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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Resenha nº 120 - A Livraria, de Penelope Fitzgerald


Resultado de imagem para livro a livraria penelopeTítulo original: The Bookshop
Título em português: A Livraria
Autora: Penelope Fitzgerald
Tradutora: Sônia Coutinho
Edição: 2ª
Editora: Bertrand Brasil
Copyright: 1978
ISBN: 976-85-286-2282-9
Páginas: 160
Gênero: Romance
Literatura inglesa
Bibliografia: Biografias – Edward Burne-Jones, 1975; The Knox Brothers, 1977; Charlotte Mew and Her Friends, 1984. Romances – The Golden Child, 1977 ; The Bookshop, 1978 ; Offshore, 1979 ; Human Voices, 1980 ; At Freddie’s, 1982 ; Innocence, 1986 ; The Beginning of Spring, 1988 ; The Gate of Angels, 1990 ; The Gate of Angels, 1990 ; The Blue Flower, 1995. Contos – The Means of Escape, 2000. Ensaios e análises – A House of Air, 2005. Cartas – So I Have Thought of You, 2008.


Acabara de sair do cinema, vivamente impressionado com o filme A Livraria, dirigido pela espanhola Isabel Coixet, a mesma diretora do visceral filme Fatal, estrelado por Penelope Cruz e Ben Kingsley, baseado no livro do americano Philip Roth, O Animal Agonizante. Sempre me interessam obras que envolvam temas como escritores e suas dificuldades, professores, livros. Pouco tempo depois, assombrado pela ideia de ler o livro que dera origem ao filme, comprei este A Livraria, de Penelope Fitzgerald (uma autora ainda não conhecida por mim) e mergulhei na leitura. Que livro bom de se ler! Só o larguei no fim.

Penelope Fitzgerald nasceu em 17/12/1916, em Lincoln, Inglaterra e morreu em 28/04/2000, aos 83 anos de idade, em Londres. Recebeu o prêmio Booker, dado pelo Círculo Nacional dos Críticos de Livros. Fortemente influenciada pelo pai e tios eruditos (Edmund Knox (pai), editor da revista Punch, de humor e sátiras; os tios eram Ronald Knox, teólogo e escritor criminal, Dillwin Knox, criptógrafo, Wilfred Knox, erudito bíblico e do romancista e biógrafo, Winifred Peck). Penelope teve a formação nos educandários Wycombe Abbey, Somerville College e na Universidade de Cambridge, onde se formou em 1938. Trabalhou na BBC durante a Segunda Guerra Mundial; em 1942, ela se casou com Desmond Fitzgerald. Os Fitzgerald editavam uma revista literária de nome World Review, na qual escritores como J. D. Salinger, Bernard Malamud, Norman Mailer e Alberto Moravia foram publicados pela primeira vez na Inglaterra. Desmond envolveu-se em falsificação de cheques, o que levou a família à falência. Para sustentar seus familiares, o casal deu aulas de teatro. Penelope também trabalhou numa livraria em Southworld Suffolk. A escritora deu aulas até os setenta anos.
A Livraria é uma pequena obra-prima da autora. Escrito com admirável concisão, é destes textos em que não há palavras em excesso, contando com fluidez e domínio da escrita, que nos faz devorar as 160 páginas rapidamente. A ambientação é numa cidadezinha de gente de mentalidade provinciana e acomodada, chamada Hardborough, onde a viúva Florence Green vai viver:
“Em 1959, algumas vezes Florence Green passava noites sem saber ao certo se havia dormido ou não. Isso acontecia por causa de suas preocupações quanto à eventual compra de uma pequena propriedade, a Old House, com um depósito próprio na região portuária, para abrir ali a única livraria de Hardborough. Provavelmente era a incerteza que a mantinha acordada. Certa ocasião, vira uma garça voando pelo estuário e tentando engolir, em pleno voo, uma enguia que havia capturado. A enguia, por sua vez, lutava para fugir da goela da garça e um quarto dela, uma metade ou, ocasionalmente, três quartos apareciam do lado de fora. A indecisão expressa por ambas as criaturas era algo deplorável. As duas haviam ultrapassado seus limites. Florence sentia que, se não dormia nada – e as pessoas, com frequência, dizem isso querendo expressar algo totalmente diferente –, era porque ficara acordada pensando na garça.” (página 17)
A protagonista do romance abre, então, com muitas dificuldades, a sua livraria. Entretanto, naquela pequena localidade, a Sra. Gamart, representante da classe mais abastada do local, também deseja a velha propriedade para ter ali uma Galeria de Arte.
Usando a já conhecida técnica de localizar a trama do romance numa localidade pequena, em que disseca as relações sociais nada saudáveis, Penelope traça um quadro analítico das influências de bastidores e “puxadas” de tapete, com alguns personagens utilizando até mesmo de meios políticos, como fazer aprovar uma lei que dificulte a vida de Florence, na sua luta já árdua por fazer funcionar uma livraria numa cidadezinha de vida tão medíocre.
Surgem, então, alguns personagens memoráveis, como a própria Florence Green, mulher forte e destemida; a Sra. Violet Gamart, que todos temem, embora ela se mostre hipocritamente suave e educada; Milo North, um ser humano abjeto, que irrita a nós, leitores, pelas suas características; o Sr. Brundish, possuidor de um passado forte, alguém que escolhe o afastamento deliberado de toda a sociedade; a menina Christine Gipping, que tanto influencia Florence quanto por ela é influenciada. Todas estas criaturas têm sérios problemas a resolver, como fica evidente no trecho transcrito abaixo:
“Se Florence era corajosa, era-o de uma maneira completamente diferente, por exemplo, do general Gamart, cujo comportamento permanecera igual, estando ele ou não sob fogo cruzado; ou do Sr. Brundish, que desafiava o mundo ao se recusar a admitir que entrassem em suas terras. A coragem dela, afinal, era apenas uma questão de sobrevivência.” (página 117)
Ponto de discórdia entre as pretensões de Florence e as da Sra. Gamart, a Old House é uma personagem dentro do enredo apresentado por A Livraria:
“A propriedade que Florence estava decidida a comprar não recebera seu nome a troco de nada. Embora nenhum dos imóveis fosse novo, até se chegar ao projeto inacabado de conjuntos habitacionais a noroeste, e muitas das casas datassem dos séculos XVIII e XIX, nenhuma delas se comprara à Old House, e apenas a Holt House, onde morava o Sr. Brundish, era mais antiga. Construída havia quinhentos anos, com terra, palha, galhos e vigas de carvalho, a Old House devia sua sobrevivência a um porão que a protegia das enchentes, ao qual se chegava por um lance de degraus de pedra. Em 1953, o porão ficara com mais de dois metros de água do mar, até a baixa da última enchente. Contudo, uma parte dessa água ainda continuava ali.” (página 29)
E, para completar, como uma boa e velha residência inglesa, a Old House contava com seu próprio fantasma:
“Os que viviam em Hardborough havia algum tempo também sabiam que a propriedade era mal-assombrada. O assunto não era nem um pouco evitado, mostrando-se bastante familiar a todos. Por exemplo, uma figura de mulher podia ser vista, algumas vezes, na plataforma de desembarque da balsa, mais ou menos ao entardecer, à espera de que seu filho voltasse, embora ele tivesse morrido afogado mais de um século antes. Mas a Old House não era assombrada de maneira tão comovente. Era infestada por um espírito barulhento que, juntamente com a umidade e um problema não resolvido dos esgotos, explicava, em parte, a dificuldade para a venda da propriedade. O corretor da casa não estava, de forma alguma, legalmente obrigado a mencionar o fantasma, embora, algumas vezes, aludisse a ele com a expressão uma atmosfera incomum.” (página30)
Este espírito que coabitava a Old House era chamado, pelos locais, de batedor, por sua característica de fazer-se notar por meio de batidas nas paredes e nos móveis. A existência de um espírito com estas características nos remete ao famoso caso das irmãs Fox, nos Estados Unidos, em que a casa, ocupada pela família Fox, era assombrada por um fantasma batedor, que, mais tarde se soube, era vítima de um crime de assassinato, cujo corpo havia sido enterrado na propriedade. Aliás, nos meados do século XIX os jornais noticiavam fenômenos “inexplicáveis” acontecendo em muitas partes do mundo, levando até mesmo homens e mulheres da burguesia, sem coisas mais interessantes para fazer, a realizarem sessões de invocação de espíritos.
Tais fenômenos foram investigados pelo inicialmente cético professor Hyppolite Léon Denizard Rivail, mais conhecido sob o pseudônimo de Allan Kardec, codificador do Espiritismo.
Personagem de construção muito interessante é Milo North, empregado da BBC de Londres e habitante de Hardborough, frequentador das festas promovidas pela socialite Violet Gamart:
“Milo North era alto e levava a vida de uma forma singular, com muito pouco esforço. Dizer “Eu sei quem é a senhora, não é a Sra. Green?” representou uma emissão pouco habitual de energia. Nele, o que parecia delicadeza era habitualmente uma maneira de fugir dos problemas; e o que parecia simpatia representava o instinto de impedir que os problemas começassem a acontecer. Era difícil prever o que significaria envelhecer para uma pessoa assim. Suas emoções, por falta de exercício, haviam desaparecido quase por completo. Ele havia descoberto que adaptabilidade e curiosidade funcionavam igualmente bem.” (página 36/37)
A pequena ajudante que se apresenta à livraria de Florence é Christine Gipping, para trabalhar no período depois da escola. Christine é uma personagem límpida, ainda não tocada pela hipocrisia reinante na cidadezinha:
“— Você é Christine Gipping, não é? Pensei que sua irmã mais velha...
Christine respondeu que, como os entardeceres estavam mais longos, sua irmã mais velha costumava ficar lá pelo meio do mato, com Charlie Cutts. Na verdade, ela acabara de ver as bicicletas dos dois escondidas embaixo das samambaias, na encruzilhada.
— A senhora não precisa se preocupar com nada disso, no meu caso – acrescentou ela. – Só completo onze anos no próximo mês de abril. Meu incômodo ainda não chegou.
— E sua outra irmã?
— Ela gosta de ficar em casa e cuidar de Margaret e Peter. São os menores. Foi bobagem pôr esses nomes neles; nunca houve nada entre ele e a princesa.
— Por favor, não imagine que não quero considerar você apta ao emprego. Mas é que não parece ter idade nem força suficientes.
— Não julgue pela aparência. A senhora tem idade, mas não parece forte. Desde que alguém da nossa família fique com o emprego, não faz muita diferença. Somos todos jeitosos.” (páginas 74/75)
O Sr. Brundish é outro bem-acabado personagem de A Livraria:
“O Sr. Brundish ignorou, ou talvez jamais lhe tivessem ensinado, a convenção cortês de nunca olhar fixamente para alguém. E ele fez exatamente isso. Encarou Florence como se estivesse surpreso até mesmo com o fato de ela se achar ali, mas ela se sentiu encorajada pela obsessiva concentração dele.
— Posso voltar para a minha primeira pergunta? Estou pensando em fazer um primeiro pedido, de duzentos e cinquenta exemplares, de Lolita, o que representa um risco considerável; mas claro que não o consulto de um ponto de vista comercial; seria completamente errado. Tudo que eu gostaria de saber, antes de fazer o pedido, é se o senhor acha que é um bom livro e se é certo eu vendê-lo em Hardborough.
— Ouso dizer que não dou tanta importância quanto a senhora às noções de certo e errado. Li Lolita, como pediu. É um bom livro; portanto, a senhora deve tentar vendê-lo aos habitantes de Hardborough. Não o entenderão, mas é preferível assim. Entender torna a mente preguiçosa.” (páginas 109/110)
Para quem não entendeu a referência ao romance Lolita, de Vladimir Nabokov – e para deixar claro o tamanho do risco em que Florence estava se metendo – trata-se de um livro explosivo, considerado mais que pornográfico, pedófilo. O maduro Humbert Humbert se envolve sexualmente com uma menina chamada Lolita; ele não só não reconhece a própria conduta reprovável, como tenta se justificar diante da justiça que o prendeu, alegando que Lolita não tinha nada de inocente, já tendo tido experiências sexuais anteriores.
Lolita, por conseguinte, só pôde ser editado na França, por uma inexpressiva editora. Houve comentários, elogios, condenações por toda a parte. O título chegou a ser cassado. Foi proibida a sua publicação nos Estados Unidos. Hoje, é tido como um dos importantes (e continua polêmico) trabalhos literários, ensejando outras interpretações e relações que as simplesmente superficiais.
Florence padece das dificuldades de uma mulher sozinha, sem raízes locais, corajosa a ponto de afrontar o poder representado na Sra. Gamart; a Old House centenária, construção decadente que ninguém queria ocupar, mas que se torna a pedra de escândalo quando ali a Sra. Green resolve morar e instalar sua livraria, representa a própria decadência social de Hardborough. Não à-toa, o espírito batedor é inserido ali pela autora e pode-se interpretar sua atuação como o incômodo das “forças ocultas, de bastidores” contra as quais luta a livreira.
Pelos trechos selecionados, expondo sempre personagens, você, leitor inteligente, já percebeu que A Livraria é, sobretudo, um romance de crítica social, focado nas perversidades de jogos de interesses dos vários seres desta pequena e hipócrita Hardborough. Nela, tudo é tão contaminado pelas vontades e manobras da elite local, que até o advogado de Florence Green, que deveria defendê-la, a acusa, embora em tom relativamente educado. Tal postura obriga-a, em uma correspondência, de classsificar o profissional com um sonoro covarde.
Considero A Livraria, de Penelope Fitzgerald, um livro de leitura prazerosa e oportuna para o momento por que passa o Brasil. Mas não só: é livro muito interessante para ser lido em qualquer época. Trata-se de obra candidata a várias releituras.
Nota atribuída: 9,5/10

domingo, 15 de abril de 2018

Livro Livre, por Cleuber Marques da Silva



Imagem: trabalho de Emma Taylor, obtido em www.konyvkultura.kello.hu/kepgaleriak/emma-taylor

Texto: Cleuber Marques da Silva

É uma hora qualquer, qualquer hora do dia. Abro a capa do livro, salto as páginas iniciais, que já conheço e vou direto para o texto, que ainda não conheço. Meus olhos sequiosos procuram as palavras inscritas sobre a folha (de preferência, em papel amarelado) e a minha consciência se transporta para outro lugar.
Lá fora ficam o mundo real e suas necessidades, medos, fortes apelos. Eu estou lendo. Não sinto as complexas ligações entre as sinapses do meu cérebro. Apenas confirmo o seu efeito: enquanto os olhos, ligeiros, saltam de frase em frase, de período em período, de parágrafo em parágrafo, minha mente me dá o entendimento do que leio.
De vez em quando, são extraídos do fundo da memória fatos acontecidos, outros textos ruminados, sentimentos já vividos e eles vêm coparticipar do texto que leio. Enchem lacunas informativas e sensoriais que, necessariamente, toda escrita traz em si; enriqueço-a e enriqueço-me com este comensalismo.
Personagens – entidades misteriosas encarnadas em palavras – me fazem sentir raiva, requestam meu amor, me fazem torcer por seu sucesso ou fracasso, dependendo do caso. São seres sedutores, cheios de artimanhas discursivas: não só conduzem a narrativa, enchendo-a de uma espécie de humanidade de segunda instância, mas vivem uma estranha dualidade, pois tanto servem o texto, quanto por ele são servidos.
Muitos dos meus processos químicos, físicos ou biológicos são fortemente influenciados pela leitura. Às vezes, os batimentos do meu coração se aceleram; por vezes, minhas pupilas se abrem mais sob a escuridão de uma passagem, ou se fecham, sob a luz de outras. Os músculos se retesam sob o ataque do suspense bem construído ou se relaxa, quando, findo todo o conflito e após a descarga do clímax, vem a paz dos grandes finais. Ler é um ato sensual e potencialmente libertador.
No tocante à leitura, vivo uma fase de profunda realização: só leio o que desejo ler. Ninguém me força, nenhuma encomenda – nada. E, aos poucos, vou inclusive desconstruindo certas bobagens que me ensinaram. Não sou obrigado a gostar previamente de nada. Se leio algum clássico, é porque ele me interessa; se leio algum best-seller sem grandes pretensões, e daí? Sou livre para ler o que me liberta.
Experiências novas, textos novos, leio quadrinhos, graphic novels, livros tolinhos e sabichões. Nesse mix maluco e atual, a única coisa que busco, de modo muitas vezes inconsciente, é entender o Ser Humano em seu Mundo. Entender-me como Ser Humano em meu Mundo. E, ao escrever estas duas últimas frases, minhas associações mentais me esclarecem: elas nada mais são que uma espécie de perífrase do “amar o próximo como a ti mesmo”. E, em assim sendo, atestam a força dos substratos religiosos.
Pergunta que me fica, andando à volta da minha mente, será esta busca tão sôfrega por ler livros, produzidos por tantas culturas diferentes, uma forma de amar o próximo?

sábado, 14 de abril de 2018

Resenha Nº 119 - Xamã, de Noah Gordon


Resultado de imagem para livro XamãTítulo original: Shaman
Título em português: Xamã
Autor: Noah Gordon
Tradutor: Aulyde Soares Rodrigues
Edição: s/ed.
Editora: Rocco
Copyright: 1992
ISBN: 85-325-0406-x
450 páginas
Romance americano
Bibliografia do autor: O Rabino, 1965; O Comitê da Morte, 1969; O Diamante de Jerusalém, 1979; O Físico, 1986; Xamã, 1992; A Escolha da Dra. Cole, 1996; O Último Judeu, 2000; Sam e Outros Contos de Animais, 2005; La Bodega, 2007 (no Brasil, todos os títulos publicados pela Editora Rocco).

Noah Gordon nasceu em Worcester, EUA, em 11/11/1926. Serviu no exército, durante Segunda Guerra Mundial; após esta conflagração, entrou para o curso de pré-medicina, por pressão dos pais. Cursou apenas um semestre. Transferiu-se para o curso de jornalismo e se formou em 1950. Atuou como editor em algumas revistas, tendo publicado seu primeiro romance O Rabino em 1965. Seus trabalhos falam a respeito da história da medicina e ética médica; mais recentemente, passaram a focar a inquisição e a herança cultural judia.
Xamã é o segundo volume escrito por Noah, envolvendo a história da medicina. Temos aqui um pano de fundo dos primórdios dos Estados Unidos. Tribos de índios perpassam todo este pano, sofrendo a imposição do homem branco, que lhes rouba as terras sagradas. De importância capital, tanto para a história americana, quanto para esta história específica, há a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, travada de 1861 a 1865, entre os estados escravagistas do Sul e os do Norte, abolicionistas. O Sul declarara sua secessão, ou separação do resto do país e formaram os Estados Confederados da América; não aceitando tal imposição, o governo central envia, então, suas tropas para reaver a parte rebelde e o resultado, além da derrota dos confederados, é um saldo macabro em torno de seiscentos mil americanos mortos.
A narração da chegada do Dr. Cole a terras americanas se inicia a partir da parte 2 do livro:
“Rob J. Cole viu o Novo Mundo pela primeira vez num dia nublado de primavera, quando o Cormorant – um navio feioso, com três mastros atarracados e vela de mezena, o orgulho da Linha Black Ball – foi sugado pela maré cheia para dentro do imenso porto e desceu a âncora no mar picado. O leste de Boston não era uma grande coisa, umas duas fileiras de casas de madeira mal construídas, mas, num dos píeres, por três pence ele comprou uma passagem num pequeno barco a vapor que, ziguezagueando entre um número incrível de embarcações, atravessou a baía na direção do cais principal, um amontoado de casas e lojas com o cheiro familiar de peixe podre, porão de navio e corda alcatroada, como qualquer porto escocês.” (página 23)
Como vimos no livro anterior, O Físico, a família Cole – escocesa de origem – tinha uma particularidade: entre os homens, manifestava-se o dom, isto é, uma espécie de sexto sentido, pelo qual um Cole podia sentir, ao tomar as mãos de uma pessoa, se ela iria morrer logo. Rob J. Cole era médico, como aquele seu antecessor da idade média, no primeiro volume desta saga e tinha o mesmo dom.
Fugido de sua terra, por incongruências políticas contra poderosos, deixara lá sua família e terras a que tem direito de herança. Sua vida no Novo Mundo não será fácil. Ainda mais porque, logo de cara, ele assume uma forte posição contra três frentes polêmicas: era um abolicionista, defendia os índios e atendia os pobres e deserdados, ao invés de se dedicar à classe endinheirada.
Ele se estabelece num lugarejo chamado Holden’s Crossing, onde compra terras. Nicholas Holden é o maioral do vilarejo e quando percebe que o doutor Cole deseja viver ali, facilita-lhe as coisas, pois deseja que o lugar se desenvolva e eleve seu nome emprestado ao local. Um médico ali é algo muito importante politicamente. Nicholas tem aspirações políticas.
Estabelecido, Rob inicia seu ofício. É um jovem médico, disposto, idealista. Percorre enormes distâncias a cavalo, para tender seus pacientes; nem sempre recebe qualquer valor em espécie pelas suas visitas. Com o desenvolvimento de Holden’s Crossing, outro médico começa a atender ali, mas Cole é muito querido pelo povo por sua dedicação e seriedade. E as coisas ficam mais complicadas quando o doutor emprega alguns índios da tribo sauk, de nomes Pyawanegawa (Chega Cantando), Makwa-ikwa (Mulher Urso) e Lua, mulher de Chega Cantando, como trabalhadores em sua fazenda.
A relação com a pele-vermelha Makwa-ikwa torna-se muito intensa, por uma questão inicial de afinidade: ela era uma espécie de médica-profetisa da tribo dos sauks:
“Quando chegou em casa, Rob escreveu no seu diário e tentou desenhar a mulher índia, porém, por mais que tentasse, tudo o que conseguiu foi um rosto que podia ser de qualquer índio, de qualquer sexo, e marcado pela fome. Precisava dormir, mas o colchão de palha não parecia convidativo. Sabia que Gus Schroeder tinha espigas de milho secas para vender e Alden dissera que Paul Grueber tinha algum grão sobrando. Naquela tarde, montado em Meg e puxando Mônica, ele voltou para o acampamento dos sauks e deixou dois sacos de milho, um de nabo sueco e outro de trigo.
A curandeira não agradeceu. Apenas olhou para as sacas de mantimento, deu algumas ordens e mãos ansiosas tiraram imediatamente do frio e da neve, levando-as para dentro dos tipis. O vento mais uma vez abriu o capuz. Era uma legítima pele-vermelha. Sua pele era um marrom-avermelhado, o nariz curvo, as narinas quase negroides. Os olhos castanhos eram enormes e o olhar direto. Rob perguntou como se chamava e ela disse Makwa-ikwa.
— O que significa, na minha língua?
— Mulher Urso – respondeu ela.” (página 65)
Uma bela amizade, sem segundas intenções, entre duas almas que se integram.  Ademais, Makwa-ikwa perderia seus dons de profetisa e de curandeira se se deitasse com um homem.
Mas o Dr. Cole termina se apaixonando por uma mulher local, com um passado bastante complicado segundo a moral vigente. Sarah já era mãe de um filho, Alex, a quem Rob se dedica como pai. Logo, desta relação com Sarah nasce o filho Robert Jefferson Cole, que, mais tarde, será chamado de Xamã ou Cawso wabeskiou (Xamã branco), como o pai também o fora. O filho também tinha o dom.
Uma outra relação forte é entre o Dr. Cole e a madre superiora Miriam Ferocia. Na comunidade protestante, os católicos não eram bem vistos e aquela congregação de religiosas, vestidas de um hábito marrom, logo foram chamadas de “malditos besouros marrons”. Eram uma ordem de enfermeiras, que irão ajudar muito o médico.
Fato capital para o desenvolvimento do livro Xamã é o estupro e assassinato de Mikwa-ikwa. O Dr. Cole não consegue superar tal acontecimento:
“Ela estava coberta com um lençol. Não fora deixada ali por Jay, nem por nenhum dos sauks. Provavelmente dois ajudantes de London, porque a tinha jogado, quase descuidadamente, na mesa de dissecação, de lado, como um objeto inanimado e sem valor, um tronco de madeira ou uma mulher índia. O que ele viu primeiro, quando ergueu o lençol, foi a nuca e as costas nuas, as nádegas e as pernas.
 A lividez post-mortem indicava que ela estava deitada de costas quando morreu. As costas e as nádegas apresentavam manchas roxas de sangue capilar coagulado. Mas na crena anal violada, ele viu uma rugosidade vermelha e líquido branco seco, tingindo de vermelho onde se misturava com o sangue.” (página 165)
Estoura a Guerra Civil americana. Lutam Norte contra Sul. Rob Cole participa dela como médico, sem nunca se livrar das lembranças da sua discreta amiga índia e incomodado pela impunidade dos criminosos. A pergunta que o assombra é: conseguirá encontrar os assassinos?
Xamã, a despeito de sua surdez, motivada por uma doença, luta para ser médico. Luta mesmo contra a orientação do pai, para quem ele jamais poderia ser um profissional da área da saúde. No entanto, o rapaz é persistente e diante disto, o Dr. Cole começa a instruí-lo. Mais tarde, após muita recusa, ele consegue uma vaga numa escola de medicina, sob observação, para ver se ele daria conta de aprender, tendo o obstáculo da surdez. Xamã torna-se um dos melhores.
Xamã retorna para sua casa em Holden’s Crossing. Reencontra Alden, o empregado da fazenda, sua mãe. Sente falta de Alex, que está servindo como soldado na detestável Guerra Civil, sente falta da presença tranquila de Makwa-ikwa, sente a falta do pai morto:
“Era quase noite fechada. Xamã sentiu que Makwa queria lhe dizer alguma coisa. Já tinha acontecido antes, e ele quase sempre acreditava que esse era o motivo daquela raiva que pairava no ar, não poder dizer a ele o nome do seu assassino. Queria perguntar a ela o que devia fazer, agora que seu pai não existia mais. O vento ondulava a água. As primeiras estrelas apareceram pálidas no céu e Xamã estremeceu. O inverno não tinha acabado de todo, pensou, ao voltar para casa.” (página 17)
O filho do Dr. Cole, ele mesmo agora um doutor, se estabelece também em Holden’s Crossing, tratando dos mesmos pacientes do pai, e outros mais, que vêm integrar a localidade em desenvolvimento. Muitas características paternas são herdadas por ele; a honestidade, a competência profissional, a opção pelos mais pobres, a valorização dos índios, a consideração para com os negros:
“O major Poole perguntou a quais associações ele pertencia e Xamã disse que durante toda sua vida pertencera apenas à Sociedade para Abolição da Escravatura, quando estava no colégio, e à Sociedade de Medicina de Rock Island.
— O senhor é um copperhead[1], Dr. Cole?
— Não, não sou.
— Não tem nem um pouco de simpatia pelo sul?
— Não acredito em escravidão. Quero que a guerra termine sem mais sofrimento para todos, mas não sou a favor da causa do sul.” (página 436)
Caberá ao jovem Xamã a tarefa de resgatar seu irmão Alex, prisioneiro dos confederados e encontrar os assassinos de Makwa-ikwa.
Sarah, mãe de Xamã, é outra personagem bem construída, que vai crescendo à medida que a narração se desenvolve. É muito bonita a cena em que ela, já viúva, fala de seu passado ao filho:
“— Não que desse para notar. Acho que Will Mosby me amava e teria casado comigo, mas ele levava uma vida perigosa e escolheu exatamente aquele momento para ser morto. Nick se afastou, embora eu sempre achasse que ele era o pai de Alex. Então Alma e Gus chegaram e compraram a terra, e acho que ele sabia que os Schroeder iam me alimentar. Quando Alex nasceu, Alma estava comigo, mas a pobre mulher se descontrolou numa emergência e eu tive de dizer a ela o que devia fazer. Depois que Alex nasceu, durante alguns anos minha vida foi a piro possível.  Primeiro, foram meus nervos, depois minha barriga, e isso provocou a formação de pedras nos rins. – Ela balançou a cabeça. – Seu pai salvou a minha vida. Até ele chegar, eu não acreditava que podia existir um homem bom e gentil no mundo todo. A verdade é que eu tinha pecado. Quando você perdeu a audição, eu sabia que era castigo e que a culpa era minha, e mal podia chegar perto de você. Eu o amava demais e minha consciência me atormentava. – Estendeu a mão e tocou o rosto dele. – Eu sinto muito que você tenha uma mãe tão fraca e pecadora.
Xamã segurou a mão dela.
— Não, você não é fraca, nem pecadora. É uma mulher forte que precisou de muita coragem para sobreviver. Por falar nisso, foi preciso muita coragem para me contar essa história.  Minha surdez não é culpa sua, mamãe.  Deus não quer castigá-la.  Nunca tive tanto orgulho de você, e nunca a amei mais do que agora.” (página 412)
Xamã é outro belíssimo livro desta saga familiar e história da medicina criada por Noah Gordon. Como este já é o segundo volume, embora não seja, propriamente, uma série, já que podemos começar a ler a partir de qualquer dos livros, sem perda de conteúdo, creio que podemos apontar algumas características da saga. Livros bem escritos, bem pesquisados, forte contextualização; personagens fortes, escudados por uma moral exemplifica-dora; presença de bom humor, algumas piadas, que aliviam o drama do texto.
Especificamente para Xamã, há uma mensagem moralizadora, a vingança não vale a pena. Noah Gordon parece ter muito apreço pela cultura tradicional indígena, mormente no tocante às questões medicinais. Ele propõe, na verdade, bem mais que isto: uma integração do homem branco aos indígenas, aos imigrantes e aos negros.
Li em vários depoimentos que Xamã não acompanha o nível de O Físico, com que não concordo. Para mim, ambos estão no mesmo nível. Entretanto – e aí está o motivo de eu não ter dado exatamente a mesma nota para os dois trabalhos, apenas uma questão subjetiva, refletida numa nota fortemente subjetiva – afinizei-me mais com uma narrativa cujo pano de fundo era a idade média do que a Guerra de Secessão americana. Outro ponto a ser comentado é do personagem no qual se concentra o encantamento. Em O Físico, claramente esta função é do Avicena. Homem sábio, forte, reto – nos encanta de maneira destacada. Ele é sustentado durante uma boa parte da história, do meio para o fim.
Já em Xamã, não temos um personagem com a mesma e evidente força intelectiva e moral, esta característica do encantamento é pulverizada em alguns personagens. Makwa-ikwa poderia ser tal personagem com função de encantamento, repositório da sabedoria dos ancestrais e de caráter reto. Mas Noah a mata muito cedo. E há ainda muita narrativa pela frente. Detalhes de narratologia.
Entre os temas e subtemas da obra, temos a escravidão como algo errado; o direito dos índios de terem suas terras reconhecidas; a defesa dos oprimidos; a guerra, que não se justifica, ainda mais se for entre irmãos; o respeito ao conhecimento de ervas e remédios naturais; o pacifismo em contraposição à belicosidade; a intolerância religiosa e social.
Claro se observa, gostei muito deste segundo volume da história da medicina. Nos dois aprendi bastante sobre cultura, hábitos, costumes da Idade Média (O Físico) e a construção de um grande país (Xamã). Recomendo a leitura não só para aqueles mais aficionados, que gostem de acompanhar uma história bem contada, mas também para aqueles que gostem de aprender alguma coisa sobre uma época, uma civilização. Pertenço às duas categorias.
Nota atribuída: 9,7




[1] Copperhead: facção do partido democrata que tinha simpatia pelos confederados e queria uma solução pacífica para o conflito. Os democratas anti-guerra não encaravam este termo como injurioso, tendo mesmo orgulho em nomear-se coppers. Copperhead é o nome de uma cobra venenosa, em inglês.

domingo, 8 de abril de 2018

Resenha Nº 118: A Arte Francesa de Mandar Tudo À Merda, de Fabrice Midal


Resultado de imagem para livro a arte francesa de mandar tudo à merdaTítulo original: Foutez-vous la Paix !
Título em português : A Arte Francesa de Mandar Tudo À Merda
Autor: Fabrice Midal
Tradutor: André Telles
Editora: Planeta
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-422-1235-8
Gênero: Autoajuda
Número de páginas: 194
Bibliografia do autor: Trungpa, Biographie, Paris, 2002; Le Bouddhisme à travers 100 chefs-d'œuvre, Paris, Presses de la Renaissance, 2007 ; Introduction au Tantra Bouddhique. L'incandescence de l'amour, Paris, Fayard, 2008 ; ABC du Bouddhisme, Éditions Grancher, 2008 ; Jackson Pollock ou l'invention de l'Amérique, Éditions du Grand Est, 2008 ; Rainer Maria Rilke, l'amour inexaucé, Paris, Le Seuil, "Points", 2009 ; Risquer la liberté. Vivre dans un monde sans repères, Paris, Le Seuil, 2009 ; Pourquoi n'y a-t-il-pas de chemin spirituel possible sans un maître ?, Éditions du Grand Est, 2009 ; La voie du Chevalier. Dépassement de soi, spiritualité et action, Paris, Payot, 2009 ; Et si de l'amour on ne savait rien ?, Paris, Albin Michel, 2010 ; Préceptes de vie des philosophes grecs, Presses du Châtelet, 2010 ; Mandalas. Retrouver l'unité du monde, Paris, Le Seuil, 2010 ; Pourquoi la poésie ?, Paris, Pocket, « Agora », 2010 ; Conférences de Tokyo. Martin Heidegger et la pensée bouddhique, Paris, Le Cerf, 2012 ; Auschwitz, l'impossible regard, Paris, Le Seuil, 2012 ; La Voie du Chevalier. Pratique de la méditation laïque, Paris, Payot & Rivages, 2014 ; Frappe le ciel, écoute le bruit : Ce que vingt-cinq ans de méditation m'ont appris, Paris, Pocket, 2014 ; Comment la philosophie peut nous sauver : 22 méditations décisives, Paris, Flammarion, 2015 ; La méditation, PUF, « Que sais-je ? », 2017

Nascido em 29 de setembro de 1967, em Paris, Fabrice Midal é filósofo, fundador de L’École Occidentale de Méditation. Reivindica um budismo laico, adaptado, portanto, das fontes tradicionais desta grande religião oriental. Em 1988, ele encontra o filósofo chileno Francisco Varela, que o inicia na prática da meditação. Fabrice Midal dá continuação ao seu aprendizado e estuda com mestres do budismo tibetano.
Em 1999, ele defende tese de doutorado em filosofia, na Universidade Paris I, sobre o tema "o sentido do sagrado nas obras de arte modernas". Torna-se um requisitado autor de livros sobre meditação e é considerado, hoje, a maior autoridade francesa sobre tais questões.

Entrei na livraria com o objetivo único de comprar o livro "A Livraria", da escritora inglesa Penelope Fitzgerald. Havia assistido ao filme homônimo e – tendo gostado muito – desejava ler o livro que lhe dera origem. Mas, na mesma bancada de livros, este "A Arte Francesa de Mandar Tudo À Merda", com sua chamativa capa branca com letras vermelhas me despertou a atenção. Tomei-o; li a quarta capa e resolvi conceder algum tempo de análise ao volume. Tentei esquecer o título apelativo de que não gostava, uma clara ação de marketing que navega nas mesmas águas do estrondoso sucesso de vendagem do americano Mark Manson, "A Sutil Arte de Ligar O Foda-se".
Considerei cuidadosamente o índice dos quinze curtos capítulos. Folheei o livrinho, pinçando aqui e ali algum trecho. Junto com o outro volume decidido, "A Livraria", levei-o ao vendedor, que já me conhecia. “Ah, você não gostaria de ver um outro livro, lançado anteriormente a este, que está vendendo muito, as pessoas voltam para comprar outro volume para darem de presente aos amigos? E qual é, indaguei. "A Sutil Arte de Ligar O Foda-se".”
Executei com ele o mesmo procedimento de análise do livro francês. Seguindo basicamente, no cômputo final, minha intuição ou sensibilidade textual, optei pelo exemplar de Fabrice Midal. Creio, para esta escolha foi fundamental a sólida bibliografia apresentada ao final do volume; reconheço que a minha formação acadêmica tem muito a ver com a escolha.

Já na cafeteria, no mesmo piso da livraria, enquanto esperava ser atendido, iniciei a leitura. Foram-se a introdução, o primeiro e o segundo capítulos. Boa impressão: achava ter acertado na opção. No mesmo dia acabei de ler o volume de 194 páginas, escrito num estilo leve e divertido.
Antes de entrar propriamente na apreciação do livro, desejo avançar alguns comentários a respeito do que se convencionou chamar ‘gênero de autoajuda’. Há pelo menos dois níveis conceituais, pelos quais podemos entender um livro como sendo enquadrado nesta classificação; uma, mais geral, não se constituindo propriamente um gênero à parte, e outra, mais restrita e por isso mesmo, pertencente a um determinado gênero.
No sentido amplo, qualquer livro pode ser considerado de autoajuda. Se pensarmos que a experiência de leitura, mesmo variada, pode nos incutir ideias e desejos, reações e sentimentos, isto será mais claro. Um dos maiores livros de autoajuda que conheço, dentro desta proposta, é a Bíblia. Quantas pessoas se beneficiaram de sua leitura? Quantas ainda se beneficiam? Há ali belíssimos e interessantes textos, independente de qual a religião se professe.
Clássicos podem ser de autoajuda, também. Agora mesmo acabei de ler O Morro dos Ventos Uivantes e a figura do protagonista, Heathcliff, me impressionou tremendamente. “Não gostaria de ser como ele”, pensei comigo mesmo. E este homem estranho, egoísta, fechado em seu mundinho torpe me disse alguma coisa exatamente porque alguns de seus defeitos – humanos – fizeram com que os identificasse em mim.
No sentido restrito, formando as características de gênero, a coisa muda. Geralmente, são textos bobos, com uma fraseologia superficial, açucarada como ‘sorria para o mundo e o mundo sorrirá pra você’. Coisas do tipo. Simplesmente abomino tais livros, embora respeite quem goste deles. Há público para tudo.
A Arte Francesa de Mandar Tudo À Merda, em que pese o oportunismo marqueteiro do título, traz, a meu ver alguma contribuição ao leitor. Sua tese central é a de que somos seres extremamente pressionados, infelizes, derrotados por termos perdido a capacidade de dialogar com nós mesmos; em última análise, estamos perdendo a nossa essência. E o pior – Midal cita apropriadamente Discurso da Servidão Voluntária, do também francês Étienne de la Boétie – com nossa própria aquiescência. Eis o trecho:
“Étienne de la Boétie, conhecido por sua amizade com Montaigne, escreveu ainda muito jovem, em 1549, um livro inusitado, Discurso da Servidão Voluntária. Esse texto prodigioso foi ‘esquecido’ durante séculos, antes de ter sido reabilitado em parte por Gandhi, o apóstolo da não violência. Nele, La Boétie faz uma pergunta surpreendente: por que os homens desistem tão facilmente de sua liberdade para obedecer a outro? Uma das razões, ele diz, é nosso medo de perder a parcela de poder que detemos, por mínima que seja. A ideia é resumida por esta fórmula que, infelizmente, não perdeu nada de seu brilho: ‘O tirano tiraniza graças a uma série de pequenos tiranos, tiranizados sem dúvida, mas tiranizando por sua vez.” (página 22/23)
Obedeço por que não quero criar problemas. Afundo-me no sistema porque sou beneficiado por ele.
São quinze capítulos com títulos instigantes, outra característica de um livro que deseja ser lido: 1) Pare de Meditar, Não Faça Nada; 2) Pare de Obedecer, Você é Inteligente; 3) Para de Ser Sábio, Seja Entusiasta; 4) Pare de Ser Calmo, Fique em Paz; 5) Para de Se Reprimir, Deseje; 6) Para de Ser Passivo, Saiba Esperar; 7) Pare de Ser Consciente, Seja Presente; 8) Pare de Querer Ser Perfeito, Aceite As Adversidades; 9) Pare de Tentar Entender Tudo, Descubra O Poder da Ignorância; 10) Pare de Racionalizar, Relaxe; 11) Pare de Se Comparar Aos Outros, Seja Você Mesmo; 12) Pare de Sentir Vergonha, Seja Vulnerável; 13) Pare de Se Torturar, Seja Seu Melhor Amigo; 14) Pare de Querer Amar, Seja Benevolente; 15) Pare de Controlar Seus Filhos, Meditação Não É Ritalina.
Por estes títulos, fica claro que o autor parte para uma redefinição de uma série de termos, postos como contrários pela estrutura ‘pare de fazer ou ser isto; no lugar, outra coisa’.
Fabrice Midal trabalha um novo conceito do que seja meditar: para ele, meditar não é não pensar em nada, impor um vazio à mente. Ser calmo o tempo todo, nos diz ele, só será possível ao morto ou ao psicopata. Seria não reagir à realidade que nos cerca:
“Dito isso, extasiar-se não significa esquivar-se da realidade, nem sonhar com os olhos abertos. Extasiar-se não é recusar se confrontar com as dificuldades do cotidiano – e deixar seu ônus para os outros. Extasiar-se não é deixar-se devorar por essas dificuldades, é também enfrentá-las, mas admitir que elas não constituem senão parte da realidade. Cabe a nós procurar onde está a outra parte, reconhecer, num primeiro momento, que nem tudo vai mal e que se trata simplesmente de pequenos dissabores, que não conseguirão estragar toda a nossa existência.” (página 168/169)
Outro trecho muito bem colocado segue-se na página 169:
“ ‘Viver é tão subversivo que deixa pouco espaço para as outras ocupações’, escreve Emily Dicksinson, uma poeta que aprecio. Mas estamos tão assoberbados por essas outras ocupações que nos esquecemos de existir. Habitamos permanentemente um personagem: aqui sou mãe (ou pai) e devo me comportar de determinada maneira, ali sou enfermeira ou enfermeiro e devo agir e devo agir de determinada maneira, ou funcionário público e cumpre-me atuar como funcionário público. Sou essas máscaras que eram usadas no teatro grego antigo para definir o personagem: um homem ou uma mulher, um cômico ou um trágico, um humano ou um deus, um herói ou um vilão. Vamos de máscara em máscara, por trás das quais nos dissimulamos. Mas quando é que eu sou eu? Quando é que toco a vida nua e crua, essa coisa que não controlamos, que não decidimos, que não dominamos e que está aqui, só podendo, no fundo, nos extasiar? Prisioneiro de todas as minhas identidades, tenho a impressão de ser apenas a minha função, minha posição social, meu lugar na família.”
Meditar, portanto, é deixar-se em paz.
Midal comenta, ao final do seu livro:
“Aprendi a ter confiança na minha capacidade de me extasiar. Deixo-me em paz com mais facilidade e experimento então a estranha sensação que é a gratidão. Gratidão para com a vida, para com a minha vida. Afinal, ela existe... Confesso que precisei de um longo tempo até falar do êxtase que eu sentia: era um discurso que me parecia muito frouxo, eu temia que ficasse aquém da radicalidade que me chamava, da urgência de deixar-se em paz. Dou-me conta de que, na verdade, trata-se do mesmo discurso: deixar-se em paz é simplesmente permitir-se participar desse êxtase, descobrir o espírito infantil soterrado sob nossas palavras de especialista. Essa felicidade não depende das circunstâncias e é uma profunda liberação...” (página 171)
Fico feliz de ter vencido meu preconceito contra livros de autoajuda. Teria perdido a ocasião de poder ler um livro bom, entre tantos livros bons. Vou relê-lo daqui a algum tempo, com pacificação interior, para melhor aproveitá-lo.
Recomendo este A Arte Francesa de Mandar Tudo À Merda. Continuo não gostando do título, mas isto é apenas um detalhe.
Nota atribuída: 9,0