo, 1922. Contos – Na Colônia Penal, 1914; Um Médico Rural, 1919;
Um Artista da Fome, 1922; A Grande Muralha da China, 1918. Novela – A Metamorfose,
1912.
Franz Kafka nasceu em 03/07/1883, em Praga, na República Tcheca e morreu em 03/06/1924, na Áustria. Pertencia a uma
família judia de classe média, morando em Praga, à época pertencente ao famoso
Império Austro-Húngaro. Os habitantes daquela capital falavam, em sua maioria, o
idioma tcheco e a outra parte dela, o alemão. Cada um destes grupos idiomáticos
tentava a supremacia, pois trabalhavam para fortalecer a identidade nacional.
Kafka cursou Direito e logo
conseguiu emprego numa companhia de seguros. No seu tempo livre, escrevia
contos e por toda a sua vida reclamou muito do pouco tempo para cumprir o que
ele chamou de seu “chamado”. A ocupação com o seu ganha-pão não lhe deixava
tempo suficiente para se dedicar à sua obra. Escreveu centenas de cartas para
seus familiares e amigos mais próximos, como seu pai, sua noiva Felice Bauer e
sua irmã mais nova, Ottla Kafka.
A relação turbulenta com o pai, a
condição de ser judeu são condições normalmente apontadas como influência sobre
as características de suas histórias, onde prevalece a estranheza, o absurdo, o
labiríntico, surreal. O adjetivo kafkiano, para dizer destas características
foi criado.
A Metamorfose, livro que acabei de ler, tem um dos inícios mais
impressionantes e sensacionais de quantos eu tenha lido:
“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobe suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco sua cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldade. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume do resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos.” (página 5).
O texto segue, num tom de
completo absurdo. Kafka, ao invés de focar na condição estranha de Gregor, em
nenhum momento nos dá qualquer explicação sobre o que teria motivado tal
transformação. Ao contrário, ele vai tratar a metamorfose abjeta do seu
personagem como algo comum, possível de acontecer a qualquer um de nós. O próprio
Gregor, logo depois de verificar sua nova figura, procura se adaptar a ela,
tentando dominar suas pernas e seu abdômen em forma de couraça.
Ele trabalhara num pequeno
negócio, como caixeiro-viajante; nunca se atrasara ou faltara ao serviço. Não adoecia.
E assim, quando sua família percebe que Gregor ainda não se aprontou para ir
trabalhar, começa a se preocupar. Até seu gerente comparece, pois, naquele
horário, ele deveria ter viajado e estar muito distante dali. A única pessoa
que vai cuidar dele, limpar o quarto, alimentá-lo é sua irmã mais nova, Grete.
O processo de mudança de homem em
animal continua. Logo Samsa não se alimenta mais como um ser humano, mas começa
a demonstrar preferência por alimentos estragados, não frescos, chegando até
mesmo a consumir dejetos, lixo. Adquire nova habilidade e aprende a subir pelas
paredes e andar pelo teto:
“Gostava em particular de ficar pendurado no teto; era bem diferente do que ficar deitado sobre o piso; conseguia-se respirar com mais facilidade; uma leve vibração percorria o corpo; e na distração quase feliz em que Gregor se encontrava lá em cima às vezes acontecia que, para sua própria surpresa, ele se deixava cair estalando no chão. Mas agora, naturalmente, ele já tinha domínio de seu corpo, bem diferente de antes, e não se danificava mesmo numa queda tão grande.” (página 39)
A família Samsa é caracterizada como
irremediavelmente burguesa; Samsa a carrega nas costas com seu trabalho
aviltante, como fica explícito no trecho:
“Mas em volta estava tudo tão silencioso, ainda que, com certeza, a casa não estivesse vazia. “Que vida sossegada que a família não levava”, disse Gregor a si mesmo e sentiu, enquanto fixava os olhos à frente de si na escuridão, um grande orgulho pelo fato de ter conseguido dar a seus pais e sua irmã uma vida dessas numa casa tão bonita.” (página 28)
Em uma outra passagem, fica
bastante evidente o conflito edipiano de Gregor Samsa em relação a seus pais:
“Com o último olhar ainda viu a porta de seu quarto ser escancarada e a mãe correndo à frente da irmã, gritando em desespero, em roupas de baixo, uma vez que a irmã tivera de despi-la a fim de que ela respirasse com mais liberdade enquanto estava desmaiada; viu também como a mãe correu em direção ao pai a seguir, enquanto as saias despertadas caíam uma a uma no caminho, e como ela, tropeçando sobre as saias, caiu sobre o pai, abraçando-o, em completa união com ele –, mas nesse momento a vista de Gregor já falhava – implorando com as mãos sobre a nuca do pai, para que ele poupasse a vida de Gregor.” (página 48)
O conflito de Édipo se traduz da
peça Édipo Rei, do grego Sófocles, em que o filho cumpre seu destino de matar o
pai para se casar com Jocasta, sua própria mãe. E a referência mitológica se
faz porque Samsa observa a mãe quase nua, caindo sobre o pai e abraçando-o “em
completa união com ele”. Neste momento, a vista de Gregor começa a falhar – ele
não pode ver o ato de união entre o pai e a mãe - na peça do grego, Édipo vaza seus próprios olhos.
A Metamorfose é uma novela pequena, a edição que tenho, da Coleção
Folha Grandes Nomes da Literatura, tem apenas 71 páginas, texto integral. Mas é
uma história rica em referências de toda sorte. Escrita com um cuidado
artesanal na composição dos elementos sintáticos/semânticos, é uma leitura para
reflexão. Kafka não é um autor fácil.
A transformação de Samsa em
inseto asqueroso é uma grande metáfora para a incomunicabilidade entre os seres
– principalmente, na história, entre os familiares –, a absurda subserviência
do ser ao sistema dominante (mesmo transformado Gregor continua a se preocupar
com seu emprego), uma crítica aos valores burgueses e alienantes.
A edição traz várias notas de pé
de página, esclarecedoras, que nos enriquecem a leitura consideravelmente. Apontam,
às vezes, concomitâncias com outras grandes obras, como O Duplo, do russo Dostoiévski. É que certos temas, certas relações
são recorrentes em literatura, como de resto, na arte.
Marc Chagall, por exemplo, foi um
pintor que se serviu muito, para compor parte de sua obra, dos temas, situações
e personagens de outro grande russo, Nikolai Gógol, de sua obra Almas Mortas.
Absolutamente imperdível a
leitura atenta deste A Metamorfose, do genial Franz Kafka. Se você, leitor,
sente-se disposto a enfrentar uma leitura que, provavelmente, irá marcá-lo pela
originalidade, pela competência com que os temas são tratados, leia este livro.
Se já o leu alguma vez, disponha-se a enfrentá-lo outra vez.
Afinal, nunca lemos o mesmo livro
duas vezes. A Metamorfose é um destes
clássicos do século XX, tão citados que, ao compulsá-lo, temos a impressão de já
conhecermos sua história; nada mais enganoso. O subtexto, as entrelinhas, o
sugerido, torna a leitura desta obra um inesgotável prazer estético.
Nenhum comentário:
Postar um comentário