Autor: Marcelo Rubens Paiva
Editora: Alfaguara
Edição: n/c – 3ª reimpressão
Copyright: 2015
ISBN: 978-85-7962-416-2
Gênero: Memórias
Literatura Brasileira
Bibliografia – Romances: Feliz Ano
Velho, 1981; Blecaute, 1986; Ua brari, 1990; Bala na Agulha, 1994; As Fêmeas,
1994; Não És Tu, Brasil, 1996; Malu de Bicicleta, 2002; O Homem que Conhecia As
Mulheres, 2006; A Segunda Vez que Te Conheci, 2008; E Aí, Comeu?, 2012; As
Verdades Que Ela Não Diz, 2012; 1 Drible, 2 Dribles, 3 Dribles: Manual do
Pequeno Craque Cidadão, 2014; Ainda Estou Aqui, 2015; Meninos em Fúria, 2016;
Peças de Teatro: Es525 Linhas, 1989; E Aí, Comeu? (Da Boca pra Fora), 1998;
Mais-que-Imperfeito, 2001; Closet Show, 2003; As Mentiras que Os Homens Contam,
2003; No Retrovisor, 2003; Amo-te, 2006; A Noite Mais Fria do Ano, 2011; O
Predador Entra na Sala, 2012; C’est La Vie, 2014; Amores Urbanos, 2016;
Roteiros de Cinema: Fiel, 2012; E Aí,
Comeu? 2012; Malu de Bicicleta, 2013; Depois de Tudo, 2015; O Homem Mais Forte
do Mundo, 2016.
Marcelo Rubens Paiva nasceu em
São Paulo, em 01/05/1959; é escritor, dramaturgo e jornalista brasileiro. Com
seis anos de idade, mudou-se para o Rio de Janeiro, depois que seu pai, o
ex-deputado federal socialista Rubens Beyrodt Paiva foi cassado e exilado pelo
Golpe de Estado de 1964. Em 1971 – Marcelo tinha, então onze anos – ele sofreu
o primeiro trauma: o desaparecimento do pai; depois de preso e torturado, ele
nunca mais foi visto por ninguém. A família foi obrigada a se mudar do Rio de
Janeiro.
São Paulo foi o novo destino. Lá,
Marcelo completou seus estudos; escrevia para o jornal da escola, fazia letras
de música e foi finalista de um dos Festivais de Música da TV Cultura, em 1979.
Aos vinte anos de idade, sofreu o
segundo trauma: ao pular num lago, bateu com a cabeça numa pedra e fraturou a
quinta vértebra do pescoço, tornando-se tetraplégico. Sessões intensivas de
fisioterapia devolveram-lhe os movimentos das mãos e braços. Entrou para a
Escola de Comunicações e Artes, da USP, em 1982. Escreveu seu primeiro livro, Feliz Ano Velho, que rapidamente se
tornou o livro mais vendido da década de 1980.
Àquela época, eu li o Feliz Ano Velho. Lembro-me de que gostei
muito da leitura, um estilo diferente do que eu estava habituado. Mas,
confesso, este Ainda Estou Aqui é
apenas a segunda obra do autor lida por mim. Comecei não gostando muito dela e, por
isso, tive de usar a minha disciplina. Ao passar das páginas, entretanto, fui
me entusiasmando e lamentei o término da leitura. Marcelo tem o grande mérito
de não reduzir suas memórias a um diário de família, puro e simples. Relata
coisas familiares, sentimentos pelos quais todos passaram, mas ele expande este
drama particular. Contextualiza-o. Generosamente, torna-o parte de um todo
complexo, um drama entre tantos dramas acontecidos com outras tantas famílias,
outras tantas pessoas.
Ainda Estou Aqui não é um romance. É uma obra memorialista. Foca a
trajetória de Eunice Paiva, mãe de Marcelo – realmente, uma mulher admirável:
“Minha mãe estava noutra.
Não há grandes tiradas freudianas nesse raciocínio. Na real, nenhum de nós tinha ciúmes dela. Na real, preferíamos até que ela se casasse e se desse bem na vida. Estávamos crescidinhos, apesar de adolescentes. Duas irmãs moravam com estudantes-namorados. Com nossos bicos, nos virávamos. Não precisaríamos dividir a rotina de outra família, com seu novo marido, com novos irmãos. Estávamos noutra também. O futuro tinha urgência. Prioridade.
Eu já falei, suas melhores amigas não eram mais as esposas dos melhores amigos do meu pai, as que sobravam na mesa de pôquer. Passou a se relacionar com outras mulheres, outras viúvas, separadas e excluídas como ela: uma editora lésbica, que por um tempo namorou uma mulher chamada Eunice, o que virou a maior gozação lá em casa; uma artista plástica solteirona, que dava aulas na faculdade de arquitetura e urbanismo da USP e tinha fama de pegar alunos décadas mais jovens; uma escritora também viúva; uma psicanalista desquitada, linda de morrer; uma arquiteta também recém-desquitada, também linda de morrer, que andava pela cidade num MP vermelho conversível, provocante e moderna.” (página 202)
Embora Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui formem, de certo modo, uma sequência, são bastante diferentes.
A obra atual tem o mesmo tom leve e bem-humorado. Ambos são livros
memorialistas; ambos tratam os fatos de maneira bastante objetiva. Mas Ainda Estou Aqui é obra de um
escritor maduro, o texto é muito mais equilibrado. No primeiro, o foco é o
próprio Marcelo, sua luta para se recuperar, seu amadurecimento como pessoa, já
que suas adequações não seriam apenas físicas, mas provocaria – como provocou –
mudanças psíquicas. Aceitação da sua condição e a construção de uma outra
proposta para sua própria vida. Neste último, o foco é sua mãe, Eunice Paiva,
sua condição de portadora de Alzheimer. Na verdade, Marcelo deixa bem claro:
seu livro é sobre a memória:
“A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho. E sempre diz:
— É a coisa mais linda.
E às vezes se confunde e diz:
— Ela é a coisinha mais linda.” (página 19)
Eunice Paiva é a figura lutadora,
sofredora em silêncio, “a família Paiva não chora em público”. Torna-se
advogada de gente famosa e importante, depois que o marido “desaparece”;
torna-se defensora dos índios, sempre espoliados em suas próprias terras. Viaja
muito, mantém contato com instituições estrangeiras de defesa dos nativos, luta
sempre com muito denodo.
Um dia, enfim, consegue que as
autoridades deem seu marido como oficialmente morto; emitida a Certidão de
Óbito, ela poderá entrar na posse da conta bancária de Rubens Paiva, conseguirá
receber a pensão a que tem direito. Mas isto não será feito sem luta, mais uma
vez.
No episódio em que relata a ação
do DOI-CODI, invadindo sua casa e sequestrando seu pai diante de todos, Marcelo
volta a nos falar a respeito da memória:
“Ele [o pai] colocou um relógio de pulso, umas cadernetas no bolso. Foi com dois agentes dirigindo o Opel da minha mãe. Quatro sujeitos ficaram em casa. Um deles disse se chamar dr. Stockler, especialista em parapsicologia. Minha irmã Eliana chegou da praia. Estranhou a casa toda fechada, cortinas e janelas fechadas. Ao entrar, minha mãe logo lhe informou o que acontecia.
Acordei depois de tudo isso. Fui sonolento ao banheiro. Escovando os dentes, percebi um intruso no corredor, que vigiava pela janela do segundo andar o movimento da rua. Cumprimentei-o com a cabeça. Ele era quieto, sempre ficava no segundo andar.
A cada seis horas, esses homens eram substituídos por outros quatro. Para mim, eram sempre os mesmos.
A memória não é apenas uma pedra com hieróglifos entalhados, uma história contada. Memória lembra dunas de areia, grãos que se movem, transferem-se de uma parte a outra, ganham formas diferentes, levados pelo vento. Um fato hoje pode ser relido de outra forma amanhã. Memória é viva. Um detalhe de algo vivido pode ser lembrado anos depois, ganhar uma relevância que antes não tinha e deixar em segundo plano aquilo que era então mais representativo. Pensamos hoje com a ajuda de uma parcela pequena do nosso passado.” (página 117)
Ainda Estou Aqui é um livro muito
oportuno, escrito – como diz Marcelo a certa altura – no momento em que, pelas
mídias sociais, pessoas descontentes com a situação atual do Brasil pedem a
volta da Ditadura Militar. É oportuno porque nos traz à memória os horrores
perpetrados por tal Ditadura.
Não há possibilidades de atalhos,
digo eu. Hoje me parece claro, e ainda mais depois de ter lido este importante
e lancinante livro, a corrupção só pode acontecer de maneira tão absurda e tão
generalizada numa cultura que acolhe tal estado. Em outras claras palavras, qualquer classe –
incluída aí a classe política – é apenas uma amostragem da sociedade. Não
caiamos na simplificação imbecil de acreditar que só eles, os políticos, sejam
corruptos.
Há políticos honestos. Há pessoas
honestas por este Brasil afora. Mas, é verdade, “os bons são tímidos”. É
preciso um choque ético. Temos de mudar nossos valores; não há espaço para a
Lei de Gerson, de levar vantagem em tudo. E Democracia – com D maiúsculo – é
isso mesmo: não há salvadores, nós é que teremos de nos reformar e assim
reformar o destino que queremos.
Daí, leitor, a importância de
livros como Ainda Estou Aqui. Leia-o,
se puder. Pegue emprestado, alugue, compre (como estão caros os livros no
Brasil, não?). Longe desta babaquice autoproclamada de “formadores de opinião”,
o depoimento de Marcelo Rubens Paiva é contundente e bem-humorado. Se a memória
lembra dunas de areia, como ele disse poeticamente, cada um de nós é um
formador de opinião.
Todos nós interagimos uns com os
outros e isto me anima: podemos nos melhorar. Outros países conseguiram. Por
que conosco seria diferente?
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