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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Resenha nº 120 - A Livraria, de Penelope Fitzgerald


Resultado de imagem para livro a livraria penelopeTítulo original: The Bookshop
Título em português: A Livraria
Autora: Penelope Fitzgerald
Tradutora: Sônia Coutinho
Edição: 2ª
Editora: Bertrand Brasil
Copyright: 1978
ISBN: 976-85-286-2282-9
Páginas: 160
Gênero: Romance
Literatura inglesa
Bibliografia: Biografias – Edward Burne-Jones, 1975; The Knox Brothers, 1977; Charlotte Mew and Her Friends, 1984. Romances – The Golden Child, 1977 ; The Bookshop, 1978 ; Offshore, 1979 ; Human Voices, 1980 ; At Freddie’s, 1982 ; Innocence, 1986 ; The Beginning of Spring, 1988 ; The Gate of Angels, 1990 ; The Gate of Angels, 1990 ; The Blue Flower, 1995. Contos – The Means of Escape, 2000. Ensaios e análises – A House of Air, 2005. Cartas – So I Have Thought of You, 2008.


Acabara de sair do cinema, vivamente impressionado com o filme A Livraria, dirigido pela espanhola Isabel Coixet, a mesma diretora do visceral filme Fatal, estrelado por Penelope Cruz e Ben Kingsley, baseado no livro do americano Philip Roth, O Animal Agonizante. Sempre me interessam obras que envolvam temas como escritores e suas dificuldades, professores, livros. Pouco tempo depois, assombrado pela ideia de ler o livro que dera origem ao filme, comprei este A Livraria, de Penelope Fitzgerald (uma autora ainda não conhecida por mim) e mergulhei na leitura. Que livro bom de se ler! Só o larguei no fim.

Penelope Fitzgerald nasceu em 17/12/1916, em Lincoln, Inglaterra e morreu em 28/04/2000, aos 83 anos de idade, em Londres. Recebeu o prêmio Booker, dado pelo Círculo Nacional dos Críticos de Livros. Fortemente influenciada pelo pai e tios eruditos (Edmund Knox (pai), editor da revista Punch, de humor e sátiras; os tios eram Ronald Knox, teólogo e escritor criminal, Dillwin Knox, criptógrafo, Wilfred Knox, erudito bíblico e do romancista e biógrafo, Winifred Peck). Penelope teve a formação nos educandários Wycombe Abbey, Somerville College e na Universidade de Cambridge, onde se formou em 1938. Trabalhou na BBC durante a Segunda Guerra Mundial; em 1942, ela se casou com Desmond Fitzgerald. Os Fitzgerald editavam uma revista literária de nome World Review, na qual escritores como J. D. Salinger, Bernard Malamud, Norman Mailer e Alberto Moravia foram publicados pela primeira vez na Inglaterra. Desmond envolveu-se em falsificação de cheques, o que levou a família à falência. Para sustentar seus familiares, o casal deu aulas de teatro. Penelope também trabalhou numa livraria em Southworld Suffolk. A escritora deu aulas até os setenta anos.
A Livraria é uma pequena obra-prima da autora. Escrito com admirável concisão, é destes textos em que não há palavras em excesso, contando com fluidez e domínio da escrita, que nos faz devorar as 160 páginas rapidamente. A ambientação é numa cidadezinha de gente de mentalidade provinciana e acomodada, chamada Hardborough, onde a viúva Florence Green vai viver:
“Em 1959, algumas vezes Florence Green passava noites sem saber ao certo se havia dormido ou não. Isso acontecia por causa de suas preocupações quanto à eventual compra de uma pequena propriedade, a Old House, com um depósito próprio na região portuária, para abrir ali a única livraria de Hardborough. Provavelmente era a incerteza que a mantinha acordada. Certa ocasião, vira uma garça voando pelo estuário e tentando engolir, em pleno voo, uma enguia que havia capturado. A enguia, por sua vez, lutava para fugir da goela da garça e um quarto dela, uma metade ou, ocasionalmente, três quartos apareciam do lado de fora. A indecisão expressa por ambas as criaturas era algo deplorável. As duas haviam ultrapassado seus limites. Florence sentia que, se não dormia nada – e as pessoas, com frequência, dizem isso querendo expressar algo totalmente diferente –, era porque ficara acordada pensando na garça.” (página 17)
A protagonista do romance abre, então, com muitas dificuldades, a sua livraria. Entretanto, naquela pequena localidade, a Sra. Gamart, representante da classe mais abastada do local, também deseja a velha propriedade para ter ali uma Galeria de Arte.
Usando a já conhecida técnica de localizar a trama do romance numa localidade pequena, em que disseca as relações sociais nada saudáveis, Penelope traça um quadro analítico das influências de bastidores e “puxadas” de tapete, com alguns personagens utilizando até mesmo de meios políticos, como fazer aprovar uma lei que dificulte a vida de Florence, na sua luta já árdua por fazer funcionar uma livraria numa cidadezinha de vida tão medíocre.
Surgem, então, alguns personagens memoráveis, como a própria Florence Green, mulher forte e destemida; a Sra. Violet Gamart, que todos temem, embora ela se mostre hipocritamente suave e educada; Milo North, um ser humano abjeto, que irrita a nós, leitores, pelas suas características; o Sr. Brundish, possuidor de um passado forte, alguém que escolhe o afastamento deliberado de toda a sociedade; a menina Christine Gipping, que tanto influencia Florence quanto por ela é influenciada. Todas estas criaturas têm sérios problemas a resolver, como fica evidente no trecho transcrito abaixo:
“Se Florence era corajosa, era-o de uma maneira completamente diferente, por exemplo, do general Gamart, cujo comportamento permanecera igual, estando ele ou não sob fogo cruzado; ou do Sr. Brundish, que desafiava o mundo ao se recusar a admitir que entrassem em suas terras. A coragem dela, afinal, era apenas uma questão de sobrevivência.” (página 117)
Ponto de discórdia entre as pretensões de Florence e as da Sra. Gamart, a Old House é uma personagem dentro do enredo apresentado por A Livraria:
“A propriedade que Florence estava decidida a comprar não recebera seu nome a troco de nada. Embora nenhum dos imóveis fosse novo, até se chegar ao projeto inacabado de conjuntos habitacionais a noroeste, e muitas das casas datassem dos séculos XVIII e XIX, nenhuma delas se comprara à Old House, e apenas a Holt House, onde morava o Sr. Brundish, era mais antiga. Construída havia quinhentos anos, com terra, palha, galhos e vigas de carvalho, a Old House devia sua sobrevivência a um porão que a protegia das enchentes, ao qual se chegava por um lance de degraus de pedra. Em 1953, o porão ficara com mais de dois metros de água do mar, até a baixa da última enchente. Contudo, uma parte dessa água ainda continuava ali.” (página 29)
E, para completar, como uma boa e velha residência inglesa, a Old House contava com seu próprio fantasma:
“Os que viviam em Hardborough havia algum tempo também sabiam que a propriedade era mal-assombrada. O assunto não era nem um pouco evitado, mostrando-se bastante familiar a todos. Por exemplo, uma figura de mulher podia ser vista, algumas vezes, na plataforma de desembarque da balsa, mais ou menos ao entardecer, à espera de que seu filho voltasse, embora ele tivesse morrido afogado mais de um século antes. Mas a Old House não era assombrada de maneira tão comovente. Era infestada por um espírito barulhento que, juntamente com a umidade e um problema não resolvido dos esgotos, explicava, em parte, a dificuldade para a venda da propriedade. O corretor da casa não estava, de forma alguma, legalmente obrigado a mencionar o fantasma, embora, algumas vezes, aludisse a ele com a expressão uma atmosfera incomum.” (página30)
Este espírito que coabitava a Old House era chamado, pelos locais, de batedor, por sua característica de fazer-se notar por meio de batidas nas paredes e nos móveis. A existência de um espírito com estas características nos remete ao famoso caso das irmãs Fox, nos Estados Unidos, em que a casa, ocupada pela família Fox, era assombrada por um fantasma batedor, que, mais tarde se soube, era vítima de um crime de assassinato, cujo corpo havia sido enterrado na propriedade. Aliás, nos meados do século XIX os jornais noticiavam fenômenos “inexplicáveis” acontecendo em muitas partes do mundo, levando até mesmo homens e mulheres da burguesia, sem coisas mais interessantes para fazer, a realizarem sessões de invocação de espíritos.
Tais fenômenos foram investigados pelo inicialmente cético professor Hyppolite Léon Denizard Rivail, mais conhecido sob o pseudônimo de Allan Kardec, codificador do Espiritismo.
Personagem de construção muito interessante é Milo North, empregado da BBC de Londres e habitante de Hardborough, frequentador das festas promovidas pela socialite Violet Gamart:
“Milo North era alto e levava a vida de uma forma singular, com muito pouco esforço. Dizer “Eu sei quem é a senhora, não é a Sra. Green?” representou uma emissão pouco habitual de energia. Nele, o que parecia delicadeza era habitualmente uma maneira de fugir dos problemas; e o que parecia simpatia representava o instinto de impedir que os problemas começassem a acontecer. Era difícil prever o que significaria envelhecer para uma pessoa assim. Suas emoções, por falta de exercício, haviam desaparecido quase por completo. Ele havia descoberto que adaptabilidade e curiosidade funcionavam igualmente bem.” (página 36/37)
A pequena ajudante que se apresenta à livraria de Florence é Christine Gipping, para trabalhar no período depois da escola. Christine é uma personagem límpida, ainda não tocada pela hipocrisia reinante na cidadezinha:
“— Você é Christine Gipping, não é? Pensei que sua irmã mais velha...
Christine respondeu que, como os entardeceres estavam mais longos, sua irmã mais velha costumava ficar lá pelo meio do mato, com Charlie Cutts. Na verdade, ela acabara de ver as bicicletas dos dois escondidas embaixo das samambaias, na encruzilhada.
— A senhora não precisa se preocupar com nada disso, no meu caso – acrescentou ela. – Só completo onze anos no próximo mês de abril. Meu incômodo ainda não chegou.
— E sua outra irmã?
— Ela gosta de ficar em casa e cuidar de Margaret e Peter. São os menores. Foi bobagem pôr esses nomes neles; nunca houve nada entre ele e a princesa.
— Por favor, não imagine que não quero considerar você apta ao emprego. Mas é que não parece ter idade nem força suficientes.
— Não julgue pela aparência. A senhora tem idade, mas não parece forte. Desde que alguém da nossa família fique com o emprego, não faz muita diferença. Somos todos jeitosos.” (páginas 74/75)
O Sr. Brundish é outro bem-acabado personagem de A Livraria:
“O Sr. Brundish ignorou, ou talvez jamais lhe tivessem ensinado, a convenção cortês de nunca olhar fixamente para alguém. E ele fez exatamente isso. Encarou Florence como se estivesse surpreso até mesmo com o fato de ela se achar ali, mas ela se sentiu encorajada pela obsessiva concentração dele.
— Posso voltar para a minha primeira pergunta? Estou pensando em fazer um primeiro pedido, de duzentos e cinquenta exemplares, de Lolita, o que representa um risco considerável; mas claro que não o consulto de um ponto de vista comercial; seria completamente errado. Tudo que eu gostaria de saber, antes de fazer o pedido, é se o senhor acha que é um bom livro e se é certo eu vendê-lo em Hardborough.
— Ouso dizer que não dou tanta importância quanto a senhora às noções de certo e errado. Li Lolita, como pediu. É um bom livro; portanto, a senhora deve tentar vendê-lo aos habitantes de Hardborough. Não o entenderão, mas é preferível assim. Entender torna a mente preguiçosa.” (páginas 109/110)
Para quem não entendeu a referência ao romance Lolita, de Vladimir Nabokov – e para deixar claro o tamanho do risco em que Florence estava se metendo – trata-se de um livro explosivo, considerado mais que pornográfico, pedófilo. O maduro Humbert Humbert se envolve sexualmente com uma menina chamada Lolita; ele não só não reconhece a própria conduta reprovável, como tenta se justificar diante da justiça que o prendeu, alegando que Lolita não tinha nada de inocente, já tendo tido experiências sexuais anteriores.
Lolita, por conseguinte, só pôde ser editado na França, por uma inexpressiva editora. Houve comentários, elogios, condenações por toda a parte. O título chegou a ser cassado. Foi proibida a sua publicação nos Estados Unidos. Hoje, é tido como um dos importantes (e continua polêmico) trabalhos literários, ensejando outras interpretações e relações que as simplesmente superficiais.
Florence padece das dificuldades de uma mulher sozinha, sem raízes locais, corajosa a ponto de afrontar o poder representado na Sra. Gamart; a Old House centenária, construção decadente que ninguém queria ocupar, mas que se torna a pedra de escândalo quando ali a Sra. Green resolve morar e instalar sua livraria, representa a própria decadência social de Hardborough. Não à-toa, o espírito batedor é inserido ali pela autora e pode-se interpretar sua atuação como o incômodo das “forças ocultas, de bastidores” contra as quais luta a livreira.
Pelos trechos selecionados, expondo sempre personagens, você, leitor inteligente, já percebeu que A Livraria é, sobretudo, um romance de crítica social, focado nas perversidades de jogos de interesses dos vários seres desta pequena e hipócrita Hardborough. Nela, tudo é tão contaminado pelas vontades e manobras da elite local, que até o advogado de Florence Green, que deveria defendê-la, a acusa, embora em tom relativamente educado. Tal postura obriga-a, em uma correspondência, de classsificar o profissional com um sonoro covarde.
Considero A Livraria, de Penelope Fitzgerald, um livro de leitura prazerosa e oportuna para o momento por que passa o Brasil. Mas não só: é livro muito interessante para ser lido em qualquer época. Trata-se de obra candidata a várias releituras.
Nota atribuída: 9,5/10

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