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quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Fim de Ano (Ufa, até que enfim!)



O ano de 2018 foi bastante produtivo para este blogue. Foram ao todo 29 livros resenhados. Janeiro começou com A verdade sobre o caso Harry Quebert, de Jöel Dicker; em fevereiro, vieram O Físico, de Noah Gordon, Ragtime, de E. L. Doctorow, A Praça do Diamante, de Mercè Rodoreda. Em março, foi a vez de um clássico, O Morro dos Ventos Uivantes, da excelente Emily Brontë. Abril nos trouxe A Arte Francesa de Mandar Tudo  À Merda, de Fabrice Midal, Xamã, de Noah Gordon e A Livraria, de Penelope Fitzgerald.

Maio e junho passaram em branco, sem nenhuma resenha. Julho veio o último volume de Noah Gordon, A Escolha da Dra. Cole, além do pequeno volume Viver em Paz para Morrer em Paz, de Mario Sergio Cortella e o arrebatador Voragem, de Jun’Ichiro Tanizaki. Agosto estreou no blogue Luize Valente, com o seu delicioso romance Uma Praça em Antuérpia.

Setembro trouxe três ótimas leituras: Como um Romance, de Daniel Pennac, o imperdível O Leitor como Metáfora, de Alberto Manguel, e pequeno e saboroso Uma Ilha Chamada Livro, de Heloisa Seixas. Em outubro, uma verdadeira maratona de livros: O Velho e O Mar, de Ernest Hemingway (um clássico que todos deveriam ler), Em Busca de Sentido, de Viktor Frankl, com quem aprendi muito, Hiroshima, de John Hersey, contundente e extremamente importante, Harry Potter e A Pedra Filosofal, de J. K. Rowling (abrindo o projeto de leitura de todos os sete volumes do Harry), Fantasmas na Biblioteca, de Jacques Bonnet, o intrigante Bartleby, O Escriturário, de Herman Melville, o mesmo autor de Moby Dick; finalmente, o genial O Vidiota, de Jerzy Kosinski.

Novembro foi a vez de mais cinco livros: a edição de luxo das HQ’s, Os Leões de Bagdá, de Brian K. Vaughn e Niko Herinchon; o best-seller O Homem Mais Inteligente da História, de Adriano Cury; A Conquista da Opinião Pública, de Patrick Charaudeau, um livro de não ficção, importantíssimo para se entender melhor a produção dos discursos políticos; O Segredo do Oratório, de Luize Valente, em retorno triunfante ao blogue; o pequeno e fundamental A Virtude da Raiva, de Arun Ghandi (neto do Mahatma Ghandi).

Dezembro finalizou o ano com A Rua do Odéon, de Adrienne Monnier, uma espécie de biografia não só da autora, mas da Paris intelectual da Belle Époque; seguiu-lhe A Festa e Outros Contos, de Katherine Mansfield – uma verdadeira aula de como se produzir excelentes contos.

Todo mundo gosta de listas, certo? Também gosto e não vou me furtar de elencar, no apagar das luzes deste 2018 tão conturbado, o que na minha opinião foram as minhas doze melhores leituras. Vamos lá, então, meu caro leitor. Ah, de cara já deixo livre: você pode discordar completamente. Continuaremos amigos.

A Conquista da Opinião Pública – Patrick Charaudeau
A Festa e Outros Contos – Katherine Mansfield
Bartleby, O Escriturário – Herman Melville
Em Busca de Sentido – Viktor Frankl
Hiroshima – John Hersey
O Físico – Noah Gordon
O Leitor Como Metáfora – Alberto Manguel
O Morro dos Ventos Uivantes – Emily Brontë
O Velho e O Mar – Ernest Hemingway
O Vidiota – Jerzy Kosinski
Uma Praça em Antuérpia – Luize Valente

Não vou classificá-los por nota. São os doze melhores do ano e para mim, isso basta. No mais, desejo a todos os leitores que me ofertaram seu apoio, prestigiando este blogue, um Feliz Ano Novo, cheio dos mais caros sonhos e realizações. Muita leitura boa, para completar o círculo virtuoso.

Minhas postagens vão dar uma folguinha, pois ninguém é de ferro e também eu saio de férias. Mas prometo voltar em breve. Um abraço!

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

ISBN - Que Bicho É Esse?


S
e você é, como eu, um curioso a respeito de tudo que se refere ao mundo dos livros, certamente já se perguntou o que significam aqueles numerozinhos misteriosos, mais conhecidos como ISBN. Eles vêm grafados nas capas dos livros, representados por um código de barras.

Vamos tentar te explicar agora. O que significa, exatamente, a sigla ISBN? International Standard Book Number (algo como Número Padrão Internacional de Livros). É composto de 13 algarismos, separados por traços. Importante saber que esta configuração atual é recente; os livros catalogados até 2007 não obedeciam à mesma orientação (tinham apenas10 algarismos, sem os três identificadores do tipo de produto).

Vamos partir de um livro qualquer, que já tenha sido postado aqui no blogue: Rua do Odéon, de Adrienne Monnier. Seu ISBN é 978-85-8217-613-9. Como disse Jack, o estripador, vamos por partes.

O primeiro conjunto de algarismos, 978 (Prefixo Bookland), vai indicar de que produto se trata; neste caso, indica tratar-se de um livro.

A segunda sequência (Identificador de país, área ou grupo idiomático) é a representação numérica do país, área geográfica ou grupo idiomático onde o livro está sendo produzido; 85 indica o Brasil.

A terceira posição (Identificador de publicação) se refere à editora que foi responsável pelo registro da obra. No caso, como a editora é a Autêntica, ela é representada pelo número 8217.

Na penúltima posição (Identificador de Título), temos a indicação do título da obra, dentro daquela editora específica. Se um mesmo título foi publicado por editoras diferentes, o número muda. No caso, a Rua do Odéon, publicado pela Autêntica, recebeu o número 613.

Por fim, temos o dígito verificador, uma espécie de “prova dos nove”. Tem a mesma função do verificador de um CPF, por exemplo: garantir que aquela determinada sequência numérica está correta. No caso supracitado, o código é 9. Há, é claro, uma fórmula para se chegar a este dígito.

Então, o ISBN é um número de identidade do livro. É válido para o mundo todo, uma padronização da indústria livreira. Se eu não tenho título, nem autor, ao pesquisar o ISBN, chego a estas informações.

O órgão oficial, no Brasil, responsável por controlar este registro, é a Biblioteca Nacional, situada no Rio de Janeiro. A editora ou o autor, no caso de autopublicação, deve recolher uma taxa, preencher formulário e ceder uma cópia do original, devidamente rubricado em todas as páginas e assinado, para guarda e comprovação.

O copyright é reconhecimento oficial de autoria de determinada obra. Aliás, de qualquer produto criativo, cuja autoria se queira resguardar. É feito em site próprio, mediante preenchimento de formulários e recolhimento de depósito. Por ele, o autor garante todos os direitos sobre sua obra, estabelece multas indenizatórias nos casos de  cópias não autorizadas, por toda a vida, mais 70 anos após sua morte. Depois disso, a obra cai em domínio público, ou seja, pode ser editada por qualquer um, sem pagamento dos royalties (direito autoral). Machado de Assis, por exemplo, é um autor em domínio público.

Outra informação importante, já que estamos falando de registro de livros, é sobre a Ficha Catalográfica. Obrigatória pela lei 10.753, de 30/10/2003, a Ficha Catalográfica fica a cargo da Câmara Brasileira do Livro. É um padrão internacional existente desde 1976 e serve para orientar a indexação de uma obra numa biblioteca. Normalmente, ela é colocada no verso da folha de rosto do livro, e menos frequente, no final dele – e aí recebe o nome estranho de colofão. Curiosidade: o colofão era muito usado na idade média. Parece que este gosto das editoras está voltando...

Esperamos ter esclarecido o assunto. Não vai mudar o mundo, certamente, mas é uma informação interessante do mundo da escrita.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Resenha nº 141 - A Festa e Outros Contos, de Katherine Mansfield


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Título Original: The Garden Party
Título em português: A Festa e Outros Contos
Autora: Katherine Mansfield
Tradutora: Juliana Cupertino
Editora: Revan
Edição: 3ª edição
Copyright: 1974
ISBN: 978-85-7106-049-5
Gênero Literário: Contos
Origem: Literatura Inglesa
Bibliografia da autora: In a german pension (Numa pensão alemã), 1911; The garden party and other stories (A festa e outros contos), 1922; The dove’s nest and other stories Ninho de pomba e outros contos), 1923; Bliss and other stories (Felicidade e outros contos), 1923; Poems, 1923; Something childish, 1924; The journal of Katherine Mansfield, 1927; The letters of Katherine Mansfield (dois volumes), 1928/1929; The Aloe, 1930; Novels and novelists, 1930; The short stories of Katherine Mansfield, 1937; The scrapbook of Katherine Mansfield, 1939; The collected stories of Katherine Mansfield, 1945; Letters to John Middleton Murry, 1913-1922; The urewera  notebook, 1978; The critical writings of Katherine Mansfield, 1987; The collected letters of Katherine Mansfield, (4 volumes), 1984-1996.
(foto: Estante Virtual)

Incrível. O que esta escritora consegue fazer dentro do gênero literário conto é incrível. Parece fácil, mas escrever contos é dificílimo: talvez o principal deste tipo de narrativa curta seja a concisão. Katherine domina a técnica como poucas escritoras. Aqui, no Brasil, como se sabe, ela tem pelo menos uma discípula autodeclarada: Clarice Lispector. Este A Festa e Outros Contos é o segundo livro dela que resenho aqui no blogue (o primeiro foi Je Ne Parle Pas Français), e já deu para enxergar melhor sua escrita. A Festa, por exemplo é um conto com um fiapo de enredo. Sou já um entusiasta desta autora, tenho todos os outros livros dela já publicados em português e pretendo resenhá-los aqui, um a um. Fico imaginando o quanto de esforço, de tempo empenhado, de leitura de contos deve ter forjado esta contista. É mesmo um projeto de vida, com o qual me identifico. Também eu gostaria de escrever contos assim perfeitos. Madame Virginia Woolf tinha razão, ao sentir inveja da escrita dela: o excelente romance Mrs. Dalloway parece ter recebido influência direta do conto A Festa.

Katherine Mansfield nasceu Kathleen Mansfield Beauchamp, em 14/10/1888, em Wellington, Nova Zelândia Britânica – hoje Nova Zelândia. Nascida em família colonial, era filha de um banqueiro e prima da autora Condessa Elizabeth von Armim. Em criança teve uma infância solitária e alienada. Seus primeiros escritos apareceram no High School Journal e na revista do Colégio para Garotas de Wellington, em 1898 e 1899. No ano de 1902, Katherine mudou-se para Londres, frequentando o Queen’s College. O curioso é que ela não mostrava interesse, inicialmente, pela literatura; era violoncelista de talento. Somente a partir de sua volta para a Nova Zelândia, em 1906, que se interessou pela arte de escrever contos. Enfastiada pela vida naquele lugar, Mansfield retorna a Londres em 1908. Aí participa do famoso Grupo de Bloomsbury – um grupo formado por vários artistas com uma proposta nitidamente antivitoriana, conhecida por ter valores sociais muito rígidos e formais. Entrega-se, como era muito usual ao grupo contestatório, a relações bissexuais e à vida boêmia.

Em um período de apenas três semanas, conheceu seu primeiro marido, George Bowden, casou-se e separou-se dele. A escritora ficou grávida de uma relação com o violonista profissional e seu amigo, Garnet Trowell. Katherine perde o bebê em 1909. Ao retornar à Inglaterra, publica seu primeiro trabalho, In a german pension (Numa pensão alemã), sob o nome modificado de Katherine Mansfield. Neste período, ela acaba por contrair gonorreia, o que a faz sofrer de uma artrite pelo resto de sua curta vida, além de ela passar a se considerar “uma mulher suja”. Katherine Mansfield morre a 09/01/1923, aos 34 anos de idade (com provavelmente tuberculose).

Seis trabalhos compõem este volume da editora Revan: A Festa, Uma Xícara de Chá, O Desconhecido, A Vida de Mãe Parker, Srta. Brill e Prelúdio. Este último é uma novela; os outros cinco são contos.

É possível que Prelúdio, junto a outro trabalho, Na Praia (At the bay), fizessem ambos parte de um projeto maior, de um romance.

Para a resenha, vou adotar uma estratégia já usada, com sucesso: um pequeno resumo de enredo de cada um dos contos, com comentários gerais e, desta vez, com transcrição de alguns trechos, que degustei mais. Vamos lá, então.

A Festa
Este trabalho inicial tem, como já disse acima, um fiapo de enredo: é um dia de preparação de uma festa nos jardins de uma casa de burgueses. De perto dali vem uma notícia triste, um homem pobre, chefe de família, morreu. Era um carroceiro, o cavalo se assustara com um automóvel, desembestara e ele fora projetado ao chão, batendo com a cabeça. Laura é a única que apresenta sensibilidade para com a família enlutada.

Um pequeno trecho:
“Já os homens carregavam nos ombros as estacas e se dirigiam para o local. Apenas o compridão ficara para trás. Ele se curvou, apanhou um broto de lavanda que, seguro entre o polegar e o indicador, levou ao nariz, para aspirar-lhe o perfume. Quando Laura viu o gesto dele, esqueceu-se totalmente das karakas, tão maravilhada ficou de vê-lo interessar-se por uma coisa como aquela – interessar-se pelo perfume da lavanda! Quantos homens que ela conhecia teriam tido aquele gesto? Ah, que gente extraordinária, simpática, são os operários, pensou ela. Por que ela não poderia ter amigos operários, em vez dos bobalhões com quem dançava e que vinham jantar aos domingos? Ela se daria muito melhor com homens como aqueles.” (página 14)
Uma xícara de chá
Rosemary Fell é uma mulher rica, acostumada a fazer comprinhas em Paris quando assim o desejar. Certa vez, ela viu numa loja algo que desejava muito. Não tinha dinheiro para pagá-lo e consegue, com o vendedor, que ele o reserve para ela. À saída, dá de cara com uma pedinte. Compadecida dela, leva-a para sua casa e a alimenta.

Passagem selecionada:
“Aliás”, Philip falou devagar, cortando a ponta de um charuto, “ela é de uma beleza surpreendente. É linda!”
“Linda?” Rosemary ficou tão surpresa que se ruborizou. “Você acha? Eu... Eu não tinha pensado nisso.”
“Santo Deus!” Philip riscou um fósforo. “Ela é absolutamente encantadora. Olhe outra vez, minha querida. Levei um choque, quando entrei no seu quarto, um erro terrível. Desculpe , querida, se estou sendo rude, e tudo o mais. De qualquer forma, me avise se a senhorita Smith for jantar conosco, para que eu tenha tempo de ler a Milliner’s Gazette.” (página 42)
O Desconhecido
O Sr. Hammond aguarda no cais o navio que vai atracar. Dentro dele, sua esposa, Janey chega de uma viagem à Europa. Ele fora visitar uma filha mais velha do casal. Um incidente, porém, faz com o processo de atracagem demore: um passageiro desconhecido morrera a bordo e quem teve de fazer o primeiro atendimento fora exatamente Janey.

Cena escolhida:
“Mas no momento mesmo em que Hammond a abraçou, ele sentiu que ela estava longe e que ele jamais, jamais mesmo, iria sabe se ela estava tão contente quanto ele. Como poderia saber? Iria ele sentir sempre aquela vontade, aquela aflição, aquela fome lancinante de tornar Janey de tal modo uma parte dele que nada, nada dela lhe escapasse? Tinha vontade de riscar tudo, todo mundo, do mapa! Nesse momento, agora, ele gostaria de apagar a luz, o que poderia trazê-la para mais perto dele. E ainda por cima aquelas cartas das crianças farfalhando dentro da blusa dela. Ele poderia tê-las atirado ao fogo.” (página 58)
A Vida de Mãe Parker
A Sra. Parker era uma viúva que tivera 13 filhos. Destes, sete morreram e sobraram-lhe seis. Tinha que trabalhar duro, vida de mulher pobre, na casa de um homem de letras. A irmã do marido veio para ajudá-la com as crianças, mas sofrera um acidente doméstico. Quebrara a coluna e a Sra. Parker ganhou mais uma pessoa para cuidar.

Parte extraída:
“Mas a ideia de chorar era como se o pequeno Lennie saltasse de novo nos braços de sua avó. É isso mesmo o que ela está querendo, meu pombinho. A vovó está com vontade de chorar. Se ela ao menos pudesse chorar agora, chorar muito tempo, por tudo, desde o começo: seu primeiro emprego, com a cozinheira ruim, a casa do médico, depois os sete anjinhos, a morte do marido, a debandada dos filhos, e todos os anos de miséria até Lennie. Mas chorar por todas essas coisas levaria muito tempo. Contudo, tinha chegado a hora; precisava fazê-lo. Não podia adiar mais. Não podia esperar mais... onde iria?...” (página 71)
Srta. Brill
A Srta. Brill é uma professora de inglês, mulher muito solitária. Quando há exibições da banda na praça do local onde mora, aos domingos, ela comparece. Sua principal atividade é observar as pessoas ao redor. Sua companhia mais constante é uma estola de pele de raposa, objeto que prezava muito.

Excerto:
“Mas, só quando um cachorrinho marrom passou trotando com solenidade, e caminhou de volta, como um pequeno cachorro “teatral”, como um cachorrinho que tivesse sido dopado, foi que a Srta. Brill se deu conta do que é que tornava tudo aquilo tão interessante. Estavam todos num palco. Não eram apenas a plateia, que só assistia, estavam todos representando. Ela própria desempenhava um papel, e vinha ali todos os domingos.” (página 77)
Prelúdio
Prelúdio acompanha um dia na vida das crianças da família Brunell. As crianças interagem com os diversos membros da família, propiciando à autora um estudo psicológico dos personagens, fechadas em seu mundinho burguês.

Trecho:

“Observem!” – disse Pat, alto. Pôs o pato no chão e o corpo começou a andar – apenas com um longo coágulo de sangue onde estiver a cabeça. Começou a vaguear, sem um único som, na direção da rampa que levava ao riacho. Era o coroamento maravilhoso daquela aventura.
“Está vendo? Está vendo?” – gritou Pip. Ele corria entre as menininhas, puxando os aventais delas.
“Parece uma maquininha. É como uma locomotivazinha engraçada” – gritou Isabel” (página 125)
Katherine Mansfield compõe todos os seus contos desta forma. Como diz Flávio Moreira da Costa, no Prelúdio a Katherine Mansfield, que acompanha o livro, os contos de Mansfield tratam de “gente sem história”. Personagens miúdos, do dia a dia, sem qualquer grandeza. E nada de muito importante acontece em suas vidas; não há emocionantes turning points (viradas de enredo).

Homens cansativos e sem imaginação, mulheres burguesas sustentadas por seus maridos, perdidas num mundo no qual não há nada para se fazer, crianças inquietas, sem terem muito como canalizarem suas energias vão compor a galeria da autora. Não há glamour. É bem o retrato de uma sociedade burguesa que vive quase que exclusivamente por viver, obedecendo regras e etiquetas sociais, como fica, de certo modo, claro no trecho pinçado do conto Srta. Brill, quando a protagonista chega à conclusão de que “não era só a plateia que estava assistindo, estavam todos representando”.

Katherine não diz, em uma única linha, que tal ou qual personagem sua é burguês ou burguesa; mas a descrição e a interação entre estas figuras sem alma as caracterizam como burgueses. Os dois mundos quase não se tocam: a burguesia e o proletariado são separados por uma espécie de fosso, como aqueles ao redor das muralhas dos castelos antigos. Tal condição fica implícita na fala de Laura, do conto A Festa, em que ela pontua a sensibilidade do operário e lamenta não ter como amigos homens com tal sensibilidade. Esta técnica de mostrar e não dizer é poderosa no conto, pela tensão criada. O leitor terá de fazer inferências para perceber as nuances. Além do mais, isto confere à narradora certo distanciamento do objeto descrito ou comentado.

É impressionante a superficialidade e a insensibilidade de Rosemary, no conto Uma xícara de chá, ao relacionar-se com a Srta. Smith, a pedinte que a aborda na rua. Rosemary não a leva para casa por compaixão verdadeira; todo o ato se configura como algo que estava na moda, aconselhado pelas revistas e jornais. E ela simplesmente não consegue entender a situação da pobre, sem acesso a seus acepipes deliciosos. A escolha do objeto ao redor do qual se move todo o conto – uma xícara de chá – algo tão caro à burguesia inglesa, já nos dá a dimensão da falta de importância dos sentimentos da Sra. Rosemary e da formalidade com que ela trata a convidada. Ela realmente não se importa!

A Festa e Outros Contos, um excelente livro de crítica social. Encheu-me os olhos. E o cérebro. Definitivamente, Katherine Mansfield é um monstro – no bom sentido – pois que há também monstros bons. O filme Monstros & Cia., da Disney, que o mostre (sorriso sarcástico).

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Resenha nº 140 - Rua do Odéon, de Adrienne Monnier


Rua do Odéon por [Monnier, Adrienne]Título original: Rue de l’Odéon
Título em português: Rua do Odéon
Autora: Adrienne Monnier
Tradutor: Júlio Castañon Guimarães
Editora: Autêntica
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-8217-613-9
Gênero literário: Biografia
240 páginas
Bibliografia da autora: La Figure, 1923; Les Vertus, 1926; Fableaux, 1932; Souvenirs de Londres, 1957; Les Gazettes, 1960; Rue de l’Odéon, 1960.
(foto Amazon Books)

A leitura deste Rua do Odéon, que nos fala a respeito de La Maison des Amis des Livres – A Casa dos Amigos dos Livros – livraria localizada na famosa Rua do Odéon, me trouxe lembranças recentes de Paris. Estive na Cidade-luz em 2017. Não conheci a rua onde se situava a livraria de Adrienne Monnier, nem tinha qualquer referência desta mulher. Mais uma prova de que, de qualquer jeito, sempre somos ignorantes de alguma coisa, mesmo se da nossa área de interesse. E é por isso que o mundo dos livros me é absolutamente fascinante. Por que, então eu disse aí acima “famosa Rua do Odéon”? Nesta mesma via pública localizava-se outra livraria, não menos icônica na história literária de Paris: do outro lado da rua, ficava a Shakespeare & Cia, da americana Sylvia Beach. Adrienne e Sylvia eram amigas, Adrienne ajudou-a a abrir a livraria dela, especializada em literatura inglesa. Por aquelas duas livrarias passaram figuras importantes da literatura, tais como James Joyce, André Gide, Ernest Hemingway, Paul Verlaine, Valéry, Ezra Pound... Sylvia foi responsável pela primeira edição de Ulisses, de Joyce; Adrienne bancou a versão para o francês do trabalho do irlandês. Não conheci a rua do Odéon, é bem verdade; não passei em frente à Maison des Amis des Livres, admito-o. Entretanto, visitei, no endereço atual à Rue de la Bûcherie, pertinho da Cathédral de Notre Dame. O proprietário não é mais Sylvia Beach, já  falecida. Mas, num ato de tietagem explícita, adquiri ali um exemplar de The Great Gatsby, naturalmente em inglês, em cuja folha de rosto está, orgulhosamente aposto, o carimbo da casa: Shakespeare & Cia. – Kilometer Zero – Paris.

Adrienne Monnier nasceu em 26/04/1982 em Paris, França e faleceu em 19/06/1955, na mesma cidade. Era filha de Clovis Monnier, um carteiro, e sua mãe, Philiberte era dona de casa, mas considerada de “mente aberta”, com enorme interesse em literatura e artes. Foi sob influência da mãe que Adrienne e Marie – sua irmã mais nova – se iniciaram no gosto pela leitura. Adrienne se destacou no cenário da moderna literatura francesa, e mais especificamente, parisiense, exercendo as atividades de livreira, ensaísta e editora. Em 1909, com a idade de 17 anos, Monnier graduou-se como professora e trabalhou também como secretária literária. Resolveu, então, abrir uma livraria para compartilhar com o público seu amor pelos livros. Como não possuía bom capital para o empreendimento, teve de se restringir a trabalhar com livros de literatura moderna e num tempo de pós-guerra em que os antigos livreiros estavam fechando suas livrarias. La Maison des Amis des Livres foi aberta em 1915, em regime de sociedade com uma amiga, Suzanne Bonnierre.

Naqueles tempos difíceis, não era comum que uma mulher abrisse qualquer empresa; era comum que viúvas herdassem os negócios dos maridos mortos na primeira guerra. As especificidades da livraria de Monnier foram alavancas para o sucesso do empreendimento. Logo, ela criou uma espécie de clube de leitura, emprestando livros e incentivando as pessoas. Programava palestras, sessões de autógrafos, tornando-se figura importante no meio cultural modernista.

Segundo uma descrição de Sylvia Beach, Adrienne Monnier era
“uma escandinava, com seus cabelos lisos e penteados para trás. O mais impressionante eram os olhos dela. Eles eram cinza-azulados e ligeiramente abaulados, e me lembravam os de William Blake.”
Monnier lançou uma revista em língua francesa, Le Navire d’Argent, em 1925. Continha obras de escritores franceses frequentadores de sua livraria; nesta revista, foi publicada uma tradução de The Love Song of J. Alfred Prufrock, de T. S. Eliot, feita pela própria Adrienne e Sylvia.

Enquanto Sylvia Beach foi forçada a fechar sua livraria, pela ocupação alemã de Paris, por trabalhar com livros ingleses e americanos, Adrienne pôde continuar com seu trabalho na Maison des Amis des Livres. Entretanto, ela sofria de problemas auditivos e tinha alucinações. Em 1955, ela saiu da cena cultural parisiense, cometendo um ato extremo: suicidou-se, tomando uma overdose de pílulas para dormir.

A Primeira Guerra Mundial acabou em 1918. O saldo, na França, foi muitas viúvas de combatentes contra os alemães, a queda do positivismo do século XIX, a chegada de uma nova geração desejosa de aproveitar tudo o que a vida poderia lhes dar, na superação dos horrores traumáticos do conflito recente. Uma efervescência cultural se instaurou, então, principalmente em Paris. A capital francesa vivia dias de glória, de arte, de liberdade sexual e novos costumes. Este período é chamado de “Anos Loucos” e atraiu artistas de toda parte. Relativamente à literatura, viveram aí escritores como Ernest Hemingway, James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Ezra Pound. O tom do modernismo francês é dado por André Gide e Marcel Proust. Correntes artísticas e literárias se construíram, como o Dadaísmo, com Tristan Tzara, o surrealismo, com André Breton, nitidamente renegando valores anteriormente preestabelecidos.

Inaugura-se a época esfuziante dos cabarés parisienses, influências norte-americanas, ritmos como o jazz, o shimmy. Montam-se espetáculos como a Revue Nègre, tendo como protagonista Josephine Baker proclamada como musa. Tudo o que é americano é bem-vindo. A cultura de massa toma conta da cidade, talvez numa forçada alegria de viver. Ao redor da escritora Gertrud Stein se organizam saraus, festas literárias; um pouco disto se pode ver na comédia romântica de Woody Allen, Meia-noite em Paris, de 2011.

É a própria Adrienne que se apresenta e nos diz algo de sua época:
“Meu pai era funcionário do correio; seu serviço o obrigava a ficar fora de Paris dois dias a cada quatro; quando estava fora, minha mãe ia todas as noites ao teatro, levando suas duas filhas pequenas, desde que haviam completado sete e oito anos. Admirávamos sobretudo De Max e Sarah Bernhardt. Assisti, com onze anos, à representação de Pelléas et Mélisande; Debussy e Maeterlinck tornaram-se meus deuses.” (página 7)
Adrienne tinha realmente uma visão romântica das atividades desenvolvidas em seu estabelecimento. O livro, para ela, não era meramente um objeto a se vender; era um bem precioso e os escritores franceses seus entes queridos, como se vê nesta passagem:
“Não é útil defender o que se defende muito bem sozinho, ajudar o que é muito mais forte do você. Lembro-me de um caso. Um dia, há bem doze anos, um jovem romancista, já bastante conhecido nessa época, dizia a olhar minha vitrine: “você faria melhor pondo meu livro que se vende como pão em lugar das poesias de Mallarmé de que ninguém compreende nada”. Eu lhe respondi naturalmente que, se seu livro se vendia como pão, ele não precisava de mim e que podia muito bem  deixar para Mallarmé o modesto benefício de minha modesta livraria.” (página 26)
Era de se prever, as inevitáveis rusgas entre autores, artistas, crises de ciúmes também se manifestavam naquela Paris sedenta por novidades e propensa a incensar autores e artistas, principalmente nos anos vinte. Isso fica bastante claro na transcrição abaixo:
“Fiquei ainda mais surpresa, mas desta vez desagradavelmente, ao ler pouco depois, na nota sobre Paul Valéry (de que eu não tinha dúvida que era ele o autor), as linhas reservadas a minha livraria. Eu, no entanto, deveria ter ficado satisfeita. Ali ele falava que tudo aquilo de que Paul Valéry tinha se beneficiado: celebridade, edições muito caras, Academia, etc., que tudo então partira dessa “simples e encantadora livraria: Aux Amis des Livres”. Sim, concluía ele, “ele deve tudo a uma livraria”.” (página 143)
E conclui, logo a seguir, “evidentemente era dito menos para me lisonjear do que para irritar Valéry”.

No livro, Monnier emite suas opiniões sobre os escritores da época. Sob o título “Passagem de Rilke”, ela faz suas reflexões:
“Há duas espécies de poetas. Há os que são eleitos por outrem; são chamados de “homens representativos”; são levados ao gênio por um conjunto de circunstâncias quase estranhas ao seu eu. São com frequência os maiores, mas nunca os mais puros ou mais sensíveis. Os outros são poetas por eles mesmos. Vivem antes de tudo. Cantam como as pedras preciosas escondidas no seio da terra. É preciso procurar para descobri-los. Sua obra tem uma espécie de auréola. Nunca se entrega por inteiro, de modo a poder dar-se inesgotavelmente.
Rainer Maria Rilke era um desses.” (página 147)
Adrienne exercia também a atividade de ensaísta; várias vezes, demonstrava seu domínio teórico das correntes ou escolas artístico-literárias:
“De resto, o surrealismo, em muitos aspectos, é um pré-rafaelismo dinamitado (sim, um pré-rafaelismo mais do que um simbolismo); o maravilhoso está no ponto de partida, e é sempre ao maravilhoso que ele retorna quando quer descansar dos seus feitos fora da literatura; está bem claro no Arcane 17, de André Breton; está aparente nos poemas alegóricos e ornamentados de René Char; está muito visível nas mulheres – de temperamento menos dinamitador do que os homens – como Valentine Hugo e Leonor Fini.” (página 189)
Rua do Odéon nos oferece, por meio da biografia muito mais de uma época e de uma cidade do que da própria Adrienne Monnier, um retrato bastante significativo do que era a Paris daqueles anos. Do livro transborda a vontade de viver novidades daqueles jovens do pós-guerra, após a ocupação alemã. Aos olhos de hoje, que localizam o período como de “entre guerras”, toda aquela atividade ensandecida, aquela procura desenfreada de sorver a cultura, o prazer, a vida enfim, soa mais como um soluço entre crises do que como o atingimento de algum nirvana estético ou existencial.

Mal sabiam os franceses, como de resto o mundo todo, o que estaria para vir – uma segunda apresentação dos mesmos horrores, muito mais aprofundados. Adrienne Monnier viveu até os anos cinquenta; sobreviveu, portanto, à Segunda Guerra Mundial.

Para quem gosta de literatura e é um leitor mais maduro, este livro deve interessar. Ele ajuda, sem dúvida, na compreensão dos chamados “Anos Loucos”, a Belle Époque francesa.    

Antes de terminar, cabe uma recomendação de leitura sobre tais escolas literárias para quem se interesse pelo assunto. Há, aqui mesmo no Brasil, um ótimo livro que historia bem as chamadas vanguardas: Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, de Gilberto Mendonça Teles, editora Vozes.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Resenha nº 139 - A Virtude da Raiva, de Arun Gandhi


Resultado de imagem para livro a virtude da raivaTítulo original: The Gift Of Anger
Título em português: A Virtude da Raiva
Autor: Arun Gandhi
Tradutora: Débora Chaves
Editora: Sextante
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-431-0537-6
174 páginas
Gênero: Autoajuda
Bibliografia do autor (incompleta): Legado de Amor, 2014; The Forgotten Woman, 1981; Meu Avô Gandhi, 2014; Daughter of Midnight, 1998.

Autoajuda: um gênero detestado e rentável. Livros deste tipo são aqueles reconhecidos como os que vendem horrores. Entretanto, mais recentemente, minhas tantas leituras me dizem o seguinte: há livros de autoajuda muito diferentes entre si. O conceito é elástico demais. Assim, na minha visão, a Bíblia é autoajuda, literatura pode ser autoajuda, seguindo esta tendência da obra Farmácia Literária, de Ella Berthoud e Susan Elderkin. Nenhuma dúvida; nós, os que lemos muito, sabemos da importância de um livro certo lido num momento correto. E gostei muito deste A Virtude da Raiva. Achei a proposta de transformar o sentimento da raiva em algo potencialmente bom, um impulso para realizar coisas muito apropriadas. Sim, porque esse negócio de dizer que não devemos sentir raiva, não devemos dar acolhida a este sentimento destruidor, me parece assim meio quixotesco. Ora, somos animais irritáveis, não há como não ter raiva pelo menos alguma vez na nossa vida. Transformar, neste caso, me parece mais factível do que evitar. E outra coisa que gostei demais no livro: ele me trouxe o Mahatma Gandhi bem para pertinho de mim, me deu um panorama de como este fantástico homem pacifista pensava. A não violência gandhiana não era só não brigar com alguém, ser grosseiro. É também não se deixar levar pela raiva, transformando-a em algo bom. Não imaginava.

Arun Manilal Gandhi nasceu em 1934. É neto de ninguém menos que Mohandas Gandhi e cresceu num ashram (uma espécie de local para retiro espiritual) na África do Sul. Viajou para o ashram de Gandhi ainda menino, quando sua família foi visitar o parente ilustre. Aprendeu a filosofia de não violência diretamente da fonte e no livro parte deste convívio é narrada. Depois de adulto, viajou para os Estados Unidos para o lançamento do filme Gandhi, de Richard Attenborough, com Ben Kingsley no papel principal. À época, ele ficou sabendo que o filme havia custado vinte e cinco milhões de dólares ao governo da Índia. Escreveu um artigo, posicionando-se contra tal custo, argumentando que este dinheiro seria melhor gasto se aplicado para ajudar muitos indianos pobres.

Entretanto, quando assistiu o filme, mudou de ideia. Apesar de algumas infidelidades, no todo o filme dava uma ideia muito boa sobre seu avô, prestando-lhe uma justa homenagem e mais que isso, levando a pessoas do mundo inteiro a filosofia da não violência.

Gandhi, todos sabemos, foi um dos grandes personagens da independência da Índia, que pertencia ao jugo inglês. Gandhi ganhou notoriedade exatamente por enfrentar as autoridades inglesas de peito aberto, mas sem ser violento. Não deu um tiro sequer. E acabou influenciando cabeças como as de Martin Luther King, Nelson Mandela e a famosa série televisiva de ficção científica, Jornada Nas Estrelas (Star Trek).

Num tom bastante descontraído, é assim que Arun começa o prefácio do livro:
“Estávamos indo visitar vovô. Para mim, ele não era o grande Mahatma Gandhi que o mundo reverenciava, mas apenas “Bapuji”, o avô afetuoso de quem meus pais sempre falavam. Sair de nossa casa, na África do Sul, para ir visita-lo na Índia era uma longa jornada. Tínhamos acabado de enfrentar uma viagem de 16 horas num trem lotado que paratira de Mumbai, apertados numa cabine de terceira classe que fedia a cigarro, suor e fumaça do motor a vapor da locomotiva. Estávamos todos cansados quando o trem resfolegou na estação de Wardha. Foi bom me livrar do pó de carvão, descer na plataforma e respirar ar fresco.” (página 9)
E, um pouco mais adiante, ainda no generoso prefácio, ele começa a traçar o perfil do avô famoso:
“O exemplo de não violência do meu avô nunca teve a ver com passividade ou fraqueza. Na realidade, ele considerava a não violência uma forma de nos tornarmos mais fortes em termos morais e éticos e mais capazes de avançar em direção a uma sociedade com mais harmonia. Quando estava promovendo as primeiras campanhas de não violência, ele pediu que o ajudassem a sugerir a palavra sânscrita sadagraha, que significa “firmeza em uma boa causa”. Bapuji gostou, mas decidiu modifica-la um pouco e transformá-la em satyagraha, ou “firmeza para a verdade”. Posteriormente, o termo passou a ser traduzido como “força da alma”, o que nos lembra que a verdadeira força vem do cultivo dos valores corretos na busca da transformação social.” (páginas 12/13)
Gandhi não se considerava perfeito, mas não se deixava iludir pela fama a ele atribuída. Por onde passava, uma multidão o acompanhava, sequiosa de suas palavras. Entretanto, nem sempre fora assim. Gandhi formou-se como advogado, trabalhando em Londres, vestindo ternos cortados sob medida, com caimento perfeito. Um dos muitos casos aconteceu num trem:
“Alguns anos mais tarde, depois de se mudar para a África do Sul, precisou pegar o trem noturno para Pretória por causa de um dos casos em que estava trabalhando. Entrou  no vagão de primeira classe com o bilhete correto, mas um homem branco alto e grosseiro reclamou de sua presença ali.
— Saia daqui, cule – gritou o homem, usando um insulto racista da época.
— Tenho um bilhete válido de primeira classe – respondeu meu avô.
— Não me interessa o que você tem. Se não sair, vou chamar a polícia.
— Esse é um privilégio seu – retrucou  meu avô, que se sentou calmamente, sem intenção de ir para o vagão de terceira classe, reservado para não brancos.
O homem saiu do trem  e voltou com um policial e um funcionário da viação férrea. Os três literalmente jogaram vovô para fora do trem.” (página 36)
Arun relaciona dez lições a seguir, que vão configurar a filosofia de não violência:
  • Use a raiva para o bem;
  • Não tenha medo de expressar sua opinião;
  • Aprecie a solidão;
  • Conheça seu valor;
  • Mentiras levam a mais mentiras;
  • O desperdício é uma violência;
  • Eduque seus filhos sem violência;
  • Humildade é força;
  • Os cinco pilares da não violência:
  •             Respeito.
  •             Compreensão.
  •             Aceitação.
  •             Apreciação.
  •             Compaixão.
  • Você será testado.

O autor explana cada uma destas dez lições, fazendo comparações com os dias de hoje. Critica, por exemplo, o uso exagerado que se faz dos smartphones, apontando que as famílias vão perdendo o prazer de estarem juntas, numa refeição, sentadas à mesa e podendo cada uma contar suas histórias.

O livro relaciona, também os “sete pecados sociais”, segundo Gandhi:
  • Riqueza sem trabalho;
  • Prazer sem consciência;
  • Comércio sem moral;
  • Ciência sem humanidade;
  • Conhecimento sem caráter;
  • Devoção sem sacrifício (não de animais, mas de riqueza);
  • Política sem princípios.

Ainda quero incluir, nesta resenha, duas passagens que me deixaram bastante propenso a reflexões (vou reler este livro). A primeira é sobre como enfrentamos as injustiças. Comentando aquela passagem de seu avô ter sido retirado à força do trem, na África do Sul, por ele não ter cedido à imposição do homem branco do avô transferir-se para a terceira classe, Arun anota:
“Mas, quando contou aos outros indianos o que tinha acontecido, muitos simplesmente deram de ombros. Se as pessoas brancas não o queriam na primeira classe, por que ele simplesmente não se mudou para o outro vagão?
— Porque é injusto – repetiu Bapuji. – Não podemos nos submeter e aceitar a injustiça.
Mas as reações apáticas também fizeram com que ele percebesse que “ninguém nos oprime mais do que nós mesmos”. Paramos de perceber as injustiças que sofremos e que são infligidas aos outros. Preocupados com nossa vida cotidiana e com o desejo de seguir em frene, paramos de prestar atenção. Comportamentos que deveriam causar indignação começam a nos parecer normais.
Bapuji nos diria que todo mundo precisa acordar imediatamente para as desigualdades e injustiças do mundo. Não temos que aceitar o preconceito. Precisamos lutar em todos os níveis. Ao encorajar as pessoas a agirem, no entanto, Bapuji reconhecia que não adianta combater o ódio com ódio e raiva com raiva. Isso apenas multiplica os próprios problemas que queremos eliminar.” (página 158)
A segunda passagem, igualmente importante, toca a psicologia humana de grupo:
“Psicólogos descobriram que, quando as pessoas são designadas aleatoriamente para um determinado grupo, elas imediatamente o elegem e afirma que ele é melhor do que os outros. Isso vale independentemente de quão desimportante seja a distinção. Dê a algumas pessoas uma camiseta vermelha e a outras uma camiseta azul e veja as alianças se formando.” (página 163)
Esta última questão é extremamente importante para ser examinada no processo eleitoral pelo qual passou o Brasil. Sem dúvida foi a eleição mais bipolar da história deste país. E, tomando pela mão o enunciado acima, cada grupo mergulhou numa violência, num ódio de assustar. Famílias até então unidas se desuniram por questões partidárias; amigos antigos romperam relações por diferença de apoio a candidatos; uns chamando a contraparte de burros.

A leitura deste A Virtude da Raiva nos alerta para trabalharmos melhor este impulso primário. Admitamos sua existência; transformemo-lo depois. A raiva não trabalhada nos transforma em loucos momentâneos. É preciso não deixarmos isto acontecer.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Enfiando O Pé Na Jaca III


Black Friday é irresistível, no tocante a livros. Todos os anos, faço promessas de joelhos a mim mesmo, não vou comprar nada! Tantas promessas feitas, tantas desobedecidas. O que me acalenta é que não estou sozinho, todas as booktubers que conheço também pisam na jaca. Eis o que aconteceu nesta última “breque fraidi” tupiniquim:

Resultado de imagem para livro crime e castigoCrime e Castigo, de Dostoiévski

Há muito tempo desejava comprar este livro. Conta com uma primorosa tradução direta do russo, de Paulo Bezerra. Ele é um dos nossos três “russos”, junto de Bóris Schnaiderman e Paulo de Figueiredo. Tenho traduções antigas, feitas de segunda mão, vindas a nós de traduções intermediárias do francês. Acontece que as traduções francesas antigas terminaram por mexer muito nos textos de Dostoiévski. Será uma outra aventura ler esta tradução da Editora 34 (que, diga-se de passagem, faz um belo trabalho com a sua coleção Leste Europeu).
Resultado de imagem para livro cem anos de solidãoCem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez

Esta edição está um luxo. Bela capa, texto integral em bom papel e boa diagramação. Finalmente, pretendo entrar em contato com a família Buendía e a cidade onde habitam, Macondo. Gabo – como  Gabriel Garcia Márquez é conhecido – escreveu um clássico moderno. Este exemplar conta ainda com textos de apoio muito proveitosos. Simplesmente, irresistível!
Rua do Odéon, de Adrienne Monnier

Este é um livro que conta um pouco da famosa livraria da Rua do Odéon, La Maison des Amis des Livres, de propriedade de Adrienne Monnier, em Paris. Por ela passaram figuras como Ernest Hemingway, André Gide, James Joyce. E, ainda, Adrienne conheceu outra famosa livreira, a americana Sylvia Beach, fundadora da Shakespeare and Company, cujo endereço original era também na Rua do Odéon. Adrienne nos fornece um retrato intelectual da Paris de um período fascinante.
Resultado de imagem para livro historias da gente brasileiraHistórias da Gente Brasileira, em três volumes, de Mary del Priore

A autora dispensa apresentação. Mary del Priore era professora universitária, com doutorado e tudo. Resolveu deixar a carreira acadêmica para escrever livros de história do Brasil em que a leveza textual, apoiada muitas vezes numa narrativa cativante é a tônica. Um trabalho maravilhoso, aliado a uma pesquisa primorosa.
O Evangelho de Maria Madalena, de José Lázaro Boberg

Boberg estuda o evangelho apócrifo de Maria de Magdala (ou Maria Madalena), baseado em textos antigos encontrados em Nag Hamadi. O livro promete ser muitíssimo interessante, oferecendo-nos uma visão diferente sobre a personagem centro de interpretações que acabaram se solidificando com o tempo, como a de que ela era uma meretriz. Boberg nos propõe uma revisão destas interpretações à luz de novos textos descobertos mais recentemente.
Resultado de imagem para livro socialismo e espiritismoSocialismo e Espiritismo, de Léon Denis

Livro polêmico até hoje, escrito por Léon Denis. Trata-se de uma compilação de textos originalmente publicados na Revista Espírita dirigida por Allan Kardec, que circulou na França por doze anos seguidos. Léon Denis, dizem, era um orador poderoso e muito preparado. A polêmica acontece pela aproximação do socialismo com o espiritismo.