Autora: Nélida Piñon
Editora: Record
Copyright: 2014
ISBN: 978-85-01-06633-6
Literatura Brasileira
Gênero: Contos
Páginas: 162
Bibliografia da autora: Guia-mapa de
Gabriel Arcanjo, 1961; Madeira feita de cruz, 1963; Fundador, 1969; A Casa da
Paixão, 1977; Tebas do meu coração, 1974; A foça do destino, 1977; A república
dos sonhos, 1984; A doce canção de Caetana, 1987; Coração andarilho, 2009; O livro das horas,
2012; Tempo das frutas, 1966; Sala das
armas, 1973; O cortejo do divino e outros contos escolhidos, 2001; O calor das
coisas, 1980; O pão de cada dia: fragmentos, 1994; A camisa do marido, 2014; Até
amanhã, outra vez, 1999. A roda do vento, 1996; O presumível coração das América,
2002; Aprendiz de Homero, 2008; O ritual da arte (inédito).
Nélida Piñon é de ascendência
galega, mas nasceu no Rio de Janeiro, em 03/05/1937. A curiosidade é que o nome
Nélida é um anagrama do nome do avô, Daniel. Formou-se em jornalismo pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e foi editora ou membro de
conselho editorial de várias revistas brasileiras e estrangeiras. Estreou na literatura
com o romance Guia-mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961. Nélida é
acadêmica correspondente da Academia de Ciências de Lisboa e também
participante da Real Academia Galega.
Nélida possui muitos prêmios ao
longo de sua carreira literária, que já tem mais de 35 anos. O último prêmio
recebido foi o Príncipe das Astúrias das Letras, em 2005, conferido na cidade espanhola
de Olviedo. Foi eleita em 27/07/1989 para ocupar vaga na Academia Brasileira de
Letras e tomou posse em 03/05/1990. Foi a primeira mulher a se tornar
presidente daquela prestigiosa instituição.
Soberbo livro de contos, este A Camisa do Marido, que terminei hoje de
ler e já o estou postando aqui no blogue. A temática de Nélida Piñon foi evitada
por muitos escritores, considerada de menor importância: as relações familiares.
Realmente, com alta probabilidade de produzir lugares-comuns, pelas mãos
seguras desta escritora tal tema não tem nada de lugar-comum.
É que, em literatura, não é bem o
tema abordado o que realmente importa, mas o tratamento que o autor dá a ele. Na
verdade, a quantidade de temas é limitada, embora grande. E Nélida sabe o que
faz. Possui uma escrita elegante e objetiva ao mesmo tempo, isto é, não se
perde em floreios desnecessários.
Compõem o livro exatamente nove
contos: A camisa do marido, O trem, Dulcinéia, A mulher do pai, Para sempre, A
sombra de Carlos, Em busca de Eugênia, A quimera da mãe, A desdita da lira. O
tom que perpassa a maioria dos contos tem algo de erótico, sem ser vulgar.
Outros, são surpreendentes pela ousadia das abordagens.
Adotarei aqui o mesmo critério ao
resenhar o livro de contos História da
sua vida, de Ted Chiang, já postado aqui neste blogue, ou seja, vou
transcrever alguns trechos selecionados de cada conto e acrescentarei alguns
comentários. Vamos lá, então.
A Camisa do Marido
“Após a morte do marido, Elisa emudeceu por alguns dias. De luto, o traje negro ficava-lhe bem. Exagerava em seu ascetismo. Parecia sujeita a uma prescrição religiosa. Cancelou qualquer visita, exceto a dos filhos, que vinham no final da tarde e cujo ruído contrastava com a paz imposta à casa. Ela própria providenciara as iguarias que eram do agrado do marido, com a condição de os filhos exortarem o pai durante as refeições. Ao morto deviam a fartura. E, com gesto vago, fazia-lhes ver que a fortuna feita pelos dois ficaria sob sua guarda.” (página 12)
A autora realiza admiravelmente a
estratégia de dar voz a vários narradores, e obtemos, assim, análises parciais
dos filhos e da viúva sobre as relações que os envolvem. E digo admirável,
porque fazer isto no reduzido espaço de um conto não é tarefa para qualquer um.
Há que ser um escritor experimentado e de muito talento.
O Trem
“O pai amava os trens. Nascido no sul de Minas, em vilarejo acanhado, vira, desde a infância, o trem cortando a paisagem em direção a São Lourenço, sem se deter na estação local, havia muito abandonada. Após o último vagão serpentear pelos trilhos e desaparecer na curva, atrás da montanha, acenava como se despedisse da sorte que o abandonara aos menos daquele dia. Até a tarde seguinte, quando aguardava esperançoso que a passagem do trem lhe deixasse de novo como lembrança certa imagem fugidia e a fumaça impregnada de carvão.” (página 36)
Este foi um dos contos de que
mais gostei. O homem leva a família para dentro do esqueleto de um vagão, já em
ruínas e depredado, para fazerem uma viagem imaginária pelo mundo. Nesta viagem,
a geografia é subvertida em favor do prazer de imaginar-se viajando e
conhecendo o mundo. Reconhecidamente, um excelente conto.
Dulcineia
“O súbito silêncio de Maritornes incomodou o escudeiro, ainda que se ressentisse com a ausência de um interlocutor que acatasse suas respostas. Ansioso, pois, de também dialogar consigo mesmo, acionou a memória, que lhe trouxe a cena de quando ambos entraram na taberna naquela tarde, dom Quixote agindo como se algum castelão o acolhesse, cedendo-lhe o castelo para repousar da caminhada. Uma cortesia habitual entre homens de boa vontade e que lisonjeava o exausto cavalheiro. Estimulado assim pelo espírito onírico que brotava do seu ser, ele acomodou-se à mesa até surpreender-se com a presença de Dulcineia, de Toboso, a servir-lhe o vinho como se fora uma taberneira.” (página 54)
O conto tem um narrador em terceira
pessoa, jungido a Sancho Pança, isto é, o narrador nos faz perceber os fatos e
interpretá-los sob a ótica do escudeiro; Sancho sabe, portanto, que ali não há
castelo algum, não existe qualquer castelão, nem confunde a figura de
Maritornes com a de Dulcineia. Somente dom Quixote vê as coisas pela ótica
distorcida de sua loucura.
A Mulher do Pai
“Penso que a minha redenção seria matar o pai. Cumprir o ritual parricida que procede das cavernas. Há que suceder ao pai e ocupar seu lugar no leito. A lei é severa, mas também é justa. Pois, se tarda ele em morrer, alguém deve lhe chamar a atenção. Buscar uma justificativa. Com que direito ele vive a plenitude de seu corpo, esbravejando na cama com Ana, enquanto eu vivo de sobras, como um castrado? Foi ele quem me esmagou os testículos para perder o direito à herança.” (página 79)
Este conto é outro de que gostei
muito. Drama tipicamente edípico, o desejo do filho de matar o pai para relacionar-se
com a madrasta desejada. É uma variante, pois no conflito de Édipo – cumprindo a
profecia inexorável – ele mata o próprio pai e termina por casar-se com Jocasta,
sua própria mãe.
Para Sempre
“Ao passar dos anos, seguia recordando o homem, que guardava no corpo e na memória. Envelhecia gradualmente, a despeito de ser ainda jovem. Contudo, não conquistara serenidade. O ritual da morte do amante, que se fundira com os funerais do pai, a desorientava. Ao recordá-los, os dois homens se confundiam, as perdas se misturavam.” (página 89)
Aqui, em um caso de traição
feminina, a mulher perde o amante, morto durante uma relação sexual com ela e,
posteriormente, a morte do pai e tem de conviver com a dupla perda. Aquele amante
era marido da tia e o passamento do pai a libera para chorar, intimamente, a perda
do amor proibido.
A Sombra de Carlos
“Há muito capitulei. Desarmado, cedo quem sou a quem me reclame. Como parte da maldita caravana de carros e de camelôs, entrincheiro-me na paz fria do banheiro azulejado. Não sofro, contudo, o mesmo desespero que abateu Carlos V, César do mundo e da fé. A ele coube cruzar seus reinos em incessante cavalgada, premido pela suspeita de jamais regressar a casa, onde Isabel o aguardava. Não tinha, como eu, este apartamento, a toca da modéstia. E isso porque, vendo-o no quadro pintado por Tiziano, parecia dono do mundo, a despeito do queixo prognata, marca dos Habsburgo.” (páginas 96/97)
Neste conto, um sobrinho enterra
a tia. Mas o problema é que ele sentia forte atração por ela. A narrativa é perpassada
por motivos eróticos, carregados de desejo.
Em Busca de Eugênia
“E você, Eugênia, quantos filhos teve? Se me contou, esqueci-me agora. Estranho destino, o nosso. Ao parir, mugimos como vacas, balimos como ovelhas. Tanto estardalhaço para que os filhos nos paguem mais tarde com vistas apressadas. Absortos com o mundo, mal chegam, de olho no relógio, querem logo partir. Como se a sina do homem fosse fugir do estábulo onde afinal foi parido.” (página 113)
Aqui, a narradora é uma mulher
viúva e já envelhecida, que clama contra a solidão e o afastamento do filho. Dirige-se
a Eugênia, em estilo missivista, comentando sua situação e a relação com o filho
que a visita apressadamente. Gostei muito deste conto também.
A Quimera da Mãe
“A mãe, contudo, nunca dera nome ao suposto lugar de sua quimera. Sequer admitira que existisse. Vai ver era sua Shangri-Lá. Vira em algum filme monges do Tibete que asseguravam existir a felicidade humana. Eu não sabia como defender a memória da mãe, para nada se lhe perder. Como lhe fazer a vontade no futuro? Eu a examinava. Era um ávido investigador de gestos, apto a lhe descobrir os segredos. Até surpreender, certa tarde, em um papel de pão, escrito em letra miúda, como que nascida de um desabafo, a palavra Porto.” (página 134)
Um filho faz um esforço enorme
para recuperar a trajetória sentimental da mãe, mas tem dificuldades, pois ela
lhe declarara, certa vez, “que tinha o coração repartido em muitos pedaços. Embora
vivesse no Brasil, aspirava seguir para longe, instalar-se em algum rincão da
Europa...”
A Desdita da Lira
“Na velhice, nada espero. Às vezes, encurralado na água-furtada do meu quarto, contíguo à sala onde o escravo dorme, assalta-me a esperança de tomar da pena e declarar que jamais estive na Índia. Ou que, havendo estado ali, pronto a abandonei, movida pela extrema pobreza. Talvez pudesse promover mudanças no meu Os Lusíadas, dando, por exemplo, relevância ao trecho em que menciono o Brasil entregue a Martim Afonso de Souza, que, sob as benesses dos trópicos, em obediência ao rei, dividiu aquele território em capitanias e ali plantou o que fizesse falta ao reino. Tal esperança solapa-me a alma. Mas, como exaltar o Brasil se à época me faltou inspiração? E se jamais pus os pés naquela terra? Destilo raiva por conta dos meus desacertos. Embora fosse aceitável o que disse do Brasil, onde, segundo consta, mal se balbucia a língua lusa, não seria o mesmo como discorrer sobre Portugal.” (página 145)
Claro está, o narrador aqui é o
sujeito histórico Luís Vaz de Camões. Ele reflete sobre sua vida, sua obra, sua
velhice desamparada (vive numa água-furtada); arrepende-se de umas tantas coisas.
Este é outro conto extraordinário.
Concluindo, este A Camisa do Marido é quase a minha primeira incursão na obra desta excelente
Nélida Piñon. Já lera alguns textos dela, nem todos de teor literário, já a
conhecia por entrevistas, homenagens. Creio que seus livros são pouco
divulgados junto ao grande público, justamente por se ter dela uma imagem de escritora
difícil, laureada pela Academia Brasileira de Letras.
Realmente, estes contos A Camisa do Marido não são livro para
estar nas mãos de jovens iniciantes ao mundo da leitura. Seus temas também não
são os da moda; sua escrita apurada, cheia de referências cultas provavelmente
incomodará o leitor mediano. Mas Nélida Piñon, sem dúvida, é uma escritora de
primeiro time, não bastasse pertencer à Academia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário