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domingo, 3 de dezembro de 2017

Resenha nº 107 - As Três Marias, de Rachel de Queiroz

Resultado de imagem para livro as tres mariasTítulo original: As Três Marias
Autora: Rachel de Queiroz
Editora: TAG Livros/José Olympio
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-03-01337-6
Literatura brasileira – Categoria Romance

Bibliografia: Romance – O Quinze (1930); João Miguel (1932); Caminho de Pedras (1937); As Três Marias (1939); O galo de ouro (1950); Memorial de Maria Moura (1992). Crônicas – A Donzela e a Moura Torta (1948); 100 crônicas escolhidas (1958); O brasileiro perplexo (1964); O caçador de tatu (1967); A menininha e outras crônicas (1976).  Teatro – Lampião (1953); A Beata Maria do Egito (1958). Infanto-juvenil – O Menino Mágico (1969); O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas (1980); Cafute e Pena-de-Prata (1986). Obras Reunidas de Ficção – Três Romances (1948); Quatro Romances (1960); Seleta, seleção de Paulo Rónai; notas e estudos de Renato Cordeiro Gomes (1973).



Rachel de Queiroz, escritora brasileira nascida em Fortaleza, Ceará, em 17/11/1910 e falecida em 04/11/2003, no Leblon, Rio de Janeiro, aos 92 anos de idade. Romancista, contista, cronista, tradutora, jornalista. Rachel publicou seu primeiro romance, O Quinze, aos 19 anos de idade, demonstrando habilidade na análise psicológica dos seus personagens, vivendo a saga do nordestino que luta contra a seca e a miséria. O Quinze é considerado, até hoje, um dos romances mais importantes da literatura brasileira. Rachel de Queiroz foi membro da Academia Brasileira de Letras, sendo recebida por Adonias Filho. Mais tarde, ela se filiou à corrente literária denominada modernismo, e foi admiradora de Manuel Bandeira.
“Na parede caiada se desenhava, enorme, o emblema azul da Virgem Maria. Ao centro do pátio ficava o caramanchão cheiroso do jasmineiro e dentro dele, no fresco e no sombrio do verde, a imagem de uma moça de vestido branco e pés nus – uma Nossa Senhora bonita e triste.
Em redor do pátio as classes vazias, mudas, fechadas. O ruído de passos crescia, ressoava pelos corredores, o terço da cintura da Irmã tilintava, cheio de medalhas.
Eu tinha medo. A Irmã mais velha, de olhar morto, fala incolor e surda. Parecia feita de papel pálido, ou de linho engomado semelhante à corneta que trazia à cabeça e que se agitava a cada movimento seu, como uma ave. Parecia uma boneca de cera, uma figura, uma santa, só não parecia gente. Também não parecia gente a porteira seca, toda osso e nervo, nem a outra Irmã que passou silenciosa e de cabeça baixa, sem um interesse, sem um olhar. Moça, jovem, só a Virgem Maria adolescente do caramanchão; e, sendo de louça, tinha mais ar de vida e humanidade que aquelas outras mulheres de carne, junto de mim.” (página 11)
Maria José, Maria da Glória e Maria Augusta (Guta) são as três personagens centrais, sobre as quais se constituirá este romance. São as tais três Marias do título. Elas estudam num internato de uma ordem religiosa. É pela voz de Guta que tomamos conhecimento dos fatos acontecidos.
As Três Marias tem boa parte da história passada entre os muros do internato; é nesse microcosmo, circunscrito aos muros que o isolam quase completamente da cidade lá fora que Rachel vai exercer seu poder de análise. Aliás, este é uma estratégia muito usada pelos autores, literatura afora. Uma ilha, uma cidadezinha de interior, um educandário, um internato, enfim, servem como amostragem de uma sociedade que se quer analisar ou caracterizar, como se pode ver no trecho abaixo transcrito.
“De um lado vivíamos nós, as pensionistas, ruidosas, senhoras da casa, estudando com doutores de fora, tocando piano, vestindo uniforme de seda e flanela branca.
Ao centro, era o “lado das irmãs”, grandes salas claras e mudas onde não entrávamos nunca. E além, rodeando outros pátios, abrigando outras vidas antípodas, lá estavam as casas do Orfanato, onde meninas silenciosas, vestidas de xadrez humilde, aprendiam a trabalhar, a coser, a tecer as rendas dos enxovais de noiva que nós vestiríamos mais tarde, a bordar camisinhas dos filhos que nós teríamos, porque elas eram as pobres do mundo e aprendiam justamente a viver e a penar como pobres.” (página 22)
A literatura lida pelas internas é constituída por histórias água-com-açúcar, como convinha às “virtuosas jovens” internas. Isto não impede a entrada, vez por outra, de outro tipo livro, mais realista, como por exemplo, Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque. Apesar de cunho fortemente pacifista, o livro aborda os horrores das guerras, a desumana condição dos soldados nas trincheiras. Desfazia a imagem glamorosa que faziam as internas de homens sempre portando fardas limpas, bem passadas, cheirosos e imponentes; no livro circulava o carrossel de horrores e podridões.
No excelente Carta Aberta A Rachel de Queiroz, de Heloisa Buarque de Hollanda, que acompanha esta edição, há a caracterização de cada uma das três Marias: Maria da Glória, após sair do internato, casa-se e se torna mãe e esposa notável. “E, no livro, se congela na imagem do protótipo de felicidade”, nos diz Heloisa.
Maria José vai viver com a mãe sofrida, arranja um emprego de professora e se constitui em arrimo de família. Esta Maria se apoia na religião e, no dizer de Heloisa, “sua imagem se congela na grandeza e na virtude da mulher sofredora”.
Guta volta para a casa da família, no Cariri, mas não consegue se adaptar à rotina e regras francamente mantenedoras do poder dos pais. Vai para Fortaleza e arranja um emprego de datilógrafa, mediante concurso. Das três, será a mais livre, mas também a mais desnorteada, sem a comodidade da segurança do protótipo de felicidade, atribuída a Maria da Glória, e também sem a segurança fornecida pela religião. Por isso mesmo, Maria Augusta é a personagem mais rica, mais vívida do romance. Ela vai para o Rio de Janeiro, vive, aprende, sofre – tem seus amores.
O judeu Isaac e Guta têm, durante a estada dela no Rio, um relacionamento bastante complicado:
“Isaac me queria, era evidente, mas nunca me falara de amor. Não fazia projetos, não pedia promessas, não hipotecava o futuro. Nos instantes de ternura mais íntima, ou em outros momentos sem importância, suas palavras sempre feriam apenas o sentimento presente, a sensação do momento.
E eu, que sonhava e fazia projetos sozinha, não ousava pedir nada, imitava o descuido dele; via próximo o dia de ir embora e continuava calada, com medo de quebrar o encanto, com medo de o decepcionar, de o levar a me supor capaz de qualquer cálculo e negociar com o coração. Tirava justamente o meu orgulho do gesto de me dar sem pedir nada, ou pelo menos sem mostrar que o esperava.” (página 187)
Manoel Bandeira, num outro texto de apreciação sobre este As Três Marias, ressalta que há no livro quase uma sina, as mulheres de Rachel de Queiroz morrem, de um modo geral, de parto:
“O aspecto mais curioso talvez dessa feminilidade está na aparente “falta de imaginação” com que a escritora mata mulheres no romance. Várias delas morrem de parto, pelo menos três. O parto parece estar para a escritora em íntima conivência com a morte. Aliás, para Maria Augusta, que é quem conta a história, essa ligação do parto com a morte é impressionantemente legítima, pois que ela perde o filhinho nascituro. Não morre ela, mas o filho. E, assim perturbada com violência em seus instintos maternos, Maria Augusta como que se sacrifica, matando no parto as outras mães do livro. Não tem ânimo para lhes matar os filhos (que é a imagem que a persegue), antes se salva neles prolongando nos filhos das outras a sua maternidade frustrada.” (página 219)
Interpretação esta focada na psicanálise de Freud. E talvez assim seja, tendo em vista que a própria escritora, Rachel de Queiroz, teve um filho morto precocemente. Guta, portanto, seria uma espécie de alter ego da autora.
Os que escrevem ficção sabem desta verdade: pomos nos nossos personagens feitos de palavras algo de nós mesmos; os bons escritores ampliam esta base, ressignificando-a e dando corporeidade aos seus construtos. Os maus, provavelmente, não conseguem mais do que repetir-se a si mesmos, caindo na armadilha de criarem meros zumbis.

Há muito tempo não lia nada desta escritora. Para ser honesto, eu a conhecia somente de textos postos em antologias, o que não é o mais adequado para mergulhos de profundidade. E que bom que o meu primeiro contato com uma obra de Rachel tenha se dado com As Três Marias. Porque, como ressalta Manoel Bandeira, ela filia-se à corrente de Machado de Assis, com o seu texto fluente, reflexivo e sobretudo elegante. Com frases apuradas, tem-se a mesma impressão de quando lemos o Bruxo de Cosme Velho: não há palavras excessivas, não há uma vírgula a mais do que deveria. Um estilo seco, quase sem adjetivos. Um livraço. E numa edição muito bonita, esta da TAG Livros.

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