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sábado, 14 de abril de 2018

Resenha Nº 119 - Xamã, de Noah Gordon


Resultado de imagem para livro XamãTítulo original: Shaman
Título em português: Xamã
Autor: Noah Gordon
Tradutor: Aulyde Soares Rodrigues
Edição: s/ed.
Editora: Rocco
Copyright: 1992
ISBN: 85-325-0406-x
450 páginas
Romance americano
Bibliografia do autor: O Rabino, 1965; O Comitê da Morte, 1969; O Diamante de Jerusalém, 1979; O Físico, 1986; Xamã, 1992; A Escolha da Dra. Cole, 1996; O Último Judeu, 2000; Sam e Outros Contos de Animais, 2005; La Bodega, 2007 (no Brasil, todos os títulos publicados pela Editora Rocco).

Noah Gordon nasceu em Worcester, EUA, em 11/11/1926. Serviu no exército, durante Segunda Guerra Mundial; após esta conflagração, entrou para o curso de pré-medicina, por pressão dos pais. Cursou apenas um semestre. Transferiu-se para o curso de jornalismo e se formou em 1950. Atuou como editor em algumas revistas, tendo publicado seu primeiro romance O Rabino em 1965. Seus trabalhos falam a respeito da história da medicina e ética médica; mais recentemente, passaram a focar a inquisição e a herança cultural judia.
Xamã é o segundo volume escrito por Noah, envolvendo a história da medicina. Temos aqui um pano de fundo dos primórdios dos Estados Unidos. Tribos de índios perpassam todo este pano, sofrendo a imposição do homem branco, que lhes rouba as terras sagradas. De importância capital, tanto para a história americana, quanto para esta história específica, há a Guerra de Secessão dos Estados Unidos, travada de 1861 a 1865, entre os estados escravagistas do Sul e os do Norte, abolicionistas. O Sul declarara sua secessão, ou separação do resto do país e formaram os Estados Confederados da América; não aceitando tal imposição, o governo central envia, então, suas tropas para reaver a parte rebelde e o resultado, além da derrota dos confederados, é um saldo macabro em torno de seiscentos mil americanos mortos.
A narração da chegada do Dr. Cole a terras americanas se inicia a partir da parte 2 do livro:
“Rob J. Cole viu o Novo Mundo pela primeira vez num dia nublado de primavera, quando o Cormorant – um navio feioso, com três mastros atarracados e vela de mezena, o orgulho da Linha Black Ball – foi sugado pela maré cheia para dentro do imenso porto e desceu a âncora no mar picado. O leste de Boston não era uma grande coisa, umas duas fileiras de casas de madeira mal construídas, mas, num dos píeres, por três pence ele comprou uma passagem num pequeno barco a vapor que, ziguezagueando entre um número incrível de embarcações, atravessou a baía na direção do cais principal, um amontoado de casas e lojas com o cheiro familiar de peixe podre, porão de navio e corda alcatroada, como qualquer porto escocês.” (página 23)
Como vimos no livro anterior, O Físico, a família Cole – escocesa de origem – tinha uma particularidade: entre os homens, manifestava-se o dom, isto é, uma espécie de sexto sentido, pelo qual um Cole podia sentir, ao tomar as mãos de uma pessoa, se ela iria morrer logo. Rob J. Cole era médico, como aquele seu antecessor da idade média, no primeiro volume desta saga e tinha o mesmo dom.
Fugido de sua terra, por incongruências políticas contra poderosos, deixara lá sua família e terras a que tem direito de herança. Sua vida no Novo Mundo não será fácil. Ainda mais porque, logo de cara, ele assume uma forte posição contra três frentes polêmicas: era um abolicionista, defendia os índios e atendia os pobres e deserdados, ao invés de se dedicar à classe endinheirada.
Ele se estabelece num lugarejo chamado Holden’s Crossing, onde compra terras. Nicholas Holden é o maioral do vilarejo e quando percebe que o doutor Cole deseja viver ali, facilita-lhe as coisas, pois deseja que o lugar se desenvolva e eleve seu nome emprestado ao local. Um médico ali é algo muito importante politicamente. Nicholas tem aspirações políticas.
Estabelecido, Rob inicia seu ofício. É um jovem médico, disposto, idealista. Percorre enormes distâncias a cavalo, para tender seus pacientes; nem sempre recebe qualquer valor em espécie pelas suas visitas. Com o desenvolvimento de Holden’s Crossing, outro médico começa a atender ali, mas Cole é muito querido pelo povo por sua dedicação e seriedade. E as coisas ficam mais complicadas quando o doutor emprega alguns índios da tribo sauk, de nomes Pyawanegawa (Chega Cantando), Makwa-ikwa (Mulher Urso) e Lua, mulher de Chega Cantando, como trabalhadores em sua fazenda.
A relação com a pele-vermelha Makwa-ikwa torna-se muito intensa, por uma questão inicial de afinidade: ela era uma espécie de médica-profetisa da tribo dos sauks:
“Quando chegou em casa, Rob escreveu no seu diário e tentou desenhar a mulher índia, porém, por mais que tentasse, tudo o que conseguiu foi um rosto que podia ser de qualquer índio, de qualquer sexo, e marcado pela fome. Precisava dormir, mas o colchão de palha não parecia convidativo. Sabia que Gus Schroeder tinha espigas de milho secas para vender e Alden dissera que Paul Grueber tinha algum grão sobrando. Naquela tarde, montado em Meg e puxando Mônica, ele voltou para o acampamento dos sauks e deixou dois sacos de milho, um de nabo sueco e outro de trigo.
A curandeira não agradeceu. Apenas olhou para as sacas de mantimento, deu algumas ordens e mãos ansiosas tiraram imediatamente do frio e da neve, levando-as para dentro dos tipis. O vento mais uma vez abriu o capuz. Era uma legítima pele-vermelha. Sua pele era um marrom-avermelhado, o nariz curvo, as narinas quase negroides. Os olhos castanhos eram enormes e o olhar direto. Rob perguntou como se chamava e ela disse Makwa-ikwa.
— O que significa, na minha língua?
— Mulher Urso – respondeu ela.” (página 65)
Uma bela amizade, sem segundas intenções, entre duas almas que se integram.  Ademais, Makwa-ikwa perderia seus dons de profetisa e de curandeira se se deitasse com um homem.
Mas o Dr. Cole termina se apaixonando por uma mulher local, com um passado bastante complicado segundo a moral vigente. Sarah já era mãe de um filho, Alex, a quem Rob se dedica como pai. Logo, desta relação com Sarah nasce o filho Robert Jefferson Cole, que, mais tarde, será chamado de Xamã ou Cawso wabeskiou (Xamã branco), como o pai também o fora. O filho também tinha o dom.
Uma outra relação forte é entre o Dr. Cole e a madre superiora Miriam Ferocia. Na comunidade protestante, os católicos não eram bem vistos e aquela congregação de religiosas, vestidas de um hábito marrom, logo foram chamadas de “malditos besouros marrons”. Eram uma ordem de enfermeiras, que irão ajudar muito o médico.
Fato capital para o desenvolvimento do livro Xamã é o estupro e assassinato de Mikwa-ikwa. O Dr. Cole não consegue superar tal acontecimento:
“Ela estava coberta com um lençol. Não fora deixada ali por Jay, nem por nenhum dos sauks. Provavelmente dois ajudantes de London, porque a tinha jogado, quase descuidadamente, na mesa de dissecação, de lado, como um objeto inanimado e sem valor, um tronco de madeira ou uma mulher índia. O que ele viu primeiro, quando ergueu o lençol, foi a nuca e as costas nuas, as nádegas e as pernas.
 A lividez post-mortem indicava que ela estava deitada de costas quando morreu. As costas e as nádegas apresentavam manchas roxas de sangue capilar coagulado. Mas na crena anal violada, ele viu uma rugosidade vermelha e líquido branco seco, tingindo de vermelho onde se misturava com o sangue.” (página 165)
Estoura a Guerra Civil americana. Lutam Norte contra Sul. Rob Cole participa dela como médico, sem nunca se livrar das lembranças da sua discreta amiga índia e incomodado pela impunidade dos criminosos. A pergunta que o assombra é: conseguirá encontrar os assassinos?
Xamã, a despeito de sua surdez, motivada por uma doença, luta para ser médico. Luta mesmo contra a orientação do pai, para quem ele jamais poderia ser um profissional da área da saúde. No entanto, o rapaz é persistente e diante disto, o Dr. Cole começa a instruí-lo. Mais tarde, após muita recusa, ele consegue uma vaga numa escola de medicina, sob observação, para ver se ele daria conta de aprender, tendo o obstáculo da surdez. Xamã torna-se um dos melhores.
Xamã retorna para sua casa em Holden’s Crossing. Reencontra Alden, o empregado da fazenda, sua mãe. Sente falta de Alex, que está servindo como soldado na detestável Guerra Civil, sente falta da presença tranquila de Makwa-ikwa, sente a falta do pai morto:
“Era quase noite fechada. Xamã sentiu que Makwa queria lhe dizer alguma coisa. Já tinha acontecido antes, e ele quase sempre acreditava que esse era o motivo daquela raiva que pairava no ar, não poder dizer a ele o nome do seu assassino. Queria perguntar a ela o que devia fazer, agora que seu pai não existia mais. O vento ondulava a água. As primeiras estrelas apareceram pálidas no céu e Xamã estremeceu. O inverno não tinha acabado de todo, pensou, ao voltar para casa.” (página 17)
O filho do Dr. Cole, ele mesmo agora um doutor, se estabelece também em Holden’s Crossing, tratando dos mesmos pacientes do pai, e outros mais, que vêm integrar a localidade em desenvolvimento. Muitas características paternas são herdadas por ele; a honestidade, a competência profissional, a opção pelos mais pobres, a valorização dos índios, a consideração para com os negros:
“O major Poole perguntou a quais associações ele pertencia e Xamã disse que durante toda sua vida pertencera apenas à Sociedade para Abolição da Escravatura, quando estava no colégio, e à Sociedade de Medicina de Rock Island.
— O senhor é um copperhead[1], Dr. Cole?
— Não, não sou.
— Não tem nem um pouco de simpatia pelo sul?
— Não acredito em escravidão. Quero que a guerra termine sem mais sofrimento para todos, mas não sou a favor da causa do sul.” (página 436)
Caberá ao jovem Xamã a tarefa de resgatar seu irmão Alex, prisioneiro dos confederados e encontrar os assassinos de Makwa-ikwa.
Sarah, mãe de Xamã, é outra personagem bem construída, que vai crescendo à medida que a narração se desenvolve. É muito bonita a cena em que ela, já viúva, fala de seu passado ao filho:
“— Não que desse para notar. Acho que Will Mosby me amava e teria casado comigo, mas ele levava uma vida perigosa e escolheu exatamente aquele momento para ser morto. Nick se afastou, embora eu sempre achasse que ele era o pai de Alex. Então Alma e Gus chegaram e compraram a terra, e acho que ele sabia que os Schroeder iam me alimentar. Quando Alex nasceu, Alma estava comigo, mas a pobre mulher se descontrolou numa emergência e eu tive de dizer a ela o que devia fazer. Depois que Alex nasceu, durante alguns anos minha vida foi a piro possível.  Primeiro, foram meus nervos, depois minha barriga, e isso provocou a formação de pedras nos rins. – Ela balançou a cabeça. – Seu pai salvou a minha vida. Até ele chegar, eu não acreditava que podia existir um homem bom e gentil no mundo todo. A verdade é que eu tinha pecado. Quando você perdeu a audição, eu sabia que era castigo e que a culpa era minha, e mal podia chegar perto de você. Eu o amava demais e minha consciência me atormentava. – Estendeu a mão e tocou o rosto dele. – Eu sinto muito que você tenha uma mãe tão fraca e pecadora.
Xamã segurou a mão dela.
— Não, você não é fraca, nem pecadora. É uma mulher forte que precisou de muita coragem para sobreviver. Por falar nisso, foi preciso muita coragem para me contar essa história.  Minha surdez não é culpa sua, mamãe.  Deus não quer castigá-la.  Nunca tive tanto orgulho de você, e nunca a amei mais do que agora.” (página 412)
Xamã é outro belíssimo livro desta saga familiar e história da medicina criada por Noah Gordon. Como este já é o segundo volume, embora não seja, propriamente, uma série, já que podemos começar a ler a partir de qualquer dos livros, sem perda de conteúdo, creio que podemos apontar algumas características da saga. Livros bem escritos, bem pesquisados, forte contextualização; personagens fortes, escudados por uma moral exemplifica-dora; presença de bom humor, algumas piadas, que aliviam o drama do texto.
Especificamente para Xamã, há uma mensagem moralizadora, a vingança não vale a pena. Noah Gordon parece ter muito apreço pela cultura tradicional indígena, mormente no tocante às questões medicinais. Ele propõe, na verdade, bem mais que isto: uma integração do homem branco aos indígenas, aos imigrantes e aos negros.
Li em vários depoimentos que Xamã não acompanha o nível de O Físico, com que não concordo. Para mim, ambos estão no mesmo nível. Entretanto – e aí está o motivo de eu não ter dado exatamente a mesma nota para os dois trabalhos, apenas uma questão subjetiva, refletida numa nota fortemente subjetiva – afinizei-me mais com uma narrativa cujo pano de fundo era a idade média do que a Guerra de Secessão americana. Outro ponto a ser comentado é do personagem no qual se concentra o encantamento. Em O Físico, claramente esta função é do Avicena. Homem sábio, forte, reto – nos encanta de maneira destacada. Ele é sustentado durante uma boa parte da história, do meio para o fim.
Já em Xamã, não temos um personagem com a mesma e evidente força intelectiva e moral, esta característica do encantamento é pulverizada em alguns personagens. Makwa-ikwa poderia ser tal personagem com função de encantamento, repositório da sabedoria dos ancestrais e de caráter reto. Mas Noah a mata muito cedo. E há ainda muita narrativa pela frente. Detalhes de narratologia.
Entre os temas e subtemas da obra, temos a escravidão como algo errado; o direito dos índios de terem suas terras reconhecidas; a defesa dos oprimidos; a guerra, que não se justifica, ainda mais se for entre irmãos; o respeito ao conhecimento de ervas e remédios naturais; o pacifismo em contraposição à belicosidade; a intolerância religiosa e social.
Claro se observa, gostei muito deste segundo volume da história da medicina. Nos dois aprendi bastante sobre cultura, hábitos, costumes da Idade Média (O Físico) e a construção de um grande país (Xamã). Recomendo a leitura não só para aqueles mais aficionados, que gostem de acompanhar uma história bem contada, mas também para aqueles que gostem de aprender alguma coisa sobre uma época, uma civilização. Pertenço às duas categorias.
Nota atribuída: 9,7




[1] Copperhead: facção do partido democrata que tinha simpatia pelos confederados e queria uma solução pacífica para o conflito. Os democratas anti-guerra não encaravam este termo como injurioso, tendo mesmo orgulho em nomear-se coppers. Copperhead é o nome de uma cobra venenosa, em inglês.

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