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segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Resenha nº 115 - Ragtime, de E. L. Doctorow

Resultado de imagem para livro ragtimeTítulo Original: Ragtime
Mantido o mesmo título para a edição em português
Autor: E. L. Doctorow
Tradutor: A. Weissenberg
Edição: TAG Livros/Record
Copyright: 1975
ISBN: 978-85-01-11079-4
Gênero Literário: Romance
Literatura Americana
Quantidade de páginas: 386
Bibliografia do autor: Romances –  Welcome to Hard Times, 1960 (adaptado para filme); Big as life, 1966; The book of Daniel, 1971 (adaptado para filme); Ragtime, 1975 (adaptado para filme); Loon Take, 1980; World’s Fair, 1985; Billy Bathgate, 1989 (adaptado para filme); The Waterworks, 1994; City of God, 2000; The March, 2005; Homer and Langley, 2009; Andrew’s Brain, 2014. Histórias curtas – Vidas dos Poetas: seis histórias e uma novela, 1984; Sweet Land Stories, 2004; Todo O Tempo No Mundo: histórias novas e selecionadas, 2011; Cuentos Completos (em Espanhol), 2015; Outros – Hino americano, ensaio fotográfico, 1982; Jack London, Hemingway e a Constituição (ensaios), 1993; Relatório do universo, 2003; Criacionistas (ensaios), 2006; Wakefield (história curta), 2008; Unexceptionalism: A Primer, 2012 .

Edgar Lawrence Doctorow, cujo primeiro nome lhe foi dado em homenagem a Edgar Allan Poe, nasceu no Bronx, bairro de Nova York, em 06/01/1931 e faleceu em 21/07/2015, aos 84 anos. Romancista, editor e professor americano, tornou-se mais conhecido mundialmente por suas obras literárias de ficção histórica. Sua trajetória literária se compõe de doze romances, três volumes de ficção curta e uma peça de teatro. Doctorow ganhou vários prêmios importantes e foi chamado pelo ex-presidente Barack Obama de “um dos maiores romancistas da América”. Tal afirmação não é exagero: Doctorow sempre foi reconhecido por sua versatilidade e originalidade.
O escritor criou narrativas utilizando-se de contextos históricos reconhecíveis, fazendo os personagens criados interagirem com personalidades históricas; desta forma, o efeito de verdade é bastante convincente. Seu estilo, pelo menos em Ragtime – obra que acabei de ler – é algo somente obtido por excelentes escritores, que dominam perfeitamente o fazer literário.
Ragtime se passa na América do pré-guerra, fornecendo-nos um amplo painel dos costumes, da estrutura social, da industrialização iniciante nos albores do Século XX. Servindo-se das ferramentas da ironia e do sarcasmo, E. L. Doctorow – como ficou conhecido – dispara sua metralhadora crítica para todo lado.
O título do livro, Ragtime, nomeia um ritmo muito em voga na época, sincopado, com marcações fortes no contratempo, escrito inicialmente em 2/4, depois evoluindo para 4/4. O que caracteriza o estilo não é propriamente a fórmula musical, mas o tipo de síncope. Difícil de entender, leitor? Lembre-se da música-tema The Enterteiner, do filme Golpe de Mestre, composta pelo expoente do estilo musical, Scott Joplin.
Doctorow, genialmente, utiliza uma escrita em que frases curtas se misturam a frases longas, recriando o ritmo sincopado do ragtime:
“Naquela noite, White compareceu à estreia de Mamzelle Champagne, no terraço do Madison Square. Estava-se em princípios de junho e no final do mês anterior uma forte onda de calor começara a matar bebês em todos os cortiços. As construções brilhavam como fornalhas e seus habitantes não dispunham de água para beber. O tanque no fundo da escadaria estava seco. Pais corriam as ruas em busca de gelo. Tammany Hall fora destruída pelos reformadores, mas os exploradores continuavam a monopolizar o gelo e a vender lascas a preços exorbitantes. Travesseiros eram colocados nas calçadas. Famílias dormiam em patamares e portas. Cavalos tombavam e morriam nas ruas. O Departamento Sanitário enviava carroças pela cidade para arrastar os animais que haviam morrido, mas o serviço não era eficiente. Cavalos explodiam devido ao calor. Os intestinos expostos fervilhavam de ratos. E nos becos dos bairros miseráveis, por sobre as roupas cinzentas que pendiam imóveis de cordas presas nos poços de ventilação, flutuava o cheiro de peixe frito.” (página 28)
Não à-toa, a expressão em inglês To be in rags significa “estar vestido em trapos, ser maltrapilho”.
O fio narrativo central é sobre uma família de classe média alta, vivendo em Nova York do início do século XX. Época da industrialização efervescente da América. Público sequioso por novidades e futilidades que o dinheiro dos nouveaux riches poderia proporcionar. Os nomes dos componentes desta família são designados, por um narrador crítico, como Papai, Mamãe, O Menino e O Irmão Mais Novo de Mamãe. Recurso que, parece, mais generaliza do que individualiza tais personagens, como se eles fossem representantes de uma categoria que se quer criticar.
Papai tem uma ascenção econômica vertiginosa por vender fogos de artifícios e artigos patrióticos, como bandeiras dos Estados Unidos. Festas e patriotismo exacerbado no país do american way of life. Não podia dar errado. Mas, sempre à procura de novidades, Papai se lança à exploração do Polo Norte junto a Robert Peary, suposto primeiro homem a atingir o Polo (hoje esta referência é questionada). 
Um romance, do ponto de visto de técnica de composição literária, é uma obra no qual dois ou mais núcleos narrativos convivem lado a lado, para depois convergirem para o núcleo central. É assim que temos, ainda, o drama vivido por Evelyn Nesbit (famosa modelo e cantora), Henry Ford (criador do famoso automóvel Ford modelo T), J. P. Morgan, milionário excêntrico e fundador do Metropolitan Museum of Arts de Nova York. Juntam-se a estes seres históricos o famosíssimo mágico Harry Houdini e Emma Goldman, ativista do anarquismo. Todos estes homens e mulheres reais interagem com a família fictícia de Papai.
Do ponto de vista estrutural, a presença forte do Irmão Mais Novo de Mamãe terá um papel importante na condução da história, já que será sua presença condutora do fio narrativo, “costurando” os capítulos.
Além da descrição de tons fortemente incisivos transcrita acima, temos essa voz crítica, sarcástica, do narrador em outros trechos:
“A arte egípcia, seu estilo, era escolhido para a decoração de interiores. Desapareceu o Luís XIV e entraram em moda as cadeiras-trono com serpentes esculpidas nos braços. Em New Rochelle, Mamãe não ficou imune à tendência e, achando opressivamente enfadonho o papel de parede com motivos florais, substituiu-o por um elegante padrão de homens e mulheres egípcias, olhos grandes e negros, toucados altos e saias curtas. Coloridos de ocre, azul e castanho, desfilavam pelas paredes àquela estranha maneira frontal dos egípcios, com abutres nas palmas das mãos, bagos de trigo, lírios aquáticos e alaúdes, acompanhados de leões, escaravelhos, corujas, bois e pés decepados do corpo. Papai, sensível a qualquer mudança, perdeu o apetite. Parecia-lhe impróprio sepultar-se para jantar.” (páginas 164/165)
Numa outra linha narrativa, a obra vai nos contar da vida de certo Tateh (significa ‘Papai’), viúvo de Mameh (‘Mamãe’) e pai de uma garotinha, um judeu socialista que inventara, para si, o título nobiliárquico de Barão. O mais interessante a respeito deste Tateh, evitando-se o spoiler, é que ele era um artista, elaborava complexas silhuetas.
A respeito das tais silhuetas, nos informa a revista que acompanha o Ragtime da TAG,  
“Em termos artísticos, a técnica foi inventada durante o Iluminismo, como uma distração elegante da aristocracia  do século XVIII. A silhueta é uma imagem de contornos de uma figura, matizada em uma única cor, dando a impressão de uma sombra projetada pela figura em questão.”
No contexto do romance, a alusão à Arte da Silhueta – palavra aportuguesada a partir do nome do criador francês Etienne de Silhouette (1709 – 1767) é significativa pela aproximação que podemos fazer do passatempo da aristocracia francesa e os maneirismos da América. Ainda, sendo a silhueta uma figura que sugere sombra, a referência à sombra americana – a impessoalidade da sociedade fútil envolvida com inutilidades – torna-se uma outra ferramenta crítica.
A posição libertária de Emma Goldman transparece num diálogo entre ela e a superficial Evelyn Nesbit:
“Afinal, prosseguiu Goldman, você nada mais é do que uma prostituta inteligente. Aceitou as condições em que se viu e triunfou. Mas, que espécie de vitória é essa? A vitória da prostituta. E quais foram as consolações? As do cinismo, do desprezo, do desprezo pelo gênero masculino. Por que sentiria um elo tão estreito com essa mulher, pensei comigo? Afinal, jamais aceitei a escravidão. Tenho sido livre. Toda a vida combati para ser livre. E nunca levei para a cama um homem a quem não amasse, um homem a quem não aceitasse no amor como um ser humano livre, meu igual, dando e aceitando em iguais porções  amor e liberdade. É provável que tenha dormido com mais homens do que você. Aposto que ficaria escandalizada se soubesse como fui livre, com que liberdade vivi a minha vida. Porque, como todas as prostitutas, você dá valor à propriedade. É um produto do capitalismo, cuja ética é tão absolutamente corrupta e hipócrita que sua beleza não passa da beleza do ouro, isto é, falsa, fria e inútil.” (página 67)
O capítulo 20 é dos que mais gostei no livro. Não poderia comentá-lo sem spoilers desagradáveis. Posso, entretanto, transcrever um diálogo muito bom entre o milionário J. P. Morgan e Henry Ford, constante do citado capítulo:
“Muito bem, prosseguiu Ford. Encontrei por acaso um livrinho intitulado An Eastern Fakir’s Eternal Wisdom, publicado pela Franklin Novelty Company de Filadélfia, Pensilvânia. E nesse livro, que me custou apenas 25 centavos, achei tudo que precisava para me tranquilizar. A reencarnação é a minha única crença, Sr. Morgan. Explico assim o meu gênio: alguns viveram mais vidas que outros. Assim, o que o senhor gastou com eruditos e viajando ao redor do mundo eu já sabia. E vou lhe dizer algo em agradecimento pelo almoço: empresto-lhe o livro.” (páginas 162/163)
Nota: Neste diálogo, Ford procura justificar seu saber, seu pioneirismo intuitivo, em comparação ao saber construído de Morgan.
Na efervescência da sociedade nova-iorquina o misticismo é uma verdadeira praga. Fraudes, modismos, ânsia pelas novidades faz com que o ilusionista Harry Houdini se torne uma espécie de “caçador de mitos”:
“Olhos vendados, revelava a um auxiliar cada item erguido para a identificação por alguém do público. Que é isto, Sr. Houdini? Perguntava o auxiliar. E ele respondia. Era tudo feito por meio de código. Às vezes alegava falar com os mortos e dava a um pobre homem incrédulo, cujo nome e circunstância obtivera, uma mensagem do ente querido falecido. Sabia, portanto, o que era fraude espiritista. Percebia-a. Esse tipo de fraude grassava nos Estados Unidos desde 1848, quando duas irmãs, Margaretta e Kate Fox, convidaram os vizinhos a ouvir as misteriosas batidas em sua casa de Hydesville, Nova York.” (páginas 209/210)
A própria presença de Harry Houdini, segundo minha opinião, não é gratuita. Vejamos: Houdini é o ilusionista, o especialista em fugas, venerado e admirado por todos. É um outro símbolo, dentro da linha argumentativa que dá suporte ao livro; mais uma vez, a dita sociedade americana idolatrando a ilusão. Aliás, consta também do livro a nascente indústria cinematográfica, a consolidar-se, mais tarde, na poderosa Hollywood.
Não só o narrador de Ragtime é crítico: o próprio Edgar Lawrence Doctorow disse, certa vez, em alusão ao escritor famoso Edgar Allan Poe, que lhe emprestara o primeiro nome, que Poe era “um dos nossos melhores escritores ruins”, num sarcasmo evidente.
Livro extraordinário, autor genial – coisas indiscutíveis, pelo menos para mim. Aconselho fortemente a leitura deste livro, mas ressalto que o candidato a leitor deverá ter duas características para melhor fruição do trabalho: gosto por ficção histórica e atenção às minúcias de estilo.
Afinal, Ragtime é um clássico e não podemos ler um clássico de maneira descuidada...

Nota atribuída: 10,0

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